quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O DESESPERO DA PIEDADE

Vinicius de Moraes
Meu senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quando enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.

Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina.

Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.

Tende imensa piedade dos músicos dos cafés e casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.

Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.

Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Que em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...

Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas que são humildes nas suas carícias
Mas tende mais piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tende mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.

E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende píedade das mulheres
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!

Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta - que o homem não presta, não presta, meu Deus!

Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.

Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.

Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.

Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.

Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.

Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçada
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.

Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.

Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e de sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados - sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim

Vinícius de Moraes

domingo, 4 de outubro de 2020

Isolamento

O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A presença de outra pessoa — de uma só pessoa que seja — atrasa-me imediatamente o pensamento, e, ao passo que no homem normal o contacto com outrem é um estímulo para a expressão e para o dito, em mim esse contacto é um contra-estímulo, se é que esta palavra composta é viável perante a linguagem. Sou capaz, a sós comigo, de idear quantos ditos de espírito, respostas rápidas ao que ninguém disse, fulgurações de uma sociabilidade inteligente com pessoa nenhuma; mas tudo isso se me some se estou perante um outrem físico, perco a inteligência, deixo de poder dizer, e, no fim de uns quartos de hora, sinto apenas sono. Sim, falar com gente dá-me vontade de dormir. Só os meus amigos espectrais e imaginados, só as minhas conversas decorrentes em sonho, têm uma verdadeira realidade e um justo relevo, e neles o espírito é presente como uma imagem num espelho.

Pesa-me, aliás, toda a ideia de ser forçado a um contacto com outrem. Um simples convite para jantar com um amigo me produz uma angústia difícil de definir. A ideia de uma obrigação social qualquer — ir a um enterro, tratar junto de alguém de uma coisa do escritório, ir esperar à estação uma pessoa qualquer, conhecida ou desconhecida —, só essa ideia me estorva os pensamentos de um dia, e às vezes é desde a mesma véspera que me preocupo, e durmo mal, e o caso real, quando se dá, é absolutamente insignificante, não justifica nada; e o caso repete-se e eu não aprendo nunca a aprender.

«Os meus hábitos são da solidão, que não dos homens»; não sei se foi Rousseau, se Senancour, o que disse isto. Mas foi qualquer espírito da minha espécie — não poderei talvez dizer da minha raça.

Livro do Desassossego. Bernardo Soares.

sábado, 26 de setembro de 2020

Bandeira



Como é fácil amar aqueles que se despedem ! É que a chama que arde pelos que se afastam é mais pura, alimentada pelo fugidio lenço que nos acena do navio ou da janela do trem. A distância penetra como uma tinta naquele que desaparece e repassa-o de um fogo suave.

Walter Benjamin. Rua de mão única.

domingo, 30 de agosto de 2020

Elegia 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações no encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

 
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

 

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas de dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

 

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

 

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Se jogar no vazio

yves klein salto al vacío 1960

"Há algo do desejo de voar na foto de Klein. De braços abertos, de peito aberto, olhando para o céu como quem acredita ser capaz de voar. Mas ouve-se desde sempre que voar é impossível. Desde crianças tentamos e desde crianças descobrimos nossa impotencia. Mesmo que nem todo mundo saiba que talvez a unica função real da arte seja exatamente esta, nos fazer passar da impotència ao impossivel. Nos lembrar que o impossível é apenas o regime de existencia do que não poderia se apresentar no interior da situação em que estamos, embora não deixe de produzir efeitos como qualquer outra coisa existente. O impossivel é o lugar para onde nào cansamos de andar, mais de uma vez, quando queremos mudar de situação. Tudo o que realmente amamos foi um dia impossivel. 
Mas, como diz o inimigo não ha almoço de graça. Quem toca o impossivel paga um preco. Há o chao à nossa espera, o acidente, a quebra certa e segura como a dureza do asfalto. Dá até para imaginar o riso sardonico de Klein depois de ouvir tal objeção Como quem diz: mas é para isto que a arte existe em sua força politica para deixar os corpos se quebrarem. Se amássemos tanto nossos corpos como são, com suas afecções definidas e sua integridade inviolável, com sua saude a ser preservada compulsivamente, não haveria arte. Há momentos em que os corpos precisam se quebrar, se decompor, ser despossuidos para que novos circuitos de afetos apareçam. Fixados na integridade de nosso corpo próprio, não deixamos o próprio se quebrar, se desamparar de sua forma atual para que seja às vezes recomposto de maneira inesperada.

Saltar no vazio era a maneira tão própria à consciência histórico-politio singular de Yves Klein, de se colocar no limiar de um tempo bloqueado pela repetição compulsiva de uma sensibilidade atrofiada. Se a atrofia atingiu nossa linguagem de forma tão completa, a ponto de ela nos impedir de imaginar figuras alternativas, se fizemos a experiência, tão bem descrita por Nietzsche, de nunca nos desvencilharmos de Deus enquanto acreditarmos na gramática, então é hora de ir em direção ao fundamento e bater contra o chão (se falássemos alemão, eu faria um conhecido trocadilho dialético sobre ir ao fundamento). Era um pouco o que Schoenberg dizia a Cage: "Voce compõe como quem bate a cabeça contra a parede. Para o que a única resposta possivel era: "Então melhor bater a cabeça até a parede quebrar"

Vladimir Safatle. O circuito dos afetos .

quinta-feira, 14 de maio de 2020

o inferno

- É Tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito.

E Polo:

- O  inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebe-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem continuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não  é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

Ítalo Calvino. As cidades invisíveis.

terça-feira, 12 de maio de 2020

VISITAÇÃO

Que a dor venha, quando quiser, como quiser,
por quem a queira trazer: amigo, inimigo, indiferente.
A dor sempre foi bem recebida nesta casa,
sem gritos nem hostilidade.

Que o coração não seja como um frio sepulcro,
mas ardente e sensível e cheio de densas lágrimas. 
Que, no entanto, o lábio não trema nem se entreabra,
e os olhos continuem serenos, translúcidos, sem qualquer esquecimento.

Que a mão permaneça tranqüila, ou apenas se mova
para aquiescer em silêncio - pois à dor nem se precisa falar.

Que a dor venha, e seja como as cartas e os pássaros e as flores
que, às vezes, também pousam perto de nós o seu mistério.

Que seja de qualquer espécie a dor:
da mais simples, que é a vida,
à mais sem remédio, que é a morte
- cedo ou tarde,
de dia, de noite, 
no tumulto ou na solidão.

Isto não são palavras de página efêmera:
isto é uma velha inscrição na alma
- onde nada se apaga nem deforma.

Cecília Meireles

terça-feira, 28 de abril de 2020

despedida

"Eu acho que nunca cheguei a dizer a ninguém, só mesmo à Romina, mas na minha cabeça eu sempre escondia este pensamento: as despedidas têm cheiro. E não é cheiro bom tipo cha-de-caxinde, ou as plantas a darem ares duma primeira respiração na frescura da manhã, entre silêncios e cachimbos molhados. Não. Despedida tem cheiro de amizade cinzenta. Nem sei bem o que isso é, nem quero saber. Não gosto mesmo de despedidas.(...)


O camarada professor Angel continuava a falar e, sem querer, dizia coisas que nos emocionavam muito. Nas despedidas acontece isso: a ternura toca a alegria, a alegria traz uma saudade quase triste, a saudade semeia lágrimas, e nós, as crianças, não sabemos arrumar essas coisas dentro do nosso coração."



Conto "um pingo de chuva". Os da minha rua.  ondjaki. 

segunda-feira, 13 de abril de 2020

A peste e a desigualdade

"Havia, porém, outros motivos de inquietação, em consequência das dificuldades de abastecimento que cresciam com o tempo. A especulação interviera e oferecia, a preços fabulosos, os géneros de primeira necessidade que faltavam no mercado habitual. As famílias pobres viam-se, assim, numa situação muito difícil, enquanto às ricas não faltava praticamente nada.Enquanto a peste, pela imparcialidade eficaz com que exercia seu ministério, deveria ter reforçado a igualdade entre os nossos concidadãos pelo jogo normal dos egoísmos, ao contrário, tornava mais acentuado no coração dos homens o sentimento da injustiça."

Camus. A peste

Flagelos e vítimas

"Digo apenas que há neste mundo flagelos e vítimas e que é necessário, tanto quanto possivel, recusarmo-nos a estar com o flagelo. Isto parece a você talvez um pouco simples. Não sei se é simples, mas sei que é verdadeiro. (...)Foi assim que decidi pôr-me do lado das vítimas, em todas as ocasiões, para limitar os prejuízos. No meio delas, posso ao menos procurar saber como se chega à terceira categoria, isto é, à paz.


Ao terminar, Tarrou balançava a perna e batia levemente como pé no terraço. Depois de um silêncio, o médico soergueu-se um pouco e perguntou-lhe se tinha alguma ideia sobre o caminho que era preciso seguir para se chegar à paz.


-Tenho. A simpatia.

- Em resumo - disse Tarrou com simplicidade, o que me interessa é saber como alguém pode tornar-se um santo.


- Mas você não acredita em Deus...


- Justamente. Poder ser um santo sem Deus é o único problema concreto que tenho hoje.(...)


- Talvez - respondeu o médico -, mas, sabe, sinto-me mais solidário com os vencidos do que com os santos. Creio que não sinto atração pelo heroísmo e pela santidade. O que me interessa é ser um homem.


- Sim, buscamos a mesma coisa, mas eu sou menos ambicioso."


Albert Camus, in A peste.

segunda-feira, 2 de março de 2020

O silêncio

"Acho que não tem muita gente que aprecia o silêncio ou que perceba que é o mais perto da música que se pode chegar. O silêncio deixa algumas pessoas aflitas ou muito solitárias."
Toni Morrison. Deus ajude essa criança.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Medo do escuro


No meio da calçada um vulto 
escuro no escuro. 
A mocinha no meio do caminho 
trêmula de pavor, gritos em desejos 
sufocam-lhe a garganta. 
Mãos assassinas apertam-lhe a glote. 
SOCORRO, grita calada.

O vulto escuro no escuro 
se aproxima. Arma em riste. 
Abruptamente cola 
o seu corpo ao da mocinha. 
A arma em riste continua.

Um pedaço de pau, 
em desconexos giros, 
movimenta no espaço. 
No meio do corpo da mocinha 
um vulto escuro no escuro,

como se buscasse aconchego, 
pede desculpas pelo encontrão 
e implora quase em sussurro 
uma ajuda para atravessar a rua.

Um homem cego 
entre um copo e outro 
se distanciou de seus amigos 
e de sua bengala.

Conceição Evaristo. Poemas da recordação e outros movimentos.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

A origem dos outros

"Como uma pessoa se torna racista ou sexista? Já que ninguém nasce racista, e tampouco existe qualquer predisposição fetal ao sexismo, aprende-se a Outremização não por meio do discurso ou da instrução, mas pelo exemplo."

"Qual é a natureza do conforto proporcio nado pela Outremização, de sua atração, de seu poder (social, psicológico e econômico )? Será a emoção de pertencer, que implica fazer parte de algo maior do que um único eu isolado, e portanto mais forte? Minha opinão inicial tende para a necessidade social/
psicológica de um "estrangeiro", um Outro, que possibilite definir o eu isolado (aquele que busca multidões é sempre o solitário)."

"(...) não existem estrangeiros. Existem apenas versões de nós mesmos; muitas delas nós não abraçamos, e da maioria desejamos nos proteger. Pois o estrangeiro não é desconhecido, e sim aleatório; não é alienígena, e sim lembrado; e é o caráter aleatório do encontro com nossos eus já conhecidos, ainda que não admitidos, que causa um sinal de alarme. Que nos faz rejeitar a figura e a emoção que ela provoca, principalmente quando essas emoções são profundas. É também o que nos faz querer possuir, governar e administrar o Outro. Romantizá-lo, se pudermos, e assim trazê-lo de volta para dentro de nossos próprios espelhos. Em qualquer dos casos (seja no alarme, seja na falsa reverência), nós lhe negamos a realidade como pessoa, a individualidade específica que assistimos manter para nós mesmos." 

"A ficção narrativa proporciona uma selva controlada, uma oportunidade de ser e de se tornar o Outro. O estrangeiro. Com empatia, clareza e o risco de uma autoinvestigação." 

Toni Morrison. "A origem dos outros."

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Ser ou tornar-se estrangeiro


(...) não existem estrangeiro. Existem apenas versões de nós mesmos; muitas delas nós não abraçamos, e da maioria desejamos nos proteger. Pois o estrangeiro  não é desconhecido, e sim aleatório; não é alienígena, e sim lembrado; e é o caráter aleatório do encontro com nossos eus já conhecidos, ainda que não admitidos, que causa um sinal de alarme. Que nos faz rejeitar a figura e a emoção que ela provoca, principalmente quando essas emoções são profundas. É também o que nos faz querer possuir, governar e administrar o Outro. Romantizá-lo, se pudermos, e assim trazê-lo de volta para dentro de nossos próprios espelhos. Em qualquer dos casos (seja no alarme, seja na falsa reverência), nós lhe negamos a realidade como pessoa, a individualidade específica que instimos manter para nós mesmos.


Toni Morrison. A origem dos outros. Seis ensaios sobre racismo e literatura.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

OS BRAVOS E SERENOS HERDARÃO A TERRA

 

O cotidiano plenifica-me
de dor, abandono e busca. 
O grão de arroz que soçobra 
na pia, me emociona
nasalizando-me a voz 
e brilha como um diamante 
preso nos campos vazios 
onde a fome brinca 
escovando os dentes dos famintos 
com uma pasta dentifrícia 
feita de saliva seca 
que sabe a fome. 

No cotidiano busco a plêiade 
tenaz da esperança 
e plenificada de crença e gozo 
encontro outras laboriosas mãos 
revolvendo a terra 
e retomando as sementes 
dos falsos donos da gleba. 

Do cotidiano só irmos. 
Sorrimos o nosso sapiente riso 
com os nossos dentes 
abrilhantados de fome e força, 
porque aqueles que todos pensavam mansos, 
bravios se tornaram 
e então, seremos nós, 
bravos e serenos, 
que herdaremos a terra. 

 Conceição Evaristo. "Poemas da recordação e outros movimentos".

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Certidão de óbito


Os ossos de nossos antepassados
colhem as nossas perenes lágrimas
pelos mortos de hoje.
Os olhos de nossos antepassados,
negras estrelas tingidas de sangue,
elevam-se das profundezas do tempo
cuidando de nossa dolorida memória.
A terra está coberta de valas
e a qualquer descuido da vida
a morte é certa.
A bala não erra o alvo, no escuro
um corpo negro bambeia e dança.
A certidão de óbito, os antigos sabem,
veio lavrada desde os negreiros.
Conceição Evaristo. Poemas da recordação e outros movimentos.

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Tempestades

Neste ponto foi a moça interrompida por uma observação banal do irmão, que tinha um termômetro infalível nos pés e anunciou que havia trovoada iminente. A irmã olhou silenciosamente para ele, e admirou consigo mesma a ventura daqueles para quem as tempestades do ar importam mais que as 
tempestades da vida.

Machado de Assis. Ressurreição.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

É carnaval

“É Carnaval, e estão as ruas cheias
De gente que conserva a sensação,
Tenho intenções, pensamento, ideias,
Mas não posso ter máscara nem pão.

Esta gente é igual, eu sou diverso —
Mesmo entre os poetas não me aceitariam.
Às vezes nem sequer ponho isto em verso —
E o que digo, eles nunca assim diriam.

Que pouca gente a muita gente aqui!
Estou cansado, com cérebro e cansaço.
Vejo isto, e fico, extremamente aqui
Sozinho com o tempo e com o espaço.

Detrás de máscaras nosso ser espreita,
Detrás de bocas um mistério acode
Que meus versos anódinos enjeita.

Sou maior ou menor? Com mãos e pés
E boca falo e mexo-me no mundo.
Hoje, que todos são máscaras, és
Um ser máscara-gestos, em tão fundo…”

—  Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

Quem sou eu?

Quem sou eu?

Quem sou eu? que importa quem?

Sou um trovador proscrito,

Que trago na fronte escrito

Esta palavra — Ninguém! —

(A. E. Zalvar — Dores e Flores)

 

Amo o pobre, deixo o rico,

Vivo como o Tico-tico;

Não me envolvo em torvelinho,

Vivo só no meu cantinho:

Da grandeza sempre longe,

Como vive o pobre monge.

Tenho mui poucos amigos,

Porém bons, que são antigos,

Fujo sempre à hipocrisia,

À sandice, à fidalguia;

Das manadas de Barões?

Anjo Bento, antes trovões.

Faço versos, não sou vate,

Digo muito disparate,

Mas só rendo obediência

À virtude, à inteligência:

Eis aqui o Getulino

Que no pletro anda mofino.

Sei que é louco e que é pateta

Quem se mete a ser poeta;

Que no século das luzes,

Os birbantes mais lapuzes,

Compram negros e comendas,

Têm brasões, não — das Kalendas,

E, com tretas e com furtos

Vão subindo a passos curtos;

Fazem grossa pepineira,

Só pela arte do Vieira,

E com jeito e proteções,

Galgam altas posições!

Mas eu sempre vigiando

Nessa súcia vou malhando

De tratantes, bem ou mal

Com semblante festival.

Dou de rijo no pedante

De pílulas fabricante,

Que blasona arte divina,

Com sulfatos de quinina,

Trabusanas, xaropadas,

E mil outras patacoadas,

Que, sem pinga de rubor,

Diz a todos, que é DOUTOR!

Não tolero o magistrado,

Que do brio descuidado,

Vende a lei, trai a justiça

— Faz a todos injustiça —

Com rigor deprime o pobre

Presta abrigo ao rico, ao nobre,

E só acha horrendo crime

No mendigo, que deprime.

- Neste dou com dupla força,

Té que a manha perca ou torça.

Fujo às léguas do lojista,

Do beato e do sacrista —

Crocodilos disfarçados,

Que se fazem muito honrados,

Mas que, tendo ocasião,

São mais feroz que o Leão.

Fujo ao cego lisonjeiro,

Que, qual ramo de salgueiro,

Maleável, sem firmeza,

Vive à lei da natureza;

Que, conforme sopra o vento,

Dá mil voltas num momento.

O que sou, e como penso,

Aqui vai com todo o senso,

Posto que já veja irados

Muitos lorpas enfunados,

Vomitando maldições,

Contra as minhas reflexões.

Eu bem sei que sou qual Grilo,

De maçante e mau estilo;

E que os homens poderosos

Desta arenga receiosos

Hão de chamar-me Tarelo,

 

Bode, negro, Mongibelo;

Porém eu que não me abalo,

Vou tangendo o meu badalo

Com repique impertinente,

Pondo a trote muita gente.

Se negro sou, ou sou bode

Pouco importa. O que isto pode?

Bodes há de toda a casta,

Pois que a espécie é muito vasta.

Há cinzentos, há rajados,

Baios, pampas e malhados,

Bodes negros, bodes brancos,

E, sejamos todos francos,

Uns plebeus, e outros nobres,

Bodes ricos, bodes pobres,

Bodes sábios, importantes,

E também alguns tratantes...

Aqui, nesta boa terra

Marram todos, tudo berra;

Nobres Condes e Duquesas,

Ricas Damas e Marquesas,

Deputados, senadores,

Gentis-homens, veadores;

Belas Damas emproadas,

De nobreza empantufadas;

Repimpados principotes,

Orgulhosos fidalgotes,

Frades, Bispos, Cardeais,

Fanfarrões imperiais,

Gentes pobres, nobres gentes

Em todos há meus parentes.

Entre a brava militança

Fulge e brilha alta bodança;

Guardas, Cabos, Furriéis,

Brigadeiros, Coronéis,

Destemidos Marechais,

Rutilantes Generais,

Capitães de mar-e-guerra,

— Tudo marra, tudo berra —

Na suprema eternidade,

Onde habita a Divindade,

Bodes há santificados,

Que por nós são adorados.

Entre o coro dos Anjinhos

Também há muitos bodinhos. —

O amante de Syiringa

Tinha pêlo e má catinga;

O deus Mendes, pelas contas,

Na cabeça tinha pontas;

Jove quando foi menino,

Chupitou leite caprino;

E, segundo o antigo mito,

Também Fauno foi cabrito.

Nos domínios de Plutão,

Guarda um bode o Alcorão;

Nos lundus e nas modinhas

São cantadas as bodinhas:

Pois se todos têm rabicho,

Para que tanto capricho?

Haja paz, haja alegria,

Folgue e brinque a bodaria;

Cesse pois a matinada,

Porque tudo é bodarrada!

 

(SILVA, Júlio Romão da. Luiz Gama e suas poesias satíricas. 2 ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1981. p.177-181.)

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Ficção e metafísica

Os textos ficcionais prestam auxilio a nossa tacanheza metafísica. Vivemos no grande labirinto do mundo real, que é maior e mais complexo que o mundo de Chapeuzinho Vermelho. É um mundo cujos caminhos ainda não mapeamos inteiramente e cuja estrutura total não conseguimos descrever. Na esperança de que existam regras do jogo, ao longo dos séculos a humanidade vem se perguntando se esse labirinto tem um autor ou talvez mais de um. E vem pensando em Deus ou nos deuses como autores empíricos, narradores ou autores-modelo. As pessoas tentam imaginar  uma divindade empírica: se tem barba; se é Ele. Ela ou Isso: se nasceu ou sempre existiu; e até (em nossa própria época) se morreu. Sempre se procurou Deus como Narrador-nos intestinos dos animais, no vôo dos pássaros, na sarça ardente, na primeira frase dos Dez Mandamentos. Alguns, todavia (inclusive filósofos, é claro, mas também adeptos de muitas religiões), procuraram Deus como Autor-Modelo - quer dizer, Deus como a Regra do Jogo, como a Lei que torna ou um dia tornará compreensível o labirinto do mundo. A Divindade nesse caso é algo que precisamos descobrir ao mesmo tempo que descobrimos por que estamos no labirinto e qual é o caminho que nos cabe percorrer.

(...)há outro motivo pelo qual nos sentimos metafisicamente mais à vontade na ficção do que na realidade.  O problema com o mundo real é que, desde o começo dos tempos, os seres humanos vêm se perguntando se há uma mensagem e, em havendo, se essa mensagem faz sentido. Com os
universos ficcionais sabemos sem dúvida que têm uma mensagem e que uma entidade autoral está por trás deles como criador e dentro deles como um conjunto de instruções de leitura.

Umberto Eco. Seis passeios pelo bosque da ficção.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Onde está Deus, mesmo que não exista?

Onde está Deus, mesmo que não exista? Quero rezar e chorar, arrepender-me de crimes que não cometi, gozar ser perdoado como uma carícia não propriamente materna.

Um regaço para chorar, mas um regaço enorme, sem forma, espaçoso como uma noite de Verão, e contudo próximo, quente, feminino, ao pé de uma lareira qualquer... Poder ali chorar coisas impensáveis, falências que nem sei quais são, ternuras de coisas inexistentes, e grandes dúvidas arrepiadas de não sei que futuro...

Uma infância nova, uma ama velha outra vez, e um leito pequeno onde acabe por dormir, entre contos que embalam, mal ouvidos, com uma atenção que se torna morna, os perigos que penetravam em jovens cabelos louros como o trigo... E tudo isto muito grande, muito eterno, definitivo para sempre, da estatura única de Deus, lá no fundo triste e sonolento da realidade última das coisas...

Um colo ou um berço ou um braço quente em torno ao meu pescoço... Uma voz que canta baixo e parece querer fazer-me chorar... O ruído de lume na lareira... Um calor no Inverno... Um extravio morno da minha consciência... E depois sem som, um sonho calmo num espaço enorme, como a lua rodando entre estrelas...

Quando ponho de parte os meus artifícios e arrumo a um canto, com um cuidado cheio de carinho — com vontade de lhes dar beijos — os meus brinquedos, as palavras, as imagens, as frases — fico tão pequeno e inofensivo, tão só num quarto tão grande e tão triste, tão profundamente triste! ...

Afinal eu quem sou, quando não brinco? Um pobre órfão abandonado nas ruas das sensações, tiritando de frio às esquinas da Realidade, tendo que dormir nos degraus da Tristeza e comer o pão dado da Fantasia. De um pai sei o nome; disseram -me que se chamava Deus, mas o nome não me dá ideia de nada. Às vezes, na noite, quando me sinto só, chamo por ele e choro, e faço-me uma ideia dele a quem possa amar... Mas depois penso que o não conheço, que talvez ele não seja assim, que talvez não seja nunca esse o pai da minha alma...

Quando acabará isto tudo, estas ruas onde arrasto a minha miséria, e estes degraus onde encolho o meu frio e sinto as mãos da noite por entre os meus farrapos? Se um dia Deus me viesse buscar e me levasse para sua casa e me desse calor e afeição... Às vezes penso isto e choro com alegria a pensar que o posso pensar... Mas o vento arrasta-se pela rua fora e as folhas caem no passeio... Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm sentido nenhum... E de tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada, que nenhum Amor quis para seu filho adoptivo, nem nenhuma Amizade para seu companheiro de brinquedos.

Tenho frio de mais. Estou tão cansado no meu abandono. Vai buscar, O Vento, a minha Mãe. Leva-me na Noite para a casa que não conheci... Torna a dar-me ó Silêncio imenso, a minha ama e o meu berço e a minha canção com que dormia...


Livro do Desassossego por Bernardo Soares