domingo, 24 de agosto de 2014

A Modéstia

A Modéstia 

Quem fez da modéstia uma virtude esperava que todos passassem a falar de si próprios como se fossem idiotas.
O que é a modéstia senão uma humildade hipócrita, através da qual um homem pede perdão por ter as qualidades e os méritos que os outros não têm?

— Arthur Schopenhauer, in "Parerga e Paralipomena". 


Florbela

"Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...

E não sou nada!..."

Florbela Espanca

às vezes lembro-me de ti

às vezes lembro-me de ti
e nem sequer me sinto só, ou triste, ou mísero
de amor.
és presença, mas espectro aos meus abraços
que há muito recolhi, como velas dobradas num mar
de ociosos ventos.
e pouco importa que tenhas ido com a maré de um
tempo sem memória.
contudo, a tua sombra permanece. nela crescem algas
e criaturas marinhas fincam-se-lhe para lhe dar forma.
não é saudade que sinto. talvez um estranho capricho!
é,
talvez,
a vontade súbita de me lembrar de ti!

(Luís R Santos)

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Novo dia?


São seis horas da manhã e o despertador acorda o homem. Esse abre os olhos para a claridade da manha. Levanta-se preguiçosamente e toma banho. Ao sentir a água cair sobre seu corpo, percebe que há algo diferente nesse novo dia.O homem se veste, toma seu rápido café e sai para o trabalho.

Ao chegar à rua, caminhando para o ponto de ônibus, tenta descobrir o que está diferente nesse dia. Olha as pessoas ao seu redor e parecem todas normais. Lá vai o seu vizinho do 302 para a faculdade com os livros nas mãos tagalerando com uma moça, que parecia ansiosa para fugir dele.  Do outro lado da rua ele vê a senhora  do 702, séria e compenetrada em seus pensamentos e se lembra dos boatos de que ela estaria traindo o seu marido. Mas o que ele tem a ver com a vida dela, se questiona. Tudo a sua volta parecia seguir o ritual diário, até mesmo o cachorro latindo ao longe era o de sempre. Mas ele sabia que havia algo novo nesse dia.

No ônibus a sensação de estranhamento o acompanhou. Chegou no escritório, bateu cartão, cumprimentou os colegas, sentou em sua mesa e ficou um bom tempo a observar o ambiente em que passava a maior parte do tempo de sua vida. De repente, aquele sentimento que havia algo diferente acontecendo o dominou completamente, e ele percebe que não conseguia ver sentido algum em nada do que ele estava fazendo e sempre havia feito.  Tudo  gerava um cansaço e a percepção de inutilidade da vida. Porque gastar tanto tempo e energia em ações sem sentido?  Por que passar os poucos anos de sua existência  envolvido em coisas que não traziam significado para sua vida?  Levantar todo dia cedo e realizar  o mesmo ritual vazio, de simplesmente se manter dentro da estrutura do sistema, de sobreviver...

“Vai ficar no mundo das nuvens até quando?” O homem assusta e percebe que é o seu chefe que lhe fala. “Não pagamos você para ficar pensando. Seu trabalho aqui é produzir, portanto, acorde e comece a trabalhar”. Produção...

O homem olha o chefe sem entender direito o que ele lhe diz. Pior. Não sabe se consegue lhe explicar o que se passa em sua mente.  Então ele era uma peça na engrenagem de produção?  Apenas uma pequena parte de manutenção do Grande Sistema. Não era um ser, era uma coisa.

Nesse momento, ele começa a compreender que a sensação diferente que ele estava sentindo desde a manhã era o desejo de ser humano em um mundo coisificante. Olha os papéis sobre a mesa e mira os olhos de seu superior hierárquico na empresa e decide buscar a libertação de seu estado desumanizador.

Levanta-se e diz ao chefe que vai embora. O chefe, assustado, pega no ombro do homem, como se tivesse tentando trazê-lo de volta à realidade. “O que você está dizendo? Como ir embora? Enlouqueceu de vez?”. “Não estou louco”, diz o homem. “Simplesmente desejo a vida”.  Queria explicar para aquela criatura estupefata à sua frente que entendia o seu susto diante de sua decisão. Ele estava abrindo mão de um bom emprego e de um salário razoável, da segurança e da perspectiva de uma carreira. Simplesmente respondeu: “Procurarei o sentido da vida”.

Ao chegar à rua, o homem respira fundo e olha à sua volta. Estava livre. Agora ele podia viver o que quisesse escolher, ir para onde desejasse, construir a história de seu jeito.  Olhou o céu, estava nublado. Havia chovido à pouco tempo. Caminha pelas calçadas da grande cidade. Um carro passa e se desvia de um cachorro que se aventurou pela rua. Ao se desviar do animal o motorista perde o controle e o veículo se choca no homem, jogando-o sobre um muro. O homem tem apenas uns segundos para tornar a olhar o céu e ver o sol se esforçando para sair entre as nuvens. Respirou pela última vez pensando que se até o astro rei era impedido de mostrar seu brilho, às vezes, a vida não o aceitava livre e autônomo. 

Márcio Ramos