quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O tempo não é linear

"eu estou bem, dizia-lhe, estou bem. e ele queria saber se estar bem era andar de trombas. eu respondi que o tempo não era linear. preparem-se sofredores do mundo, o tempo não é linear. o tempo vicia-se em ciclos que obedecem a lógicas distintas e que se vão sucedendo uns aos outros repondo ao sofredor, e qualquer outro indivíduo, novamente num certo ponto de partida. é fácil de entender. quando queremos que o tempo nos faça fugir de alguma coisa, de um acontecimento, inicialmente contamos os dias, às vezes até as horas, e depois chegam as semanas triunfais e os largos meses e depois os didáticos anos. mas para chegarmos aí temos de sentir o tempo também de outro modo.
perdemos alguém e temos de superar o primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro verão, e o primeiro outono. e dentro disso, é preciso que superemos os nossos aniversários, tudo quanto dá direito a parabéns a você, as datas da relação, o natal, a mudança dos anos, até a época dos morangos, o magusto, as chuvas de molha-tolos, o primeiro passo de um neto, o regresso de um satélite à terra, a queda de mais um avião, as notícias sobre o brasil, enfim, tudo. e também é preciso superar a primeira saída de carro a sós. o primeiro telefonema que não pode ser feito para aquela pessoa. a primeira viagem que fazemos sem a sua companhia. os lençóis que mudamos pela primeira vez. as janelas que abrimos. a sopa que preparamos para comermos sem mais ninguém. o telejornal que já não comentamos. um livro que se lê em absoluto silêncio.
o tempo guarda cápsulas indestrutíveis porque nessa cápsula se injeta também a nitidez do quanto amávamos quem perdemos, a nitidez do seu rosto, que por vezes se perde mas ressurge sempre nessas alturas, até o timbre da sua voz, chamando o nosso nome ou, mais cruel ainda, dizendo que nos ama com um riso incrível pelo qual nos havíamos justificado em mil ocasiões no mundo."

valter hugo mãe,  In a máquina de fazer espanhóis

o fascismo nosso de cada dia

o silva da europa distraiu-nos voltando ao mesmo assunto, o fascismo. colega silva, ainda está cá dentro, é muito difícil tirarmos das ideias a educação que nos deram de crianças. podemos ser todos inteligentes como super-homens, adultos feitos à maneira e pensantes livremente, mas a educação que nos dão em criança tem amarras para a vida inteira e, discretamente, aqui e acolá os tiques fascistas hão de vir ao de cima. já nem nos damos conta. o senhor pereira interrompeu-o e disse, ó senhor cristiano, você fala de cada coisa, você relaxe, homem, relaxe.

valter hugo mãe, In a máquina de fazer espanhóis.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

A máquina de fazer espanhóis

aprendi tudo ao contrário depois. ser religioso é desenvolver uma mariquice no espírito. um medo pelo que não se vê, como ter medo do escuro porque o bicho-papão pode estar à espreita para nos puxar os cabelos. esperar por deus é como esperar pelo peter pan e querer que traga a fada sininho com a sua minissaia erótica tão desadequada à ingenuidade das crianças. o ser humano é só carne e osso e uma tremenda vontade de complicar as coisas. eu aprendi que aqueles crentes se esfolavam uns aos outros de tanto preconceito e estigmatização. e aprendi, no dia em que perdemos o nosso primeiro filho, que estávamos sozinhos no mundo. atirados para o fundo de um quarto sem qualquer ajuda. e eu ainda fui pedir ao padre que nos fizesse chegar a um hospital, que fosse rápido, porque as águas tinham rompido e a laura não se mexia. não temos carros neste bairro, dizia-lhe eu, é um bairro pobre, ninguém tem dessas máquinas. mas, como está, não há parteira que lhe pegue. está a sangrar, padre, a laura está a sangrar do nosso filho. e o homem disse umas quantas vezes que tudo estaria na vontade de deus e queria com isso afirmar que correria bem. era para que eu não me preocupasse. e depois foi lá ele com duas velhas e não se pensou em nenhum carro. o nosso filho já estava no colo da laura e ela estava sem sentidos, afastada pela dor de permanecer com os olhos abertos sobre o silêncio mortal do bebé.

Valter Hugo Mãe

sábado, 8 de outubro de 2016

Somos o resultado de tanta gente

"O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos de mil pais e de mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós."

Valter Hugo Mãe,  O filho de mil homens

Os filhos

“Os filhos, pensava ele, são modos de estender o corpo e aquilo a que se vai chamando alma. São como continuarmos por onde já não estamos e estarmos, passarmos a estar verdadeiramente, porque ansiamos e sofremos mais pelos filhos do que por nós próprios, assim como nos reconfortam mais as alegrias deles do que a satisfação que diretamente auferimos. Por isso temos gula pelos filhos, uma gula do tamanho dos absurdos, sempre começada, sempre incontrolável. E queremos tudo dos filhos como se nunca nos bastassem, nunca nos cansassem porque, ainda que nos cansemos, estamos incondicionalmente dispostos a continuar, uma e outra vez até que seja o corpo extenuado a desistir, mas nunca o nosso ímpeto, nunca o nosso espírito. Até porque desistir de um filho seria como desistir de nós próprios. Cada filho somos nós no melhor que temos para dar. No melhor que temos para ser.”

Valter Hugo Mãe,  O filho de mil homens

Paixão e amor

"Quando se conhece alguém, pensou o Crisóstomo, procuram-se as exuberâncias dos gestos, como para fazer exuberar o amor, mas o amor é uma pacificação com as nossas naturezas e deve conduzir ao sossego. O gesto exuberante é um gesto desesperado de quem não está em equilíbrio. Parecia agora saber tanto sobre o assunto, pensava, como se pudesse, ao acertar na mulher, saber por instinto tudo que estava certo ou errado."
Valter Hugo Mãe,  O filho de mil homens.

O amor

"O Crisóstomo explicava que o amor era uma atitude. Uma predisposição natural para se ser a favor de outrem. É isso o amor. Uma predisposição natural para se favorecer alguém. Ser, sem sequer se pensar, por outra pessoa. Isso dava também para as variações estranhas do amor. O miúdo perguntava se havia quem amasse por crime, por maldade. Alguém amar por maldade, repetia. O pai achava que talvez não. A maldade tinha de ser o contrário de amar."

Valter Hugo Mãe,  O filho de mil homens.

sábado, 1 de outubro de 2016

A leitura e a saúde.

“Para entreter curiosidades, o velho Alfredo oferecia livros ao menino e convencia-o de que ler seria fundamental para a saúde. Ensinava-lhe que era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença, algo como um mal que pusesse os preguiçosos a morrer. Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente. O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito e dá-me preguiça. Então, o médico acrescentava: ah, fique pois sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemo-nos no seu seu funeral dentro de poucas semanas. O caixão fechava-se com um livro.”

Valter Hugo Mãe, In O filho de mil homens