sábado, 31 de dezembro de 2016

Dos nossos males

XXII Dos nossos males

É sem razão, e é sem merecimento,
Que a gente a sorte maldiz:
Quanto a mim, sempre odiei o sofrimento,
Mas nunca soube ser feliz...

Mario Quintana - Espelho Mágico

Ora (direis) ouvir estrelas!

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto ...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."

(*) Soneto XIII da obra Via-Láctea

Olavo Bilac

Li um dia, não sei onde,

Li um dia, não sei onde,
Que em todos os namorados
Uns amam muito, e os outros
Contentam-se em ser amados.

Fico a cismar pensativa
Neste mistério encantado...
Diga prá mim: de nós dois
Quem ama e quem é amado?...

Florbela Espanca

Memória


Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade

NESTA vida, em que sou meu sono, Não sou meu dono

NESTA vida, em que sou meu sono,
Não sou meu dono,
Quem sou é quem me ignoro e vive
Através desta névoa que sou eu
Todas as vidas que eu outrora tive,
Numa só vida.
Mar sou; baixo marulho ao alto rujo,
Mas minha cor vem do meu alto céu,
E só me  encontro quando de mim fujo.

Quem quando eu era infante me guiava
Senão a vera alma que em mim estava?
Atada pelos braços corporais,
Não podia ser mais.
Mas, certo, um gesto, olhar ou esquecimento
Também, aos olhos de quem bem olhasse
A Presença Real sob disfarce
Da minha alma presente sem intento.

Fernando Pessoa

domingo, 11 de dezembro de 2016

Vaidade

"Vaidade, vaidade e vaidade em toda parte - até na beira do caixão e entre pessoas que se preparam para morrer em nome de uma convicção elevada. Vaidade! É de supor que seja um traço característico e uma enfermidade peculiar do nosso século. Por que não se ouvia falar desse horror entre os antigos, como se falava da varíola e da cólera? Por que será que em nosso século só existem três tipos de pessoas: as que de saída tomam a vaidade como um fato inevitável da existência e, portanto, como algo justo, e a ela se submetem espontaneamente; as que tomam a vaidade como uma condição infeliz, mas inexorável; e por último as que agem sob sua influência, de modo inconsciente e servil? Por que Homero e Shakespeare falavam de amor, de glória e de sofrimento, mas a literatura de nosso século é apenas de um interminável relato de 'Esnobismos' e  'Vaidades'?"

Liev Tolstói. Contos. "Sebastopol em maio".

Sê Só — onde é seguro


Todos sabem que os males são aliviados quando os sofremos em comum. Os homens parecem considerar o tédio como um desses males e, por isso, se reúnem para se entediarem em conjunto. Assim como o amor à vida não é no fundo mais que o medo da morte, assim também o instinto social dos homens não é um sentimento direto. Logo, não se baseia no amor à sociedade, senão no medo da solidão, porque não é exatamente a agradável companhia dos demais aquilo que se busca, mas a fuga da aridez e desolação da solidão, assim como da monotonia das suas próprias consciências, que são desocupadas. Para escapar da solidão, suportamos até má companhia e toleramos o fardo e o sentimento de restrição que toda sociedade necessariamente implica. Se, por outro lado, surge um desgosto disso tudo e, como consequência, surge o hábito da solidão e uma preparação contra a primeira impressão que produz, de modo que não produz os efeitos que descrevemos acima, então se pode tranquilamente estar sempre só e sem suspirar pela sociedade. Isso precisamente porque não é uma necessidade direta e porque, por outro lado, já estaremos acostumados às benéficas virtudes da solidão.

No mesmo sentido, disse Saadi em o Gulistan: Desde então, abandonamos a sociedade e trilhamos o caminho do isolamento. Porque a segurança está na solidão.

— Arthur Schopenhauer, in Aforismos Para a Sabedoria de Vida.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Quintana

"Nunca ninguém sabe se estou louco para rir ou para chorar...
Por isso o meu verso tem
esse quase imperceptível tremor...
A vida é triste, o mundo é louco!
Nem vale a pena matar-se por isso.
Nem por ninguém.
Por nenhum amor...
A vida continua, indiferente."

Mario Quintana

Não há vagas


O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão


O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras


- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”


Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço


O poema, senhores,
não fede
nem cheira


Ferreira Gullar