segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Os deuses e o medo.

Todos os deuses que recebem homenagem são cruéis. Todos os deuses distribuem sofrimento sem motivo. De outro modo não seriam cultuados. Pelo sofrimento indiscriminado os homens conhecem o medo, e o medo é a mais divina das emoções. É a pedra para os altares e o princípio da sabedoria.

Zora Neale Hurston. "Seus olhos viam Deus".

domingo, 26 de agosto de 2018

A recoleta

Convencidos da caducidade
por tantas nobres certezas do pó,
demoramo-nos e baixamos a voz
entre as lentas filas de panteões,
cuja retórica de sombra e mármore
promete ou prefigura a desejável
dignidade de estar morto.
Belos são os sepulcros,
o claro latim e as enlaçadas datas fatais,
a conjunção do mármore e da flor
e as pequenas praças com frescura de pátio
e os muitos ontens da história
hoje detida e única.
Enganamos essa paz com a morte
e cremos almejar nosso fim
e almejamos o sonho e a indiferença.
Vibrante nas espadas e na paixão
e adormecida na hera,
só a vida existe.
O espaço e o tempo são formas suas,
são instrumentos mágicos da alma,
e quando esta se apagar
com ela se apagará o espaço, o tempo e a morte,
como ao cessar a luz
se extingue o simulacro dos espelhos
que a tarde foi apagando.
Sombra benigna das árvores,
vento com pássaros que sobre os ramos ondeia,
alma que se dispersa em outras almas,
teria sido um milagre deixarem de ser,
milagre incompreensível,
ainda que sua imaginária repetição
desminta com horror nossos dias.
Estas coisas pensei na Recoleta
no lugar de minha cinza.

Jorge Luis Borges

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Eu amo tudo que foi

Eu amo tudo o que foi,

Tudo o que já não é,

A dor que já me não dói,

A antiga e errónea fé,

O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria

Só porque foi, e voou

E hoje é já outro dia.


Fernando Pessoa

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Quem me leva os meus fantasmas


De que serve ter o mapa se o fim está traçado, 
De que serve a terra à vista se o barco está parado, 
De que serve ter a chave se a porta está aberta, 
Pra que servem as palavras se a casa está deserta? 

Aquele era o tempo em que as mãos se fechavam 
E nas noites brilhantes as palavras voavam 
E eu via que o céu me nascia dos dedos 
E a Ursa Maior eram ferros acesos 

Marinheiros perdidos em portos distantes 
Em bares escondidos em sonhos gigantes 
E a cidade vazia da cor do asfalto 
E alguém me pedia que cantasse mais alto 

Quem me leva os meus fantasmas? 
Quem me salva desta espada? 
Quem me diz onde é a estrada? 

Aquele era o tempo em que as sombras se abriam 
Em que homens negavam o que outros erguiam 

E eu bebia da vida em goles pequenos, 
Tropeçava no riso, abraçava de menos. 
De costas voltadas não se vê o futuro 
Nem o rumo da bala nem a falha no muro 

E alguém me gritava com voz de profeta 
Que o caminho se faz entre o alvo e a seta. 

Quem leva os meus fantasmas? 
Quem me salva desta espada? 
Quem me diz onde é a estrada? 
Quem leva os meus fantasmas? 
Quem leva os meus fantasmas? 
Quem me salva desta espada? 
E me diz onde é a estrada 

Quem leva os meus fantasmas? 
Quem me salva desta espada? 
Quem me diz onde é a estrada? 
Quem leva os meus fantasmas? 
Quem leva os meus fantasmas? 
Quem leva? 

domingo, 12 de agosto de 2018

Mora comigo

Mora comigo na minha casa
Um rapaz que eu amo
Aquilo que ele não me diz porque não sabe
Vai me dizendo com o seu corpo
Que dança pra mim
Ele me adora e eu vejo através de seus olhos
O menino que aperta o gatilho do coração
Sem saber o nome do que pratica 
Ele me adora e eu gratifico
Só com olhos que eu vejo
Corto todas as cebolas da casa
Arrasto os móveis, incenso
Ele tem um medo de dizer que me ama
E me aperta a mão 
E me chama de amiga.

Luiz Carlos Lacerda