domingo, 26 de fevereiro de 2023

Não: devagar

Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.
Devagar...

Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...

Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
TaIvez a impressão dos momentos seja muito próxima...

Talvez isso tudo...

Álvaro de Campos

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

MARIA: Amo como o amor ama.



                MARIA:

Amo como o amor ama.

Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.

Que queres que te diga mais que te amo,

Se o que quero dizer-te é que te amo?

Não procures no meu coração...

Quando te falo, dói-me que respondas

Ao que te digo e não ao meu amor.

Quando há amor a gente não conversa:

Ama-se, e fala-se para se sentir.

Posso ouvir-te dizer-me que tu me amas,

Sem que mo digas, se eu sentir que me amas.

Mas tu dizes palavras com sentido,

E esqueces-te de mim; mesmo que fales

Só de mim, não te lembras que eu te amo.

Ah, não perguntes nada, antes me fala

De tal maneira, que, se eu fora surda,

Te ouvisse toda com o coração.

Se te vejo não sei quem sou; eu amo.

Se me faltas, (...)

Mas tu fazes, amor, por me faltares

Mesmo estando comigo, pois perguntas

Quando deves amar-me. Se não amas,

Mostra-te indiferente, ou não me queiras,

Mas tu és como nunca ninguém foi,

Pois procuras o amor pra não amar,

E, se me buscas, é como se eu só fosse

O Alguém pra te falar de quem tu amas.

Diz-me porque é que o amor te faz ser triste?

Canso-te? Posso eu cansar-te se amas?

Ninguém no mundo amou como tu amas.

Sinto que me amas, mas que a nada amas,

E não sei compreender isto que sinto.

Dize-me qualquer palavra mais sentida

Que essas palavras que, como se as perderas,

                                                               buscas

E encontras cinzas.

Quando te vi, amei-te já muito antes.

Tornei a achar-te quando te encontrei.

Nasci pra ti antes de haver o mundo.

Não há coisa feliz ou hora alegre

Que eu tenha tido pela vida fora,

Que não o fosse porque te previa,

Porque dormias nela tu futuro,

E com essas alegrias e esse prazer

Eu viria depois a amar-te. Quando,

Criança, eu, se brincava a ter marido,

Me faltava crescer e o não sentia,

O que me satisfazia eras já tu,

E eu soube-o só depois, quando te vi,

E tive para mim melhor sentido,

E o meu passado foi como uma estrada

Iluminada pela frente, quando

O carro com lanternas vira a curva

Do caminho e já a noite é toda humana.

Tens um segredo? Dize-mo, que eu sei tudo

De ti, quando m'o digas com a alma.

Em palavras estranhas que m'o fales,

Eu compreenderei só porque te amo.

Se o teu segredo é triste, eu saberei

Chorar contigo até que o esqueças todo.

Se o não podes dizer, dize que me amas,

E eu sentirei sem qu'rer o teu segredo.

Quando eu era pequena, sinto que eu

Amava-te já hoje, mas de longe,

Como as coisas se podem ver de longe,

E ser-se feliz só por se pensar

Em chegar onde ainda se não chega.

Amor, diz qualquer coisa que eu te sinta!

                FAUSTO:

Compreendo-te tanto que não sinto.

Oh coração exterior ao meu!

Fatalidade filha do destino

E das leis que há no fundo deste mundo!

Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto

De o sentir...?

                MARIA:

Para que queres compreender

Se dizes qu'rer sentir?

s.d.
Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Não tenho pressa

Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua.

Ninguém anda mais depressa do que as pernas que tem.

Se onde quero estar é longe, não estou lá num momento.

Sim: existo dentro do meu corpo.

Não trago o sol nem a lua na algibeira.

Não quero conquistar mundos porque dormi mal,

Nem almoçar o mundo por causa do estômago.

Indiferente?

Não: filho da terra, que se der um salto, está em falso,

Um momento no ar que não é para nós,

E só contente quando os pés lhe batem outra vez na terra,

Traz! na realidade que não falta!

Não tenho pressa. Pressa de quê?

Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.

Ter pressa é crer que a gente passe adiante das pernas,

Ou que, dando um pulo, salte por cima da sombra.

Não; não tenho pressa.

Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega -

Nem um centímetro mais longe.

Toco só aonde toco, não aonde penso.

Só me posso sentar aonde estou.

E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,

Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,

E somos vadios do nosso corpo.

E estamos sempre fora dele porque estamos aqui.



Alberto Caeiro 

sábado, 18 de fevereiro de 2023

NÃO SE MATE

 

Carlos, sossegue, o amor 
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo 
e segunda-feira ninguém sabe 
o que será. 

Inútil você resistir 
ou mesmo suicidar-se. 
Não se mate, oh não se mate, 
reserve-se todo para 
as bodas que ninguém sabe 
quando virão, 
se é que virão. 

O amor, Carlos, você telúrico, 
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
la dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe 
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico, vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro 
e as luzes todas se apagam. 
O amor no escuro, não, no claro, 
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá. 

Carlos Drummond de Andrade, ANTOLOGIA POÉTICA, ed. Dom Quixote

Fiquei doido, fiquei tonto…


Fiquei doido, fiquei tonto...
Meus beijos foram sem conto,
Apertei-a contra mim,
Aconcheguei-a em meus braços,
Embriaguei-me de abraços...
Fiquei tonto e foi assim...
Sua boca sabe a flores,
Bonequinha, meus amores,
Minha boneca que tem
Bracinhos para enlaçar-me,
E tantos beijos p'ra dar-me
Quantos eu lhe dou também.
Ah que tontura e que fogo!
Se estou perto dela, é logo
Uma pressa em meu olhar,
Uma música em minha alma,
Perdida de toda a calma,
E eu sem a querer achar.
Dá-me beijos, dá-me tantos
Que, enleado nos teus encantos,
Preso nos abraços teus,
Eu não sinta a própria vida,
Nem minha alma, ave perdida
No azul-amor dos teus céus.
Não descanso, não projecto
Nada certo, sempre inquieto
Quando te não beijo, amor,
Por te beijar, e se beijo
Por não me encher o desejo
Nem o meu beijo melhor.

Fernando Pessoa

s.d.

- 35.Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

O homem sorumbático não tão melancólico

O homem que se dizia sorumbático acordou pensando na mulher. Acordou pensando ter sentido o seu cheiro inesquecível, de ter ouvido sua respiração ofegante e vislumbrando suas curvas sobre a cama onde estava.

Ao abrir os olhos, entendeu que o que sentia era um misto de saudades e de desejo. De desejo misturado a lembrança do prazer dos lábios da mulher, do seu toque, de sua risada gratuita e de tesão abundante.

O homem sorriu tentando rascunhar o que sentia em uma folha de papel. Sorriu porque percebeu que o que vinha à mente era um amontoado de clichês absorvidos ao longo de sua vida, como as frases das músicas que ele dizia nas horas de intimidade e prazer, que sempre faziam a mulher sorrir.

Mas o que o homem queria dizer, escrever, naquele momento, se tivesse a habilidade e a competência dos poetas que tanto lia, era que conhecer a mulher havia permitido a ele se aventurar em experiências da vida menos melancólicas, mais prazerosas, abençoado pelo deus Baco e por Eros.

Ao se levantar para o trabalho diário, sem conseguir concluir o que rascunhara, o homem abriu a janela e sorriu novamente,  concluindo que não era necessário explicar, delimitar, conceituar o que sentia. Preferiu aceitar a contigência da existência e a sua capacidade de aproximar os improváveis.