quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A noite

Ouvi em algum lugar:
"Todo noite era a mesma coisa. Ele tinha medo que a noite acabasse com a chegada dos primeiros raios do sol. Não porque gostasse da escuridão, mas porque não queria ter a fadiga de viver um outro dia, de ter que enfrentar a necessidade da ação.
Por isso a noite era o melhor momento do dia. Representava a hora do descanso das obras."

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

“A oração do ateu”


Ouve meus rogos Tu, Deus que não existes,
e em Teu nada recolhe estas minhas queixas;
Tu, que aos pobres homens nunca deixas
sem consolo de engano. Não resistes
ao nosso rogo, e nosso anelo viste,
quando mais Te afastas de minha mente;
mas recordo os doces conselhos somente
com que minh’alma acalentou noites tão tristes.
Quão grande és, meu Deus! Tu és tão grande,
que não és senão Idéia; é muito estreita
a realidade por muito que se expande 
para abarcar-te. Sofro eu por tua causa,
Deus não existente, pois se tu fosses realidade,
eu também existiria de verdade.

Miguel de Unamuno

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

OS OLHOS DOS POBRES


Ah! Você quer saber por que eu a odeio hoje. Será, certamente, menos fácil para você compreender do que  para mim, explicar; porque você é, creio, o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar.

Tínhamos passado juntos um longo dia que me parecera curto. Nós nos tínhamos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns a um e ao outro e que nossas duas almas não seriam mais do que uma só — um sonho que nada tem de original, uma vez que, afinal, é um sonho sonhado por todos os homens, mas nunca realizado por nenhum.

À noite, já um pouco fatigada, você quis sentar-se em frente a um café novo, na esquina de um bulevar também novo, ainda cheio de cascalhos, mas já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café brilhava. Mesmo as simples tochas de gás revelavam todo o ardor de uma estréia e iluminavam, com todas as suas forças, as paredes de uma brancura ofuscante, exibindo a seqüência de espelhos, o ouro das molduras e dos frisos, mostrando pagens rechonchudos arrastados por cães nas coleiras, senhoras rindo com os falcões pousados em seus punhos, ninfas e deusas trazendo frutas em suas cabeças, patês e caças diversas, as Hebes e Ganimedes apresentando, com os braços estendidos, a pequena ânfora com creme bávaro ou o obelisco bicolor de sorvetes coloridos; enfim, toda a história e a mitologia postas a serviço da glutonaria.

Bem em frente de nós, na calçada, estava plantado um homem de bem, de uns quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, tendo numa das mãos um menino e sobre o outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele cumpria o papel de uma babá e trazia seus filhos para tomar o ar da noite. Todos em farrapos. Esses três rostos estavam extremamente sérios e seus seis olhos contemplavam fixamente o novo café com igual admiração, mas, naturalmente, com as nuances devidas às idades.

Os olhos do pai diziam: “Que beleza! Que beleza! Dir-se-ia que todo o ouro do pobre mundo fora posto nessas paredes.” Os olhos do menino: “Que beleza! Que beleza! Mas é uma casa onde só podem entrar pessoas que não são como nós!” Quanto aos olhos do menor, eles estavam fascinados demais para exprimirem outra coisa senão uma alegria estúpida e profunda.

Os cancioneiros dizem que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. A canção tinha razão nesta noite relativamente a mim. Não somente eu estava enternecido por esta família de olhos, como me sentia envergonhado por nossos copos e nossas garrafas, maiores que nossa sede. Virei meus olhos para os seus, querido amor, para ler neles o “meu pensamento”; mergulhei em seus olhos tão belos e tão bizarramente doces, nos seus olhos verdes, habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: “Não suporto essa gente com seus olhos arregalados como as portas das cocheiras! Será que você poderia pedir ao maîttre do café para afastá-los daqui?”

É tão difícil o entendimento, meu caro anjo, e tão incomunicável é o pensamento mesmo entre as pessoas que se amam.

In,  "Pequenos Poemas em Prosa" (também conhecida como Le Spleen de Paris) de Charles Baudelaire


Embebedai-vos

É preciso estar-se, sempre, bêbado. Tudo está lá, eis a única questão. Para não sentir o fardo do tempo que parte vossos ombros e verga-vos para a terra, é preciso embebedar-vos sem tréguas.

Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, a escolha é vossa. Mas embebedai-vos.

E se, às vezes, sobre os degraus de um palácio, sobre a grama verde de uma vala, na solidão morna de vosso quarto, vós vos acordardes, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que passa, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, vos responderão: “É hora de embebedar-vos! Para não serdes escravos martirizados do Tempo, embebedai-vos, embebedai-vos sem parar! De vinho, de poesia ou de virtude: a escolha é vossa.”

"Pequenos Poemas em Prosa" (Le Spleen de Paris) de Charles Baudelaire.

domingo, 17 de novembro de 2013

O QUARTO DUPLO


UM QUARTO que parece um devaneio, um quarto verdadeiramente "espiritual", onde a atmosfera estagnada é de leve tingida de róseo e de azul.

Nele a alma toma um banho de preguiça, aromatizado pelo arrependimento e pelo desejo. É algo crepuscular, azulado e tenuemente cor-de-rosa; um sonho de volúpia durante um eclipse.

Os móveis tem formas alongadas, desfalecidas, enlanguescidas. Dão a impressão de estar sonhando; dir-se-iam dotados de uma vida sonambúlica, assim como o vegetal e o mineral. Falam os estofos uma língua muda, como as flores, como os céus, como os poentes.

Nas paredes, nenhuma abominação artística. Relativamente ao sonho puro, à impressão não analisada, a arte definida, a arte positiva é uma blasfêmia. Aqui, há em tudo a suficiente claridade e a deliciosa obscuridade da harmonia.

Um aroma infinitestinal, da mais requintada escolha, ao qual se mistura leve toque de umidade, flutua nesta atmosfera, onde o espírito dorminante é embalado por sensações cálidas de estufa.

Chove copiosamente a musselina diante das janelas e do leito; derrama-se em cascatas nevadas. No leito jaz um Ídolo, a soberania dos sonhos. Mas como veio ter aqui? Quem a trouxe? que mágico poder a instalou neste trono de fantasias e de volúpia? Que importa! Ei-la! Reconheço-a.

São aqueles os olhos cuja flama atravessa o crepúsculo; aqueles sutis e terríveismirantes, que eu reconheço na sua espantosa malícia! Eles atraem, subjugam, devoram o olhar do incauto que os contempla. Estudei-as muitas vezes, a essas estrelas negras que impõem curiosidade e admiração.

A que demônio benévolo devo eu o estar assim cercado de mistério, de silêncio, de paz e de perfumes? Ó beatitude! aquilo a que em geral chamamos a vida, nada tem de comum, mesmo na mais feliz das suas expansões, com esta vida suprema que eu agora conheço e que saboreio minuto a minuto, segundo a segundo!
 Não! já não há minutos, já não há segundos! O tempo desapareceu; é a Eternidade que reina, uma eternidade feita de delícias!

Mas um golpe terrível, pesado, ressoou à porta, e, como nos sonhos infernais, pareceu-me receber uma picaretada no estômago.

E depois entrou um Espectro. É um meirinho que vem torturar em nome da lei; uma infante concubina que vem chorar miséria e acrescentar às dores da minha vida as atividades da sua; ou o contínuo de um diretor de jornal que reclama a continuação do manuscrito.

O quarto paradisiaco, o Ídolo, a soberana dos sonhos, a Sílfide, como dizia o grande René, toda essa magia desapareceu ao golpe brutal vibrado pelo Espectro.

Horror! Bem me lembro! bem me lembro! Sim, esta pocilga, esta morada do eterno tédio, é bem a minha. Eis aqui os móveis estúpidos, poentos, esbeiçados; a lareira sem chama e sem brasa, manchada de escarno; as tristes janelas onde a chuva abriu sulcos na poeira; os manuscritos riscados ou incompletos; o calendário onde o lápis assinalou as datas sinistras!

E àquele perfume de outro mundo, de que eu me embriagava com sensibilidade aprimorada - ai! -, sucedeu um fétido cheiro de tabaco, mesclado a um vago e nauseante odor a mofo. Respira-se aqui, agora, o bafo da desolação.

Neste mundo estreito, mas tão cheio de tédio, um único objeto conhecido me sorri: a garrafinha de láudanos; velha e terrível amiga; como todas as amigas - ai! -, fecunda em carícias e traições.

Oh, sim! ressurgiu o Tempo; o Tempo agora reina como soberano; e com o horrendo velho retornou todo o seu cortejo demoníaco de Lembranças, de Pesares, de Espasmos, de Terrores, de Angústias, de Pesadelos, de Cóleras e de Neuroses.

Eu vos asseguro que os segundos, agora, são fortes e solenemente assinalados, e cada um deles, jorrando do pêndulo, diz: - "Eu sou a Vida, a insuportável, a implacável Vida!"

Em toda a vida humana humana só há um Segundo que tem a missão de anunciar uma boa-nova, a boa-nova que a todos causa inexplicável medo.

Sim! reina o Tempo; reassumiu a sua brutal ditadura. E acossa-me, como se eu fosse um boi, com o seu ferrão: - "Eia, burrico! Sua, escravo! Vive, condenado!"

Charles Baudelaire


CADA UM COM SUA QUIMERA


Sob um grande céu cinzento, uma grande planície empoeirada, sem trilhas, sem gramado, sem um cacto, sem uma urtiga, encontrei alguns homens que caminhavam curvados.
Cada um deles levava às costas uma enorme Quimera, tão pesada quanto um saco de farinha ou de carvão ou os apetrechos de um soldado romano.
Mas a monstruosa besta não era um peso inerte, ao contrário, ela envolvia e oprimia o homem com seus músculos elásticos e potentes; ela agarrava-se ao peito de sua montaria, com suas duas vastas garras e a cabeça fabulosa sobrepunha-se à fronte do homem, como um desses capacetes horríveis com os quais os antigos guerreiros esperavam aumentar o terror dos inimigos.
Questionei um desses homens e perguntei-lhe para onde iam assim, Ele me respondeu que de nada sabia, nem ele nem os outros; mas que, evidentemente, iriam a algum lugar, pois eram impulsionados por uma invencível vontade de andar.
Coisa curiosa de se anotar: nenhum desses viajantes tinha um ar irritado contra a besta feroz pendurada em seu pescoço e colada às suas costas. Dir-se—ia que as consideravam como fazendo parte deles mesmos. Todas essas faces fatigadas e sérias não testemunhavam qualquer desespero; sob a cúpula ente- diante do céu, os pés afundados na poeira de um chão também tão desolado quanto este céu, eles caminhavam com a fisionomia resignada dos que são condenados a esperar sempre.
E o cortejo passou a meu lado e se afundou na atmosfera do horizonte, no local onde a superfície arredondada do planeta se furta à curiosidade do olhar humano.
E durante alguns instantes eu me obstinava em querer compreender este mistério, mas logo uma irresistível indiferença se abateu sobre mim e eu fiquei mais pesadamente oprimido do que eles próprios por suas esmagadoras Quimeras.

Pequenos Poemas em Prosa - Charles Baudelaire