Um professor da escola em que Ulisses trabalha morreu. Suicidou. Tinha cinquenta anos. A comoção foi geral no ambiente de trabalho, principalmente porque há pouco menos de cinco meses uma professora da região tinha feito o mesmo. A morte estaria rondando os mestres? O colega sindicalista logo apontou as condições de trabalho como causa da morte precoce do docente.O amigo espírita ficou preocupado com a alma do professor no limbo. A professora beata disse que o suicídio era fruto das forças ocultas do mal. Sentado em seu canto, Ulisses tentava encontrar uma razão para tal atitude fatal.
Ao ouvir as divagações dos colegas, Ulisses imediatamente lembrou-se de Albert Camus no Mito de Sísifo, onde Camus afirma que a questão do suicídio é a questão filosófica por excelência. Ou seja, perguntar se a vida faz sentido ou vale a pena ser vivida deveria ser a atitude honesta de cada ser humano em sua precária existência. Diante do suicídio do professor, mais uma vez Ulisses se coloca a questão."Melhor é ir à casa onde há luto do que ir a casa onde há banquete; porque naquela se vê o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração". A sentença bíblica, tantas vezes repetida pelo pastor protestante em sua infância, fazia sentido mais uma vez.
Mas afinal, o suicídio é um instrumento de fracos, derrotados ou doentes, que não dão conta mais de lidar com a vida? Ou é uma atitude legítima de quem não quer mais experienciar algo que não lhe apresenta como vida de fato? Porque, se colocarmos de lado o preceito moral de que a vida é um dom de Deus e portanto deve ser preservada a qualquer custo, qual a razão de obrigar alguém a se manter vivo, se tal pessoa não quer esse tipo de vida para si? No mito de Sísifo os deuses o obrigam a carregar uma pedra montanha acima continuamente, sendo que quando ele consegue chegar no topo a pedra rola montanha abaixo e ele precisa recomeçar tudo novamente. Se Sísifo conseguisse se matar ele venceria os deuses. Exerceria novamente o controle sobre sua vida. A atitude de um suicida poderia ser entendida como essa revolta humana contra a tentativa de controle externa que nos massacra, seja através da religião, das demandas sociais e econômicas. Seria a negação da sujeição à esse absurdo que é a existência.
Caminhando para casa e observando as pessoas ao entardecer, Ulisses pensou o porquê da maioria das pessoas não se matarem. Assustou-se com o pensamento, mas sabia que a indagação era honesta. A maior parte dos habitantes desse nosso planeta nunca chegou a ter esse tipo de pensamento simplesmente por não querer se olhar no espelho. E ao fazer isso, essas pessoas se lançam em um jogo coletivo de ilusão que dá sustentação à sua vida e garante uma certo conforto existencial. Ulisses pensou como durante muito tempo isso tudo fez sentido para ele, seja através da crença em um deus que organizava e controlava todo o mundo, seja através da experiência amorosa, que escondia todas as outras questões existenciais. Sim, o amor também pode ser uma grande fuga de mim mesmo, pensou. E fugimos de nós porque não queremos ver o estranho que vive em nós, que preferimos deixar adormecidos, mesmo que para isso tenhamos que nos sujeitar à uma experiência de vida vazia e sem sentido.
"Somos medrosos!" gritou Ulisses, fazendo os transeuntes se virarem para observá-lo. Se calou. A voz de Álvaro de Campos penetrou em sua mente: "Se te queres matar, por que não te queres matar? Ah, aproveita! Que eu, que tanto amo a morte e a vida, Se ousasse matar-me, também me mataria…" Ulisses sabia que não se mataria porque era medroso e vivia um paradoxo. Desejava a morte da vida que levava, mas não conseguiria levar a cabo tal intento porque desejava ardentemente outra vida. Sabia que isso era possível e cada noite servia como um tempo de renovação de sua esperança de que a aurora lhe daria força para começar a experimentar a vida desejada.
Ulisses chegou em casa, tomou um banho e foi dormir.
Márcio Ramos