quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Sobre a liberdade de cátedra

Isso se aplica, especificamente, ao ensino. Não se deve exigir de um homem ou mulher que vá assumir um cargo de ensino estadual expressar as opiniões da maioria, apesar de a maior parte dos professores o fazer naturalmente. A uniformidade nas opiniões expressas pelos professores, além de não ser desejável, deve, se possível, ser evitada, já que a diversidade de opinião entre os preceptores é essencial para qualquer educação sólida. Nenhum homem que só ouviu um dos lados das questões que dividem o público pode passar por letrado. Uma das coisas mais importantes a ser ensinada nos estabelecimentos educacionais de uma democracia é o poder de pesar argumentos, e a mente aberta que é preparada com antecedência para aceitar qualquer lado que pareça mais razoável. Logo que a censura é imposta às opiniões que os professores possam expressar, a educação deixa de servir a seu propósito e tende a produzir, em vez de uma nação de homens, uma manada de intolerantes fanáticos.(...) Todos aqueles que se opõem à discussão livre e que buscam impor a censura às opiniões a que os jovens são expostos estão fazendo sua parte para aumentar essa intolerância e afundar o mundo ainda mais no abismais no abismo de rivalidade e fanatismo.
(...)
Porque todo progresso intelectual sério depende de um certo tipo de independência da opinião externa, independência que não pode existir quando a vontade da maioria é tratada com aquele tipo de respeito religioso que os ortodoxos manifestam pela vontade de Deus. O respeito à vontade da maioria é mais danoso do que o respeito à vontade de Deus, porque o desejo da maioria pode ser determinado. Há cerca de quarenta anos, na cidade de Durban, um membro da Sociedade da Terra Plana desafiou o mundo ao debate público. Tal desafio foi aceito por um capitão marítimo cujo único argumento a favor de o mundo ser redondo era que tinha dado a volta nele. Esse argumento, é claro, foi facilmente refutado, e o propagandista da Terra Plana obteve a maioria de dois terços. A voz do povo tendo sido assim declarada, o verdadeiro democrata precisa concluir que, em Durban, a Terra é plana. Espero que daquela época em diante ninguém tenha obtido permissão para ensinar nas escolas públicas de Durban (acredito que não haja universidade lá), a menos que assinasse a declaração de que o formato arredondado da Terra é um dogma infiel que tem como objetivo levar ao comunismo e à destruição da família".

Bertrand Russell. Por que não sou cristão

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

O amor como remédio à loucura da vida.

“Todos estão loucos, neste mundo?  Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total.  Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente – o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”

João Guimarães Rosa. Grande Sertão: veredas.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Gente simpática

A minha intenção é escrever um artigo para exaltar as pessoas simpáticas. Mas o leitor pode querer saber primeiro quem são as pessoas que considero simpáticas. Talvez seja um tanto difícil chegar à sua qualidade essencial, de modo que começarei enumerando certos tipos que se encaixam nessa denominação.

Tias solteironas são invariavelmente simpáticas, sobretudo, é claro, quando são ricas; os ministros religiosos são simpáticos, à exceção daqueles casos raros em que escapam para a África do Sul com uma integrante do coro, depois de fingirem ter cometido suicídio. As moças, sinto dizer, raramente são simpáticas, hoje em dia. Quando eu era jovem, a maior parte delas era bem simpática; quer dizer, compartilhavam das opiniões das mães, não apenas a respeito de assuntos de toda ordem, mas, o que é mais notável, a respeito de indivíduos, até mesmo de rapazes. Elas diziam: “Sim, mamãe” e “Não, mamãe” nos momentos apropriados; amavam o pai, porque era sua obrigação, e a mãe, porque as protegia da menor insinuação de mau comportamento.

Quando noivavam para casar, apaixonavam-se com moderação decorosa; depois de casadas, reconheciam como obrigação amar o marido, mas davam a entender às outras mulheres que era uma obrigação desempenhada à custa de muita dificuldade. Comportavam-se com simpatia em relação aos sogros, conquanto deixassem claro que qualquer pessoa menos empenhada não o faria; não maldiziam outras mulheres, mas apertavam os lábios de maneira tal, que deixavam claro o que poderiam ter dito, não fosse a sua caridade angelical. Este é o tipo que se chama de mulher pura e nobre. Tipo que, no entanto — ai de mim! –, mal existe nos dias de hoje, exceto entre as senhoras de idade.

Por misericórdia, as que restaram ainda detêm grande poder: elas controlam a educação, onde se dedicam, não sem sucesso, a preservar um padrão vitoriano de hipocrisia; controlam a legislação relativa ao que chamam de “questões morais” e, assim, criaram e propiciaram a grande profissão do contrabando; asseguram que os rapazes que escrevem para os jornais exprimam as opiniões das idosas e simpáticas senhoras, e não as suas próprias, assim ampliando o alcance do estilo e a variedade da imaginação psicológica dos jovens.

Elas mantêm vivos inumeráveis prazeres que, de outra maneira, logo acabariam por sua abundância: por exemplo, o prazer de ouvir palavras grosseiras no palco, ou de ver ali uma quantidade de pele desnuda ligeiramente maior do que o normal. Acima de tudo, mantêm vivos os prazeres da caça. Entre uma população campestre homogênea, como a de um condado inglês, as pessoas estão condenadas a caçar raposas, algo caro e às vezes até perigoso. Além do mais, a raposa não é capaz de explicar com muita clareza o quanto não aprecia ser caçada.

Sob todos esses aspectos, a caça aos seres humanos é um esporte melhor, mas, não fosse pelas pessoas simpáticas, seria difícil caçá-las com a consciência tranquila. Aqueles que são condenados pelas pessoas simpáticas são passíveis de caça; ao gritar “Tally-ho!”, os caçadores se reúnem, e a vítima é perseguida até ser presa ou morta. O esporte é ainda mais recompensador quando a vítima é uma mulher, já que isso deleita a inveja das mulheres e o sadismo dos homens. Conheço, nesse momento, uma estrangeira que vive, na Inglaterra, uma união feliz, embora extralegal, com um homem a quem ela ama e que a ama; infelizmente, suas opiniões políticas não são tão conservadoras quanto se poderia desejar, apesar de serem meras opiniões, sobre as quais ela nada faz.

As pessoas simpáticas, no entanto, usaram essa desculpa para pôr a Scotland Yard em seu encalço, de modo que ela será mandada de volta a seu país de origem, para padecer de fome. Na Inglaterra, assim como nos Estados Unidos, o estrangeiro representa uma influência moralmente degradante, de modo que estamos todos em dívida para com a polícia, pela maneira como cuida para que apenas estrangeiros excepcionalmente virtuosos possam residir entre nós. Não devemos supor que todas as pessoas simpáticas sejam mulheres, apesar de, é claro, ser muito mais comum encontrar uma mulher simpática do que um homem simpático. À exceção dos ministros religiosos, há muitos outros homens distintos.

Aqueles, por exemplo, que fizeram grande fortuna e agora se aposentaram dos negócios para gastá-la com obras de caridade; os magistrados também são, quase invariavelmente, homens simpáticos. Não se pode dizer, no entanto, que todos os defensores da lei e da ordem sejam homens simpáticos. Quando jovem, lembro-me de ter ouvido uma mulher simpática dizer, como argumento contrário à pena de morte, que o carrasco dificilmente poderia ser um homem simpático. Jamais conheci algum carrasco pessoalmente, de modo que não pude testar esse argumento de maneira empírica.

No entanto, conheci uma senhora que conheceu um carrasco em um trem sem saber quem ele era e, ao oferecer-lhe uma manta, por estar frio, disse ele: “Ah, a senhora não faria isso se soubesse quem sou”, o que parece demonstrar que, afinal de contas, ele era um homem simpático, sim. Isso, no entanto, deve ter sido algo excepcional. O carrasco em Barnaby Rudge, de Dickens, que não é em absoluto um homem simpático, talvez seja mais típico.

Não acredito, no entanto, que devamos concordar com a mulher simpática que citei há pouco, que condenava a pena de morte simplesmente porque os carrascos tendem a não ser simpáticos. Para ser uma pessoa simpática é necessário estar protegido do contato cruel com a realidade, e não se deve esperar dos responsáveis por tal proteção que compartilhem a simpatia que preservam.

Imaginemos, por exemplo, que um navio transportando vários trabalhadores de cor naufrague; as mulheres da primeira classe, presumivelmente todas simpáticas, serão salvas primeiro, mas, para que isso possa acontecer, deve haver homens que impeçam que os trabalhadores de cor tomem os botes salva-vidas, e é improvável que consigam fazer isso por meio de métodos simpáticos. As mulheres que forem salvas, assim que estiverem em segurança, começarão a sentir pena dos coitados dos trabalhadores que se afogaram, mas essa demonstração de bondade só foi possibilitada pelos homens rudes que as defenderam.

De maneira geral, os indivíduos simpáticos deixam o policiamento do mundo nas mãos de mercenários, porque sentem que o trabalho em questão não é adequado a pessoas razoavelmente simpáticas. Existe, no entanto, um departamento em que não delegam tarefas, que é o departamento da calúnia e de escândalos. As pessoas podem ser dispostas em uma hierarquia de simpatia pela força de suas línguas. Se A fala mal de B, e B fala mal de A, geralmente a sociedade em que ambos vivem entrará em acordo para determinar qual deles está prestando um serviço de utilidade pública, enquanto o outro está apenas sendo mesquinho; o que estiver prestando um serviço de utilidade pública é o mais simpático dos dois.

Assim, por exemplo, uma diretora de escola é mais simpática do que uma diretora-assistente, mas uma senhora que pertença ao conselho da escola é mais simpática do que qualquer uma das duas. A fofoca bem direcionada pode facilmente fazer com que sua vítima perca o ganha-pão e, mesmo quando esse resultado extremo não é alcançado, pode transformar a pessoa em um pária.

É, portanto, uma força importante do bem, e devemos nos sentir gratos por serem pessoas simpáticas as detentoras desse poder. A principal característica das pessoas simpáticas é a prática louvável de aprimorar a realidade. Deus fez o mundo, mas as pessoas simpáticas acreditam que poderiam tê-lo feito melhor. Existem muitas coisas na obra divina que, por mais que constituísse blasfêmia desejar que fossem diferentes, não seria de jeito nenhum agradável mencioná-las.

Teólogos defendem que, se os nossos pais originais não tivessem comido a maçã, a raça humana teria proliferado por meio de algum método inocente vegetativo, como Gibbons aponta. O plano Divino, no que diz respeito a esse assunto, com certeza é misterioso. Está muito bem observar tal ato, como os teólogos supramencionados o fazem, à luz de um castigo ao pecado, mas o problema com tal visão é que, embora isso possa ser um castigo para as pessoas simpáticas, as outras, infelizmente, o consideram bastante prazeroso.

Portanto, parece que o castigo recaiu sobre o lugar errado. Uma das principais razões de ser das pessoas simpáticas é remediar essa injustiça, sem dúvida não intencional. Elas se esforçam para garantir que o modo vegetativo biologicamente sacramentado seja praticado de maneira furtiva ou frígida e que aqueles que o pratiquem de maneira furtiva, quando descobertos, sejam subjugados ao poder das pessoas simpáticas, devido aos danos que podem ser causados a eles por meio de escândalos.

Elas se esforçam também para garantir que o mínimo de informações possíveis a respeito desse assunto seja divulgado de modo decente; tentam conseguir que o censor proíba livros e peças que representam essa questão, exceto quando ensejam o escárnio. Nisso, obtêm sucesso, na medida em que controlam as leis e a polícia. Não se sabe por que o Senhor fez o corpo humano da maneira como fez, já que se deve supor que a onipotência poderia tê-lo feito de maneira a não chocar as pessoas simpáticas. Talvez, contudo, haja uma boa razão para tanto.

Tem havido na Inglaterra, desde o crescimento da indústria têxtil em Lancashire, uma estreita aliança entre os missionários e o mercado de algodão, pois os missionários ensinam os selvagens a cobrir o corpo humano e, assim, aumentam a demanda por bens de algodão. Se não houvesse nada vergonhoso a respeito do corpo humano, o mercado têxtil teria perdido sua fonte de lucro. Esse exemplo demonstra que jamais devemos temer que a disseminação da virtude venha a diminuir nossos lucros. Quem quer que tenha inventado a expressão “a verdade nua” percebeu uma conexão importante.

A nudez é chocante a todas as pessoas honradas, da mesma maneira que a verdade o é. Pouco importa o segmento com o qual se está conectado; logo se descobre que a verdade é tal, que as pessoas simpáticas não a admitirão em sua consciência. Não sei ao certo se foi falta de sorte minha estar presente em um tribunal para a audiência de um caso sobre o qual eu tinha um conhecimento de primeira mão, o caso é que fiquei estupefato ao constatar que nenhuma verdade crua tinha permissão de penetrar aqueles portais augustos.

A verdade que entra em um tribunal de Justiça não é a verdade nua, mas a verdade vestida com roupas de tribunal, com todas as suas partes menos decentes escondidas. Não digo que isso se aplique ao julgamento de crimes mais diretos, tais como assassinato ou roubo, mas se aplica a todos aqueles em que algum elemento de preconceito entra, tais como julgamentos políticos, ou julgamentos relativos à obscenidade.

Acredito que, a esse respeito, a Inglaterra é pior do que os Estados Unidos, porque a Inglaterra levou à perfeição, por meio dos sentimentos de clemência, o controle quase invisível e meio inconsciente de tudo o que é desagradável. Se alguém desejar mencionar em um tribunal de Justiça algum fato inadmissível, descobrirá que é contrário às leis da evidência fazê-lo, e que não apenas o juiz e o advogado da oposição, como também o seu próprio defensor impedirão que o dito fato venha à tona. O mesmo tipo de irrealidade permeia a política, devido aos sentimentos das pessoas simpáticas. Se alguém tentar convencer qualquer pessoa simpática de que um político de seu próprio partido é um simples mortal, em nada melhor do que a maioria da humanidade, essa pessoa repudiará tal sugestão.

Por conseguinte, é necessário aos políticos que pareçam imaculados. Na maior parte do tempo, os políticos de todos os partidos entram em um acordo tácito para impedir que qualquer coisa que traga prejuízo à sua profissão seja conhecida, porque as diferenças de partido geralmente fazem menos para dividir os políticos do que a identidade da profissão para uni-los.

Dessa maneira, as pessoas simpáticas são capazes de preservar sua bela imagem de grandes homens da nação, e as crianças nas escolas podem ser convencidas de que tal eminência só poderá ser alcançada por meio da mais elevada das virtudes. Existem, é verdade, épocas excepcionais em que a política azeda de verdade — e em todos os tempos existem políticos que não são considerados suficientemente respeitáveis para que pertençam ao sindicato informal da profissão. Parnell, por exemplo, foi primeiro acusado, sem sucesso, de cooperar com assassinos e depois, com sucesso, condenado por uma ofensa contra a moral, ofensa que, é claro, nenhum de seus acusadores jamais sonharia em cometer.

Nos dias atuais, os comunistas na Europa e os radicais extremistas e agitadores trabalhistas nos Estados Unidos estão fora de questão; nenhum grupo significativo de pessoas simpáticas os admira, e, se cometerem alguma ofensa contra o código de convenções, podem estar certos de que não terão perdão. Dessa maneira, as convicções morais inabaláveis das pessoas simpáticas se ligam à defesa da propriedade, e assim mais uma vez elas provam seu inestimável valor. 

As pessoas simpáticas muito convenientemente desconfiam do prazer, sempre que o detectam.Sabem que o que aumenta a sabedoria aumenta a dor, e, assim, inferem que maior a dor, maior a sabedoria. Portanto, sentem que, ao disseminar a dor, estão disseminando a sabedoria; como a sabedoria é mais preciosa do que os rubis, encontram justificativa para achar que agir assim é benéfico. Vão, por exemplo, mandar construir um playground público para crianças para convencer a si mesmos de que são filantropos, e, em seguida, farão tantas imposições em relação a seu uso que nenhuma criança poderá ser tão feliz ali quanto é na rua.

Farão tudo o que puderem para impedir que playgrounds, teatros etc. fiquem abertos aos domingos, porque esse é o dia em que poderiam ser aproveitados. As moças que trabalham são impedidas o máximo possível de conversar com rapazes no serviço. As pessoas mais simpáticas que conheci carregavam essa atitude para o seio da família e faziam com que seus filhos brincassem apenas com jogos instrutivos.

Esse grau de simpatia, no entanto, sinto dizer, está se tornando menos comum do que era. No passado, ensinava-se às crianças que Um golpe de Sua vara poderosa pode rapidamente enviar jovens pecadores ao Inferno, e estava entendido que isso provavelmente aconteceria se as crianças ficassem muito agitadas ou se se dedicassem a qualquer atividade que não fosse calculada para fazer com que se tornassem pessoas aptas para o clero. A educação baseada nesse ponto de vista é apresentada em The Fairchild Family, obra de valor incomensurável sobre como produzir pessoas simpáticas. Conheço poucos pais, no entanto, que nos dias de hoje conseguem agir de acordo com esse alto padrão.

Infelizmente, tornou-se muito comum permitir que as crianças se divirtam, e deve-se temer que todos aqueles que foram educados de acordo com princípios tão negligentes não demonstrem o devido horror ao prazer quando crescerem. O reinado das pessoas simpáticas, creio, está chegando ao fim — duas coisas o estão matando. A primeira é a crença de que não há mal em ser feliz, desde que isso não prejudique ninguém; a segunda é a aversão à farsa, uma aversão que é tanto estética quanto moral.

Essas revoltas foram incentivadas pela guerra, quando as pessoas simpáticas de todos os países estavam bem seguras no poder, e, em nome da mais alta moral, induziam os jovens a matar-se uns aos outros. Quando tudo acabou, os sobreviventes começaram a se perguntar se mentiras e desgraças inspiradas pelo ódio constituíam de fato a mais alta das virtudes.

Creio que ainda vai demorar um certo tempo até que possam ser induzidos mais uma vez a aceitar essa doutrina fundamental, relativa a toda ética realmente soberba. Em sua essência, as pessoas simpáticas odeiam a vida que se manifesta nas tendências à cooperação, na agitação das crianças e, sobretudo, no sexo — ideia pela qual são obcecadas. Em uma palavra: as pessoas simpáticas são aquelas que têm mentes repulsivas.

Bertrand Russell. Por que não sou cristão.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

As prisões

É claro que não se devem fazer julgamentos de acordo com ideias preconcebidas, e decerto a filosofia do crime é mais complexa do que se imagina. O presídio, os trabalhos forçados, não melhoram o criminoso; apenas o castigam, e garantem a sociedade contra os atentados que ele ainda poderia cometer. O presídio, os trabalhos forçados, desenvolvem no criminoso apenas o ódio, a sede dos prazeres proibidos, e uma terrível indiferença espiritual. Por outro lado, estou convencido de que o famoso sistema celular consegue atingir apenas um resultado enganador, aparente. Suga a seiva vital do indivíduo, enerva-lhe a alma, enfraquece-o, assusta-o, e depois nos apresenta como um modelo de
regeneração, de arrependimento, o que é apenas uma múmia ressequida e meio louco.

Dostoiévski. Recordações da casa dos mortos.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

O homem "inteligente"

Era tido como um homem inteligente. É assim que, em certos círculos, se denomina a uma espécie peculiar de indivíduos que engordam à custa alheia, que não fazem absolutamente nada, que não querem fazer absolutamente nada, e que, por sua preguiça e ociosidade eternas, têm um pedaço de banha no lugar do coração. A todo instante se pode ouvir deles mesmos que não há nada que possam fazer, devido a certas circunstâncias muito adversas e complexas, que “lhes frustram o gênio”, e que por isso são “dignos de pena”. Essa é a sua frase pomposa tão habitual, o seu mot d’ordre (“Palavra de ordem”, em francês no original. (N. da T.)), a sua senha e o seu lema, a frase que esses senhores saciados e gorduchos ficam o tempo todo prodigalizando por toda parte, de modo que há muito tempo começou a nos enfastiar como um tartufismo (Referência a Tartufo, personagem da comédia de Molière, que virou símbolo de falso moralismo e hipocrisia. (N. da T.)) rematado e uma conversa fiada. Aliás, alguns desses histriões que não conseguem de modo algum encontrar o que fazer — o que, aliás, nunca sequer procuraram -, justamente por isso pretendem fazer com que todo mundo pense que não é um pedaço de banha que têm no lugar do coração, mas, ao contrário, de modo geral, algo muito profundo, embora o quê, precisamente, nem mesmo o maior cirurgião diria,claro que por cortesia.Esses senhores abrem caminho no mundo concentrando todos os seus instintos num sarcasmo grosseiro, numa reprovação míope e numa altivez desmedida. Como não têm mais nada a fazer a não ser ficar reparando e repisando as fraquezas e os erros alheios, e como seus bons sentimentos são tal qual os que são apanágio de uma ostra, então nem lhes é difícil, mediante tais meios de proteção, conviver com as pessoas com bastante cautela. E disso sevangloriam além da conta. Estão, por exemplo, quase convencidos de que praticamente o mundo todo deve lhes render tributo; de que o mundo é para eles* como uma ostra que pegam em caso de necessidade; que todos, com exceçãodeles, são tolos; que todos se parecem com uma laranja ou com uma esponja, que uma vez ou outra podem espremer quando têm necessidade do suco; que são os donos de tudo, e que toda essa ordem louvável das coisas se deve justamente ao fato de serem eles pessoas tão inteligentes e peculiares. Em sua altivez desmedida não admitem quaisquer defeitos em si mesmos. Eles se parecem com aquela espécie de trapaceiros práticos, Tartufos e Falstaffs (Falstaff: personagem de Shakespeare, sinônimo de bufão, vaidoso e inútil. (N. da T.)) congênitos, que de tanto trapacear acabaram convencendo a si mesmos que era assim que devia ser, ou seja, que para viver tinham que trapacear; e insistiam sempre tanto em assegurar a todo mundo que eram pessoas honestas que acabaram por convencer a si próprios, como se realmente fossem pessoas honestas e que sua trapaçaria também era uma coisa honesta. Nunca são capazes de um exame interior consciente, de uma autoavaliação nobre: para certas coisas são rudes demais. Acima de tudo e em primeiro plano está sempre a sua própria e valiosa pessoa, seu Moloch e Baal (Moloch é um deus adorado por certos povos da Antiguidade, que sacrificavam a ele seus recém-nascidos, jogando-os numa fogueira. Baal também é um deus pagão, associado ao demônio na mitologia cristã. A imagem de Baal como símbolo da opressão do homem pelas forças da civilização burguesa seria empregada mais tarde por Dostoiévski em Notas de inverno sobre impressões de verão (1863). (N. da T.)), seu esplêndido eu. Toda a natureza e o mundo inteiro não são para eles senão um espelho esplêndido, criado para queesse ídolo possa incessantemente admirar a si mesmo e não ver nada nemninguém além de si; depois disso, não é de se estranhar que veja tudo no mundo sob um aspecto tão disforme. Para tudo ele tem reservada uma frase feita, e, o que é o cúmulo da destreza de sua parte, uma frase da última moda. Inclusive são eles mesmos que contribuem com a moda, difundindo boca a boca por todos os cruzamentos essa ideia na qual farejam sucesso. São justamente eles que têm faro para farejar essa frase da moda e se apoderar dela antes dos outros, de tal modo que é como se ela tivesse saído deles. Eles sobretudo se abastecem de suas frases para exprimir a sua profunda simpatia pela humanidade, para definir qual a forma de filantropia mais correta e justificável racionalmente e, por fim, para punir incansavelmente o romantismo, ou seja, amiúde tudo o que é belo e verdadeiro, que em cada átomo tem mais valor que toda a espécie de moluscos deles. Mas são muito toscos para reconhecer a verdade numa forma anômala, transitória e inacabada, e rejeitam tudo o que ainda não amadureceu, não é estável e está em fermentação. Um homem bem nutrido passou sua vida toda alegremente, teve tudo de mão beijada, ele mesmo não fez nada e não sabe como é difícil fazer qualquer trabalho, e por isso ai daquele que tocar nos seus sentimentos gordurosos com alguma aspereza: ele nunca o perdoará por isso, sempre haverá de se lembrar e se vingar dele com prazer. Em resumo, meu herói não é nada mais nada menos que um saco gigantesco, enfunado a não mais poder, cheio de máximas, de frases da moda e etiquetas de todos os gêneros e espécies.

Fiódor  Dostoiévski. Um pequeno herói

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Romance e revolta


Afinal, escrever ou ler um romance são ações insólitas. Construir uma história através de um novo arranjo de fatos verdadeiros não tem nada de inevitável nem de necessário. Se até mesmo a explicação banal – pelo prazer do criador e do leitor – fosse verdadeira, deveríamos nos perguntar qual necessidade faz a maior parte dos homens sentir prazer e se interessar por histórias inventadas. A crítica revolucionária condena o romance puro como a evasão de uma mente ociosa. Por sua vez, a linguagem comum chama de “romanescas” o relato mentiroso do jornalista inábil. Há alguns lustros era comum dizer, inaceitavelmente, que as moças eram “romances”. Entendia-se com isso que essas criaturas ideais não levavam em conta a realidade da existência. De modo geral, sempre se considerou que o romanesco se separava da vida, e que a embelezava ao mesmo tempo que a traía. A maneira mais simples e banal de encarar a expressão romanesca consiste portanto em ver nisso um exercício de evasão. O senso-comum une-se à crítica revolucionária.

Mas do que se procura fugir pelo romance? De uma realidade julgada por demais esmagadora? As pessoas felizes também lêem romances, e é um fato constatado que o extremo sofrimento tira o gosto pela leitura. Por outro lado, o universo romanesco tem certamente menos peso e presença do que este outro universo, onde seres de carne e osso nos assediam sem parar. Por que mistério, entretanto, Adolphe nos parece um personagem bem mais familiar que Benjamin Constant, e o conde Mosca que nossos moralistas profissionais? Balzac concluiu um dia uma longa conversa sobre a política e o destino do mundo, dizendo: “E, agora, falemos de coisas sérias”, referindo-se a seus romances. O gosto pela evasão não basta para explicar a gravidade indiscutível do mundo romanesco, nossa obstinação em levar realmente a sério os incontáveis mitos que o gênio romanesco nos propõe há dois séculos. A atividade romanesca supõe certamente uma espécie de recusa do real, mas esta recusa não é uma simples fuga. Deve-se ver nisso o movimento de retirada da bela alma que, segundo Hegel, cria para si própria, em sua ilusão, um mundo fictício em que só a moral reina? O romance edificante, contudo, acha-se bastante longe da grande literatura; e o melhor dos romances água-com-açúcar, Paulo e Virgínia, obra na verdade angustiante, nada oferece a título de consolo.

A contradição é a seguinte: o homem recusa o mundo como ele é, sem desejar fugir dele. Na verdade, os homens agarram-se ao mundo e, em sua imensa maioria, não querem deixá-lo. Longe de desejar realmente esquecê-lo, eles sofrem, ao contrário, por não possuí-lo suficientemente, estranhos cidadãos do mundo, exilados em sua própria pátria. A não ser nos instantes fulgurantes da plenitude, toda realidade é para eles incompleta. Seus atos lhes escapam sob a forma de outros atos, voltam para julgá-los sob aspectos inesperados e correm, como a água de Tântalo, para uma embocadura ainda desconhecida. Conhecer a embocadura, dominar o curso do rio, entender enfim a vida como destino, eis sua verdadeira nostalgia, no mais profundo de sua pátria. Mas essa visão que, pelo menos no conhecimento, os reconciliaria enfim consigo mesmos, só pode aparecer, se é que aparece, no momento fugaz da morte, em que tudo se consuma. Para existir no mundo, por uma vez, é preciso nunca mais existir.

Nasce aqui essa desgraçada inveja que tantos homens sentem da vida dos outros. Olhadas de fora, emprestam-se a essas existências uma coerência e uma unidade que elas estão longe de ter, mas que parecem evidentes ao observador. Ele só vê o contorno dessas vidas, sem tomar consciência dos detalhes que as corroem. Então, dotamos de arte tais existências. De maneira elementar, nós as romanceamos. Neste sentido, cada qual procura fazer de sua vida uma obra de arte. Desejamos que o amor dure e sabemos que ele não dura; se até mesmo, por milagre, ele tivesse que durar toda uma vida, estaria ainda incompleto. Talvez, nesta insaciável necessidade de durar, compreenderíamos melhor o sofrimento terrestre, se o soubéssemos eterno. Parece que as grandes almas, às vezes, ficam menos apavoradas com o sofrimento do que com o fato de ele não durar. Na falta de uma felicidade inesgotável, um longo sofrimento constituiria ao menos um destino. Mas não é assim, e nossas piores torturas um dia chegarão ao fim. Certa manhã, após tanto desespero, uma irreprimível vontade de viver vai nos anunciar que tudo acabou e que o sofrimento não tem mais sentido que a felicidade.

O desejo de posse não é mais que uma outra forma do desejo de durar; é ele que constitui o delírio impotente do amor. Nenhum ser, nem mesmo o mais amado, e que nos ama com maior paixão, jamais fica em nosso poder. Na terra cruel em que os amantes às vezes morrem separados e nascem sempre divididos, a posse total de um ser, a comunhão absoluta por toda uma vida é uma exigência impossível. O desejo de posse é a tal ponto insaciável que ele pode sobreviver ao próprio amor. Amar, então, é esterilizar a pessoa amada. O vergonhoso sofrimento do amante, a partir de agora solitário, não é tanto de não ser mais amado, mas de saber que o outro pode e deve amar ainda. Em última instância, todo homem devorado pelo desejo alucinado de durar e de possuir deseja aos seres que amou a esterilidade ou a morte. Esta é a verdadeira revolta. Aqueles que não exigiram, pelo menos uma vez, a virgindade absoluta dos seres e do mundo, que não tremeram de nostalgia e de impotência diante de sua impossibilidade, aqueles que, então, perpetuamente remetidos a sua nostalgia pelo absoluto, não se destruíram ao tentar amar pela metade, não podem compreender a realidade da revolta e seu furor de destruição. Mas os seres escapam sempre e nós lhes escapamos também; eles não têm contornos bem-delineados. A vida, deste ponto de vista, é sem estilo. Ela não é senão um movimento em busca de sua forma sem nunca encontrá-la. O homem, assim dilacerado, persegue em vão essa forma que lhe daria os limites entre os quais ele seria soberano. Que uma única coisa viva tenha sua forma neste mundo, ele estará reconciliado!

Não há, enfim, quem quer que, a partir de um nível elementar de consciência, não se esgote buscando as fórmulas ou as atitudes que dariam à sua existência a unidade que lhes falta. Parecer ou fazer, o dândi ou o revolucionário exigem a unidade, para existir, e para existir neste mundo. Como nesses patéticos e miseráveis relacionamentos que sobrevivem às vezes por muito tempo, porque um dos parceiros espera encontrar a palavra, o gesto ou a situação que farão de sua aventura uma história terminada, e formulada, no tom certo, cada um cria para si e se propõe a última palavra. Não basta viver; é preciso um destino, e sem esperar pela morte. É justo portanto dizer que o homem tem a idéia de um mundo melhor do que este. Mas melhor não quer dizer diferente, melhor quer dizer unificado. Esta paixão que ergue o coração acima do mundo disperso, do qual no entanto não pode se desprender, é a paixão pela unidade. Ela não desemboca numa evasão medíocre, mas na reivindicação mais obstinada. Religião ou crime, todo esforço humano obedece, finalmente, a esse desejo irracional e pretende dar à vida a forma que ela não tem. O mesmo movimento, que pode levar à adoração do céu ou à destruição do homem, conduz da mesma forma à criação romanesca, que dele recebe, então, sua seriedade.

Que é o romance, com efeito, senão esse universo em que a ação encontra sua forma, em que as palavras finais são pronunciadas, os seres entregues aos seres, em que a vida passa a ter a cara do destino? O mundo romanesco não é mais que a correção deste nosso mundo, segundo o destino profundo do homem. Pois trata-se efetivamente do mesmo mundo. O sofrimento é o mesmo, a mentira e o amor, os mesmos. Os heróis falam a nossa linguagem, têm as nossas fraquezas e as nossas forças. Seu universo não é mais belo nem mais edificante que o nosso. Mas eles, pelo menos, perseguem até o fim o seu destino, e nunca houve heróis tão perturbadores quanto os que chegaram aos extremos de sua paixão, Kirilov e Stavroguin, Mme Graslin, Julien Sorel ou o príncipe de Clèves. É aqui que perdemos sua medida, pois eles terminam aquilo que nós nunca consumamos.

Camus, Albert. O homem revoltado

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Atlântico negro

O que há de África em Brasil? O que há de Brasil em África? Águas. Águas atlânticas que em sua composição contém afetos e memórias, das travessias africanas em direção a este território que hoje nomeamos de Brasil. Este mar contém desejos sudaneses, bantos e brasileiros de ir e de voltar. Desejos bantos-brasileiros-sudaneses. Contém medo, incertezas, lágrimas de tristeza e de saudades. Este mar é reservatório de um passado que se atualiza cotidianamente em singularidades negras diaspóricas. O Atlântico é negro, e eu me produzo nele.

Sou essa água salgada, que sara feridas de corpos com peles subalternizadas. Sou esse mar poliglota, que grita segredos dos colonizadores, que escuta o clamor dos sequestrados, e que acolhe os negros desamparados; que reclamam da sede de ancestralidade. Meu corpo é transatlântico, intersecciono bairros, cidade, países e continentes. Minha etnia é diaspórica, sou uma banto-capixaba-brasileira. Sou negra, sou bixa, sou latina. Sou uma bixa-banto-brasileira. Meu corpo é aquático e fronteiriço, hábito a fronteira entre África e Brasil: o mar.
O mar sentiu o peso dos navios negreiros repletos de africanos sequestrados, roubados, raptados. E é neste mesmo mar atlântico onde, na terceira diáspora, criam-se negritudes emancipadas de traumas e desejos coloniais. O mar é a máxima expansão da água que nos compõe.
Todo negro precisa saber nadar, para compreender a diferença entre náufrago e mergulho.
Castiel Vitorino Brasileiro é artista visual, estudante de Psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo, e
integrante do Coletivo Kuirlombo.

Fonte: Geledes

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Educação e liberdade

Além da força de persuasão da lógica, para mim há algo um tanto estranho a respeito das avaliações éticas daqueles que pensam que uma Divindade onipotente, onisciente e benevolente, depois de preparar o solo por milhões de anos de névoas sem vida, poderia considerar-se adequadamente recompensado pelo surgimento final de Hitler, Stalin e da bomba H. […] apenas aqueles que se escravizam para louvar o sucesso podem pensar que a eficiência é admirável sem se importar com seus efeitos. De minha parte, penso que é preferível fazer um pouco de bem a muito mal. O mundo que eu desejaria ver seria livre da virulência das hostilidades grupais e capaz de perceber que a felicidade de todos deve derivar da cooperação, e não da rivalidade. Eu desejaria ver um mundo em que a educação se destinasse à liberdade mental, e não ao aprisionamento da mente dos jovens em uma armadura rígida de dogmas calculados para protegê-los, ao longo da vida, dos golpes e evidencias tendenciosas. O mundo precisa de corações abertos e mentes abertas, e isso não pode derivar de sistemas rígidos, sejam eles velhos ou novos.

Bertrand Russel in “porque não sou cristão”, p.25.