terça-feira, 27 de junho de 2017

Indiferença


Havia já muito tempo que o pressentira, mas a convicção plena só assentou no meu espírito no último ano e de uma maneira súbita. Senti de um momento para outro que para mim tudo era indiferente, que tanto me fazia que o mundo existisse como não. Pouco a pouco ia vendo e sentindo que não havia nada fora de mim. Parecia-me que, de fato, a princípio tinham existido muitas coisas, mas adivinhei igualmente depois que antes também não tinha havido nada, e que se assim me parecera foi por alguma razão. E, pouco a pouco, fui-me convencendo que daí para diante também não haveria nada. A partir dessa altura até agora deixei de preocupar-me mais com os mortais e quase e quase não voltei a dar-lhes atenção. O que não tardou a refletir- se sobre as coisas mais insignificantes, pois ocorria- me, por exemplo, quando andava pelas ruas, dar encontrões em toda a gente. E não se julgue que era por ir afundando em meditações, isso não podia ser, porque eu já tinha de pensar em tudo, tudo me era indiferente. Ainda se ao menos me tivesse entregue à resolução de problemas! Mas não, nem um só resolvi na minha vida, e, isso, havendo- os aos pontapés. Mas como tanto me fazia, os problemas afastavam-se de mim sozinhos.

— Fiódor Dostoiévski, in "O Sonho de um Homem Ridículo" - 1877.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Morte do leiteiro

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.


Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.


Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro.
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto
Com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.


E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.


Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.


Mas este entrou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.


Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.


Da garrafa estilhaçada.
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.


Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Insônia

   Não durmo, nem espero dormir.  
    Nem na morte espero dormir. 

    Espera-me uma insônia da largura dos astros,  
    E um bocejo inútil do comprimento do mundo. 

    Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,  
    Não posso escrever quando acordo de noite,  
    Não posso pensar quando acordo de noite —  
    Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite! 

    Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer! 

    Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,  
    E o meu sentimento é um pensamento vazio.  
    Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam  
    — Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;  
    Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam  
    — Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;  
    Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,  
    E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo. 

    Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.  
    Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.  
    Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.  
    Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,  
    Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir. 

    Estou escrevendo versos realmente simpáticos —  
    Versos a dizer que não tenho nada que dizer,  
    Versos a teimar em dizer isso,  
    Versos, versos, versos, versos, versos...  
    Tantos versos...  
    E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim! 

    Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.  
    Sou uma sensação sem pessoa correspondente,  
    Uma abstração de autoconsciência sem de quê,  
    Salvo o necessário para sentir consciência,  
    Salvo — sei lá salvo o quê... 

    Não durmo.  Não durmo.  Não durmo.  
    Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!  
    Que grande sono em tudo exceto no poder dormir! 

   Ó madrugada, tardas tanto... Vem...  
   Vem, inutilmente,  
   Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...  
   Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,  
   Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,  
   Segundo a velha literatura das sensações. 

   Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.  
   O meu cansaço entra pelo colchão dentro.  
   Doem-me as costas de não estar deitado de lado.  
   Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.  
   Vem, madrugada, chega! 

    Que horas são?  Não sei.  
    Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,  
    Não tenho energia para nada, para mais nada...  
    Só para estes versos, escritos no dia seguinte.  
    Sim, escritos no dia seguinte.  
    Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte. 

    Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.  
    Paz em toda a Natureza.  
    A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.  
    Exatamente.  
    A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.  
    Costuma dizer-se isto.  
    A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,  
    Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.  
    Exatamente.  Mas não durmo.

Heróis

Nós, nós não temos herois. Nem jamais os tivemos. Afinal, para que servem os herois e suas estátuas de granito ou mármore negro, seus cavalos de bronze, suas medalhas barrocas e as espadas que não passam de metáforas?
Para que servem os herois se o ácido da chuva desdenha da glória dos homens e nem os pássaros se importam com eles?
Para que servem os herois se nem sabe quem somos nem jamais ouviram falar dos nossos mitos e utopias?
Infeliz do país que necessita de heróis.


Francisco Carvalho, poeta cearense


sábado, 17 de junho de 2017

Sartre — horror a existência

Meu pensamento sou eu: eis por que não posso parar. Existo porque penso... E não posso me impedir de pensar. Nesse exato momento — é terrível — se existo é porque tenho horror a existir. Sou eu, sou eu que me extraio do nada a que aspiro: o ódio, a repugnância de existir são outras tantas maneiras de me fazer existir, de me embrenhar na existência. Os pensamentos nascem por trás de mim como uma vertigem, sinto-os nascer atrás de minha cabeça... Se eu cedo, o pensamento cresce, cresce e fica imenso, me enchendo por inteiro e renovando minha existência.

— Jean-Paul Sartre, in A Náusea. pg 137. Editora Nova Fronteira.
Obra de Jean Veber.

Dostoiévski — Apenas os Imbecis Conseguem se Realizar

Não consegui chegar a nada, nem mesmo a tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo meus dias em meu canto, iniciando-me a mim mesmo com o consolo raivoso — que para nada serve — de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de somente os imbecis o conseguem. Sim, um homem inteligente do século dezenove precisa e está moralmente obrigado a ser uma criatura eminentemente sem caráter; e uma pessoa de caráter, de ação, deve ser sobretudo, limitada. Esta é a convicção dos meus quarenta anos. Estou agora com quarenta anos; e quarenta anos são, na realidade, a vida toda; de fato, isso constitui a mais avançada velhice. Viver além dos quarenta é indecente, vulgar, imoral! Quem é que vive além dos quarenta? Respondei-me sincera e honestamente. Vou dizer-vos: os imbecis e os canalhas. Vou dizer isto na cara de todos esses anciãos respeitáveis e perfumados, de cabelos argênteos! Vou dizê-lo na cara de todo mundo! Tenho direito de falar assim, porque eu mesmo hei de viver até os sessenta! Até os setenta! Até os oitenta! ... Um momento! Deixai-me tomar fôlego...

— Fiódor Dostoiévski, in Memórias do Subsolo – página 17, capítulo 01.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Religião e espiritualidade

"A religião não é apenas uma, são centenas. A espiritualidade é apenas uma.
A religião é para os que dormem.A espiritualidade é para os que estão despertos.
A religião é para aqueles que necessitam que alguém lhes diga o que fazer e querem ser guiados. A espiritualidade é para  os que prestam atenção à própria construção de sua voz interior.
A religião tem um conjunto de regras dogmáticas. A espiritualidade te convida a raciocinar sobre tudo, a questionar tudo.
A religião ameaça e amedronta. A espiritualidade lhe dá paz interior.
A religião fala de pecado e de culpa. A espiritualidade lhe diz: "aprenda com o erro".
A religião reprime tudo, te faz falso. A espiritualidade transcende tudo, te faz verdadeiro!
A religião não é divina. A espiritualidade é tudo e, portanto inclui a busca da lógica cósmica criadora que pode ser chamada de Deus.
A religião inventa. A espiritualidade descobre
A religião não indaga nem questiona. A espiritualidade questiona tudo.
A religião é humana, é uma organização com regras. A espiritualidade é divina, porque nos empodera, sem impor regras.
A religião é causa de divisões. A espiritualidade permite construir convergências livres.
A religião lhe busca para que acredite. A espiritualidade você tem que buscá-la.
A religião segue os preceitos de um livro sagrado. A espiritualidade busca o sagrado em todos os livros; e livres somos livros também.
A religião se alimenta do medo. A espiritualidade se alimenta na confiança e na fé que este mundo tem lógica.
A religião faz viver no pensamento. A espiritualidade faz viver na consciência.
A religião se ocupa com fazer. A espiritualidade se ocupa com ser.
A religião alimenta o ego. A espiritualidade nos faz transcender.
A religião nos faz renunciar ao mundo. A espiritualidade nos faz viver em comunhão com o Universo, não renunciar a ele.
A religião é adoração. A espiritualidade é meditação.
A religião sonha com a glória e com o paraíso. A espiritualidade nos faz viver a glória e o paraíso aqui e agora.
A religião vive no passado e no futuro. A espiritualidade vive no presente.
A religião enclausura nossa memória. A espiritualidade liberta nossa consciência.
A religião crê na vida eterna. A espiritualidade nos faz consciente da vida eterna.
A religião promete para depois da morte. A espiritualidade é encontrar a essência do universo em nosso interior durante a vida.”

Pierre Teilhard de Chardin, nascido em Orcines, 1 de maio de 1881 — Falecido em Nova Iorque, 10 de abril de 1955

Amigos

"Amigo era o braço, e o aço! Amigo? Aí foi isso que eu entendi? Ah, não; amigo, para mim, é diferente. Não é um ajuste de um dar serviço ao outro, e receber, e saírem por este mundo, barganhando ajudas, ainda que sendo com o fazer a injustiça aos demais. Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é."
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- João Guimarães Rosa, em 'Grande Sertão: Veredas'. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.