sábado, 31 de janeiro de 2015

O espelho


Amanhece, os primeiros raios da aurora trazem a expectativa do novo. O sol surgindo entre nuvens aponta para a possibilidade da vida adquirir mais calor, da potência existencial finalmente vir a ser real. 

O sol escaldante ao longo do dia mostra que a mesma força geradora da vida traz consigo um grande desconforto. E  estar  sob o astro-mor da Via Láctea pode ser extenuante. Caminhando entre as pessoas pode-se perceber que todos aparentam estar adaptadas à essa energia inebriante.  Sorriem entre si, correm, planejam, consomem e se consomem.  Tudo parece ser tão fácil para a maioria...Vencem o desconforto do sol utilizando sombrinhas ou se refugiam em ambientes refrigerados.

Contudo, o homem se sente desconfortável. Um copo de cerveja para se refrescar do calor e a leitura de algum poeta lhe parece ser a anestesia para  tal sensação. No plano geral a vida se apresenta como possibilidades multicoloridas, mas a experiência diária tem sido monocromática, o que resulta em uma tediosa existência.

O sol se vai  e o retorno à casa ocorre. Raras vezes ele consegue parar para vislumbrar a beleza do pôr do sol.  Mas sabe que ele continua lindo.  A escuridão da noite vai lentamente cobrindo os resquícios da claridade do dia... Com a ela vem o silêncio. Apenas o barulho de automóveis volta e meia interrompe os pensamentos do homem. Sim. A noite é o momento de culto de suas reflexões.  Com uma taça de vinho na mão, auxiliado pelo deus Baco, ele percebe que todas as sensações do dia nada mais são do que a cobrança de adaptação feita pelo mundo externo.  É o famoso superego tentando fazê-lo aceitar, se adaptar e gostar da vida ornamental padronizada. Da vida do sorriso fácil, da concordância com o mais do mesmo cotidiano. Da vida que é a negação da capacidade criativa da existência.

O homem olha pela janela e vê as estrelas no céu.  Ele sabe que o brilho que contempla talvez seja de um astro que já não existe mais.   Percebe que a luz continua a brilhar para nós, mas aquela estrela pode não existir mais. O homem tem uma epifania nesse momento. Ele tinha consciência de que já não era mais um ser  típico das massas, tinha conseguido um grau de individuação que a maioria não alcançara. Mas o superego ainda o via como antes, como o efeito retardado da luz das estrelas.  Por esse motivo tantas vezes ele ficava desconfortável.

Ao pensar sobre isso, o homem passou em frente ao espelho  de seu quarto  e se contemplou. E o que viu era um ser novo, diferente do que lembrava ter sido,  um reflexo ainda indefinido. Mas ele gostou do que viu. Era melhor do que antes  e, apesar de ser monocromático, ele sabia que podia dar as cores que ele escolhesse à essa imagem. Sorriu para sua imagem espelhada e foi dormir.

Márcio Ramos

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Elucubrações sobre a morte e a vida


Um professor da escola em que Ulisses trabalha morreu. Suicidou. Tinha cinquenta anos. A comoção foi geral no ambiente de trabalho, principalmente porque há pouco menos de cinco meses uma professora da região tinha feito o mesmo. A morte estaria rondando os mestres? O colega sindicalista logo apontou as condições de trabalho como causa da morte precoce do docente.O amigo espírita ficou preocupado com a alma do professor no limbo. A professora beata disse que o suicídio era fruto das forças ocultas do mal.  Sentado em seu canto, Ulisses tentava encontrar uma razão para tal atitude fatal.

Ao ouvir as divagações dos colegas, Ulisses imediatamente lembrou-se de Albert Camus no Mito de Sísifo, onde Camus afirma que a questão do suicídio é a questão filosófica por excelência. Ou seja, perguntar se a vida faz sentido ou vale a pena ser vivida deveria ser a atitude honesta de cada ser humano em sua precária existência.  Diante do suicídio do professor,  mais uma vez Ulisses se coloca a questão."Melhor é ir à casa onde há luto do que ir a casa onde há banquete; porque naquela se vê o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração".  A sentença bíblica, tantas vezes repetida pelo pastor protestante em sua infância, fazia sentido mais uma vez.

Mas afinal, o suicídio é um instrumento de fracos, derrotados ou doentes, que não dão conta mais de lidar com a vida? Ou é uma atitude legítima de quem não quer mais experienciar algo que não lhe apresenta como vida de fato? Porque, se colocarmos de lado o preceito moral de que a vida é um dom de Deus e portanto deve ser preservada a qualquer custo, qual a razão de obrigar alguém a se manter vivo, se tal pessoa não quer esse tipo de vida para si? No mito de Sísifo os deuses o obrigam a carregar uma pedra montanha acima continuamente, sendo que quando ele consegue chegar no topo a pedra rola montanha abaixo e ele precisa recomeçar tudo novamente. Se Sísifo conseguisse se matar ele venceria os deuses. Exerceria novamente o controle sobre sua vida. A atitude de um suicida poderia ser entendida como essa revolta humana contra a tentativa de controle externa que nos massacra, seja através da religião, das demandas sociais e econômicas. Seria a negação da sujeição à esse absurdo que é a existência.

Caminhando para casa e observando as pessoas ao entardecer, Ulisses pensou o porquê da maioria das pessoas não se matarem. Assustou-se com o pensamento, mas sabia que a indagação era honesta. A maior parte dos habitantes desse nosso planeta nunca chegou a ter esse tipo de pensamento simplesmente por não querer se olhar no espelho. E ao fazer isso, essas pessoas se lançam em um jogo coletivo de ilusão que dá sustentação à sua vida e garante uma certo conforto existencial. Ulisses pensou como durante muito tempo isso tudo fez sentido para ele, seja através da crença em um deus que organizava e controlava todo o mundo, seja através da experiência amorosa, que escondia todas as outras questões existenciais. Sim, o amor também pode ser uma grande fuga de mim mesmo, pensou.  E fugimos de nós porque não queremos ver o estranho que vive em nós, que preferimos deixar adormecidos, mesmo que para isso tenhamos que nos sujeitar à uma experiência de vida vazia e sem sentido.

"Somos medrosos!" gritou Ulisses, fazendo os transeuntes se virarem para observá-lo. Se calou.  A voz de Álvaro de Campos penetrou em sua mente:  "Se te queres matar, por que não te queres matar? Ah, aproveita! Que eu, que tanto amo a morte e a vida, Se ousasse matar-me, também me mataria…" Ulisses sabia que não se mataria porque era medroso e vivia um paradoxo. Desejava a morte da vida que levava, mas não conseguiria levar a cabo tal intento porque desejava ardentemente outra vida. Sabia que isso era possível e cada noite servia como um tempo de renovação de sua esperança de que a aurora lhe daria força para começar a experimentar a vida desejada.

Ulisses chegou em casa, tomou um banho e foi dormir.

Márcio Ramos

domingo, 25 de janeiro de 2015

Pálido Ponto Azul, de Carl Sagan


A espaçonave estava bem longe de casa. Eu pensei que seria uma boa idéia, logo depois de Saturno, fazer ela dar uma ultima olhada em direção de casa.

De saturno, a Terra apareceria muito pequena para a Voyager apanhar qualquer detalhe, nosso planeta seria apenas um ponto de luz, um "pixel" solitário, dificilmente distinguível de muitos outros pontos de luz que a Voyager avistaria: Planetas vizinhos, sóis distantes. Mas justamente por causa dessa imprecisão de nosso mundo assim revelado valeria a pena ter tal fotografia.

Já havia sido bem entendido por cientistas e filósofos da antiguidade clássica, que a Terra era um mero ponto de luz em um vasto cosmos circundante, mas ninguém jamais a tinha visto assim. Aqui estava nossa primeira chance, e talvez a nossa última nas próximas décadas.

Então, aqui está - um mosaico quadriculado estendido em cima dos planetas, e um fundo pontilhado de estrelas distantes. Por causa do reflexo da luz do sol na espaçonave, a Terra parece estar apoiada em um raio de sol. Como se houvesse alguma importância especial para esse pequeno mundo, mas é apenas um acidente de geometria e ótica. Não há nenhum sinal de humanos nessa foto. Nem nossas modificações da superfície da Terra, nem nossas maquinas, nem nós mesmos. Desse ponto de vista, nossa obsessão com nacionalismo não aparece em evidencia. Nós somos muito pequenos. Na escala dos mundos, humanos são irrelevantes, uma fina película de vida num obscuro e solitário torrão de rocha e metal.

Considere novamente esse ponto. É aqui. É nosso lar. Somos nós. Nele, todos que você ama, todos que você conhece, todos de quem você já ouviu falar, todo ser humano que já existiu, viveram suas vidas. A totalidade de nossas alegrias e sofrimentos, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas, cada caçador e saqueador, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e plebeu, cada casal apaixonado, cada mãe e pai, cada crianças esperançosas, inventores e exploradores, cada educador, cada político corrupto, cada "superstar", cada "lidere supremo", cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali, em um grão de poeira suspenso em um raio de sol.

A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pense nas infindáveis crueldades infringidas pelos habitantes de um canto desse pixel, nos quase imperceptíveis habitantes de um outro canto, o quão frequentemente seus mal-entendidos, o quanto sua ânsia por se matarem, e o quão fervorosamente eles se odeiam. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, em sua gloria e triunfo, eles pudessem se tornar os mestres momentâneos de uma fração de um ponto. Nossas atitudes, nossa imaginaria auto-importancia, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, é desafiada por esse pálido ponto de luz.

Nosso planeta é um espécime solitário na grande e envolvente escuridão cósmica. Na nossa obscuridade, em toda essa vastidão, não ha nenhum indicio que ajuda possa vir de outro lugar para nos salvar de nos mesmos. A Terra é o único mundo conhecido até agora que sustenta vida. Não ha lugar nenhum, pelo menos no futuro próximo, no qual nossa espécie possa migrar. Visitar, talvez, se estabelecer, ainda não. Goste ou não, por enquanto, a terra é onde estamos estabelecidos.

Foi dito que a astronomia é uma experiência que traz humildade e constrói o caráter. Talvez, não haja melhor demonstração das tolices e vaidades humanas que essa imagem distante do nosso pequeno mundo. Ela enfatiza nossa responsabilidade de tratarmos melhor uns aos outros, e de preservar e estimar o único lar que nós conhecemos... o pálido ponto azul.


segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Os Ombros Suportam o Mundo


Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação