segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Os dogmas inconscientes

Podemos até descobrir o erro de um ser, desvelar a inanidade de seus desígnios e de suas empresas; mas, como arrancá-lo de seu encarniçado apego ao tempo, quando esconde um fanatismo tão inveterado quanto seus instintos, tão antigo quanto seus preconceitos? Trazemos conosco, como um tesouro irrecusável, um monte de crenças e de certezas indignas. Mesmo quem consegue desembaraçar-se delas e vencê-las, permanece – no deserto de sua lucidez – ainda fanático: de si mesmo, de sua própria existência; humilhou todas as suas obsessões, salvo o terreno em que afloram; perdeu todos os seus pontos fixos, salvo a fixidez da qual provém. A vida tem dogmas mais imutáveis que a teologia, pois cada existência está ancorada em infalibilidades que fazem empalidecer as elucubrações da demência ou da fé. O cético mesmo, apaixonado por suas dúvidas, mostra-se fanático pelo ceticismo. O homem é o ser dogmático por excelência; e seus dogmas são tanto mais profundos quando não os formula, quando os ignora e os segue.

Todos nós cremos em muito mais coisas do que pensamos, abrigamos intolerâncias, cultivamos prevenções sangrentas e, defendendo nossas ideias com meios extremos, percorremos o mundo como fortalezas ambulantes e irrefragáveis. Cada um é para si mesmo um dogma supremo; nenhuma teologia protege seu deus como nós protegemos nosso eu; e este eu, se o assediamos com dúvidas e o colocamos em questão, é apenas por uma falsa elegância de nosso orgulho: a causa está ganha de antemão.

Como escapar ao absoluto de si mesmo? Seria preciso imaginar um ser desprovido de instintos, que não portasse nenhum nome e a quem fosse desconhecida sua própria imagem. Mas tudo no mundo nos devolve nossos traços; e a própria noite nunca é bastante espessa para impedir que nos miremos.

Demasiado presentes a nós mesmos, nossa inexistência antes do nascimento e depois da morte só influi sobre nós como ideia e apenas alguns instantes; sentimos a febre de nossa duração como uma eternidade falsificada, mas que, entretanto, permanece inesgotável em seu princípio.

Está ainda por nascer quem não se adore a si mesmo. Tudo o que vive se aprecia; de outro modo, de onde viria o pavor que faz estragos nas profundidades e nas superfícies da vida? Cada um é para si o único ponto fixo no universo. E se alguém morre por uma ideia, é porque é sua ideia, e sua ideia é sua vida

Nenhuma crítica de nenhuma razão despertará o homem de seu “sono dogmático”. Poderá abalar as certezas irrefletidas que abundam na filosofia e substituir as afirmações rígidas por outras mais flexíveis, mas como, por um método racional, conseguirá sacudir a criatura, adormecida sobre seus próprios dogmas, sem fazê-la perecer?

Emil Cioran

domingo, 27 de dezembro de 2015

Esgotamento Por Excesso de Sonhos

Se conseguíssemos conservar a energia que prodigamos nessa sucessão de sonhos realizados noturnamente, a profundidade e a sutileza do espírito alcançariam proporções insuspeitáveis. O argumento de um pesadelo exige um desgaste nervoso mais extenuante que a construção teórica melhor articulada. Como, após o despertar, recomeçar a tarefa de alinhar ideias quando, na inconsciência, estávamos imersos em espetáculos grotescos e maravilhosos, e perambulávamos através das esferas sem o obstáculo da antipoética Causalidade? Durante horas fomos semelhantes a deuses ébrios e, subitamente, quando os olhos abertos suprimem o infinito noturno, temos que voltar a enfrentar, sob a mediocridade do dia, uma porção de problemas incolores, sem que nos ajude nenhum dos fantasmas da noite. A fantasmagoria gloriosa e nefasta terá sido então inútil; o sono nos esgotou em vão. Ao despertar, outro tipo de cansaço nos espera; mal tivemos tempo para esquecer o da tarde e eis-nos enfrentando o da aurora. Esforçamo-nos horas e horas na imobilidade horizontal sem que o cérebro aproveitasse absolutamente nada de sua absurda atividade. Um imbecil que não fosse vítima deste desperdício, que acumulasse todas as suas reservas sem dissipá-las em sonhos, poderia, possuidor de uma vigília ideal, desvendar todos os segredos metafísicos ou inciar-se nas mais inextricáveis dificuldades matemáticas.

Depois de cada noite estamos mais vazios: nossos mistérios, como nossas mágoas, fluíram em nossos sonhos. Assim, o labor do sono não só diminui a força de nosso pensamento, como também a de nossos segredos...

Emil Cioran,  Breviário de Decomposição

Dupla Face da Liberdade

" Ainda que o problema da liberdade seja insolúvel, podemos sempre discorrer sobre ele, colocar-nos do lado da contingência ou da necessidade... Nossos temperamentos e nossos preconceitos nos facilitam uma opção que circunscreve e simplifica o problema sem resolvê-lo. Se nenhuma construção teórica consegue torná-lo perceptível a nós, fazer-nos experimentar sua realidade espessa e contraditória, uma intuição privilegiada instala-nos no coração mesmo da liberdade, a despeito de todos os argumentos inventados contra ela. E temos medo; temos medo da imensidão do possível, não estando preparados para uma revelação tão vasta e tão súbita, para esse bem perigoso ao qual aspiramos e ante o qual retrocedemos. Que vamos fazer, habituados às cadeias e às leis, frente a um infinito de iniciativas, a uma orgia de resoluções ? A sedução do arbitrário no apavora. Se podemos começar qualquer ato, se não há limites para a inspiração e para os caprichos, como evitar nossa perda na embriaguez de tanto poder ? 

A consciência, abalada por esta revelação, interroga-se e estremece. Quem, em um mundo em pode dispor de tudo, não foi vítima de vertigem? O assassino faz um uso ilimitado de sua liberdade e não pode resistir à ideia de seu poder. Está dentro das possibilidades de cada um de nós tirar a vida de outro. Se todos os que matamos em pensamento desaparecessem de verdade, a Terra não teria mais habitantes. Trazemos em nós um carrasco reticente, um criminoso irrealizado. E os que não têm audácia de confessar suas tendências homicidas, assassinam em sonhos, povoam de cadáveres seus pesadelos. Ante um tribunal absoluto, só os anjos seriam absolvidos. Pois nunca houve ser que não desejasse - ao menos inconscientemente - a morte de outro ser. Cada qual arrasta atrás de si um cemitério de amigos e inimigos; importa pouco que esse cemitério seja relegado aos abismos do coração ou projetado à superfície dos desejos.

A liberdade, concebida em suas implicações últimas, coloca a questão de nossa vida ou da dos outros; comporta a dupla possibilidade de salvar-nos ou de perder-nos. Mas só nos sentimos livres, só compreendemos nossas oportunidades e nossos perigos, em certos sobressaltos. E é a intermitência desses sobressaltos, sua raridade, que explica por que este mundo não passa de um matadouro medíocre e de um paraíso fictício. Dissertar sobre a liberdade não leva a nenhuma consequência, nem para bem nem para mal; mas só temos instantes para dar-nos conta de que tudo depende de nós.

A liberdade é um principio ético de essência demoníaca.

Emil Cioran, em Breviario de Decomposição.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

OS DANÇARINOS DO ARAME

Dentro das atuais coordenadas do espaço e do tempo, aqui nos vamos equilibrando sobre este fio de vida...

Que rede de segurança, pensamos nós, cheios de esperança e medo, que rede de segurança nos aparará?"

Mario Quintana,

in Caderno H

sábado, 12 de dezembro de 2015

História x estória? QUANDO ME PERGUNTAM


Quando me perguntam por que não aderi a essa história de "estória", respondo (e não evasivamente) que é simplesmente porque, para mim, tudo é verdade mesmo. Acredito em tudo. Acreditar no que se lê é a única justificativa do que está escrito. Ai do autor que não der essa impressão de verdade! Que é uma história? É um fato - real ou imaginário - narrado por alguém. O contador de histórias não é um contador de lorotas. Ou, para bem frisar a diferença, o contador de histórias não é um contador de
estórias. E depois, por que hei de escrever "estória" se eu nunca pronunciei a palavra desse modo? Não sou tão analfabeto assim. Parece incrível que talvez a única sugestão infeliz do mestre João Ribeiro tenha pegado por isso mesmo... Também um dia parece que Eça de Queirós se distraiu e o Conselheiro Acácio, por vingança, lhe soprou esta frase pomposa: "Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia." Tanto bastou para que lhe erguessem um monumento, com a citada frase perpetuada em
bronze! Pobre Eça...
O mundo é assim.

Mario Quintana - Caderno H