segunda-feira, 30 de abril de 2018

Interview

Não é nenhum incômodo
explicar-lhe o que penso do infinito
o infinito é
simplesmente
um rude vento frio
que arrepia as mucosas
a pele
e as metáforas
e nos põe nos olhos
lágrimas de rotina
e na garganta um nó
de sortilégio
seguramente você já se deu conta
que no fundo não creio
que exista o infinito.

Bem sobre política
jesus
sobre política
meu bisavô que era liberal
espiava as criadas no banheiro
meu avô o reacionário
extraviava as chaves de suas dívidas
meu pai comunista
comprava hectares com um gesto de nojo
eu sou poeta
meu senhor
e você deve saber que os poetas
vivemos na virada desse mundo
claro que você talvez não tenha tempo
para ter paciência
mas deve saber que no fundo
eu não acredito na política.

Logicamente o estilo
o que penso do estilo
uma coisa espontânea que se vai fazendo só
sempre escrevi na cama
muito melhor que nos trens
que mais posso acrescentar
ah domino o sinônimo módico exíguo curto insuficiente
sempre escrevo pensando no futuro
mas o futuro
ficou sem magias esquecia que você
já sabe que no fundo
eu não acredito no estilo.

O amor o amor
ah caramba
o amor
de cara me agrada
a mulher
bom seria
a alma
o coração
sobretudo as pernas
poder levantar a mão
e encontrar a esquerda
tranquila ou intranquila

sorrindo desde o poço
da sua última preguiça
ou olhando olhando
como às vezes se olha
um pouco antes do beijo
depois de tudo
você e eu sabemos
que no fundo
o amor
o amor
é uma coisa séria.

Por favor
isto último
não vá publicar.

Mário Benedetti

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Síndrome

Ainda tenho quase todos os meus dentes
quase todos meus cabelos e pouquíssimos brancos
posso fazer e desfazer o amor
subir uma escada de dois em dois
e correr quarenta metros atrás do ônibus
ou seja que não deveria sentir-me velho
mas o grave problema é que antes
não reparava nesses detalhes.

Mario Benedetti

"Subúrbia"


"No centro da minha vida
no núcleo capital da minha vida
há uma fonte luminosa um chafariz
que levanta convicções coloridas
e é lindo contemplá-las e segui-las

no centro da minha vida
no núcleo capital da minha vida
há uma dor que palmo a palmo
vai ganhando seu tempo
e é útil aprender sua marca firme

no centro da minha vida
no núcleo capital da minha vida
a morte fica longe
a calma tem cheiro de chuva
a chuva tem cheiro de terra

isto me contaram porque eu
nunca estou no centro da minha vida."

Mario Benedetti

(De Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicação da Record.)


quinta-feira, 26 de abril de 2018

Transgressões

Todo mandato é minucioso
e cruel

eu gosto
das frugais transgressões
por exemplo inventar o bom
amor

aprender
nos corpos e em seu corpo
ouvir a noite e não dizer
amem

traçar
cada um o mapa de sua audácia
mesmo que nos esqueçamos
de esquecer

é certo
que a recordação nos esquece
obedecer cegamente deixa
cego

crescemos
somente na ousadia
só quando transgrido alguma
ordem
o futuro
se torna respirável

todo mandato é minucioso
e cruel
eu gosto
das frugais transgressões

Mario Benedetti

Leia mais: https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=157861 © Luso-Poemas

quinta-feira, 12 de abril de 2018

DILUENTE



A vizinha do número quatorze ria hoje da porta

De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno.

Ria naturalmente com a alma na cara.

Está certo: é a vida.

A dor não dura porque a dor não dura.

Está certo.

Repito: está certo.

Mas o meu coração não está certo.

O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo da vida.

Cá está a lição, ó alma da gente!

Se a mãe esquece o filho que saiu dela e morreu,

Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim?

Estou só no mundo, como um peão de cair.

Posso morrer como o orvalho seca.

Por uma arte natural de natureza solar,

Posso morrer à vontade da deslembrança,

Posso morrer como ninguém...

Mas isto dói,

Isto é indecente para quem tem coração...

Isto...

Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche com lágrimas...

Gloria? Amor? O anseio de uma alma humana?

Apoteose ás avessas...

Dêem-me Agua de Vidago, que eu quero esquecer a Vida!

29-8-1929


Álvaro de Campos - Livro de Versos 


POEMA DE CANÇÃO SOBRE A ESPERANÇA

  I


Dá-me lírios, lírios,

E rosas também.

Mas se não tens lírios

Nem rosas a dar-me,

Tem vontade ao menos

De me dar os lírios

E também as rosas.

Basta-me a vontade,

Que tens, se a tiveres,

De me dar os lírios

E as rosas também,

E terei os lírios —

Os melhores lírios —

E as melhores rosas

Sem receber nada.

A não ser a prenda

Da tua vontade

De me dares lírios

E rosas também.

                II

Usas um vestido

Que é uma lembrança

Para o meu coração.

Usou-o outrora

Alguém que me ficou

Lembrada sem vista.

Tudo na vida

Se faz por recordações.

Ama-se por memória.

Certa mulher faz-nos ternura

Por um gesto que lembra a nossa mãe.

Certa rapariga faz-nos alegria

Por falar como a nossa irmã.

Certa criança arranca-nos da desatenção

Porque amámos uma mulher parecida com ela

Quando éramos jovens e não lhe falávamos.

Tudo é assim, mais ou menos,

O coração anda aos trambulhões.

Viver é desencontrar-se consigo mesmo.

No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.

Mas gostava de te encontrar e que falássemos.

Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.

Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento

Em que pensei que nos poderíamos encontrar.

Guardo tudo,

(Guardo as cartas que me escrevem,

Guardo até as cartas que não me escrevem —

Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,

E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair

Através dele até mim!

Enfim, tudo pode ser...

És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —

E a minha visão de ti explode literariamente,

E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,

Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.

Boa noite na Austrália!

17-6-1929


Álvaro de Campos - Livro de Versos .