segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Eu ouço música


Eu ouço música como quem apanha chuva: 
resignado
e triste
de saber que existe um mundo
do Outro Mundo...

Eu ouço música como quem está morto
e sente

um profundo desconforto
de me verem ainda neste mundo de cá...

Perdoai,
maestros,
meu estranho ar!

Eu ouço música como um anjo doente
que não pode voar.

Mário Quintana. "Apontamentos de história sobrenatural".

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O guardador de rebanhos - VIII


Fernando Pessoa

(Alberto Caeiro)



Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem


E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!


Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz


E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.


A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.


Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
..........................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.


A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.


A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.


Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.


Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade


Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.


Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
.................................................................................

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
....................................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?


08-03-1914


segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Quintana

"É preciso algo que nos preocupe
Para acabar com a monotonia.
Briga com a sogra, duvida
De tua vida, de Deus, de tudo,
Das próprias coisas que melhores julgas,
Porque, na verdade,
Não há nada mais chato na vida
Do que um cachorro sem pulgas..."

Mario Quintana - Velório sem defunto

DAS UTOPIAS


Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!


Mario Quintana - Espelho Mágico

sábado, 21 de dezembro de 2013

Régio

Saio de mim
para quem sou
e jamais chego ao destino.
No caminho do ser
meu gozo é me perder.
Meu coração só tem morada
onde se acende um outro peito.
Meu anjo está cego,
meu poeta está mudo,
meu guru ficou amnésico.
O poeta
sabia que não ia por ali.
Eu vou por onde não sei.
Meu aqui
é sempre além.
Mia Couto, no livro “Idades Cidades Divindades”


Chegada

Chegas,
sóbria e sombria,
e desocupas em mim
a tua própria sombra.
Agora és a minha própria voz:
nenhum silêncio nos pode calar.
Falas e acaba o tempo.
E eu escuto-te
apenas quando te lembro.
Mia Couto

Regresso

Voltar
a percorrer o inverso dos caminhos,
reencontrar a palavra sem endereço
e contra o peito insuficiente,
oferecer a lágrima que não nos defende.
Recolher as marcas da minha lonjura
os sinais passageiros da loucura
e adormecer pela derradeira vez
nos lençóis em que anoitecemos.
Reencontrar secretamente
o fugaz encanto,
o perfeito momento
em que a carne tocou a fonte
e o sangue
fora de mim,
procurou o seu coração primeiro.
Mia Couto,  In Raiz de Orvalho e outros poemas

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Memória de um amor que nunca foi

Bebedor de luas me embriago,
negro no fundo negro das vielas
e me dissolvo, sem passo, no abismo
onde o tempo naufraga sem lembrança.
Um rio sustenta a tua boca,
duas margens de água e carne,
duas feridas de um desejo que do corpo se perdeu.
Não fosse a tua boca
água nua esperando um barco
e morreria eu de amar,
e morrerias tu sem mar.
Mas do sempre que fomos
o que restou?
Silêncio aos pedaços,
palavras que em lágrima se soletram.
E são de aves
as folhas que tombam
e não há chão nem vento onde se deitem. 
Melhor dormir se o tempo se faz sem ti
e guardar-te em sonho
até tu mesmo seres noite. 
Desperto: todas as pedras secaram,
saudosas de carícia tua.
Todas as luas ficaram por nascer
sedentas dos olhos que são teus.
Depois volto a beber
o luminoso veneno em que escureço
e o dia regressa,
mendigo e magro,
buscando em mim
lembrança de um amor
que de tanto ser
não saberá nunca ter lembrança.
Mia Couto

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Hoje Tomei a Decisão de Ser Eu




Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser Eu, de viver à altura do meu mister, e, por isso, de desprezar a ideia do reclame, e plebeia sociabilizacão de mim, do Interseccionismo, reentrei de vez, de volta da minha viagem de impressões pelos outros, na posse plena do meu Génio e na divina consciência da minha Missão. Hoje só me quero tal qual meu carácter nato quer que eu seja; e meu Génio, com ele nascido, me impõe que eu não deixe de ser. 

Atitude por atitude, melhor a mais nobre, a mais alta e a mais calma. Pose por pose, a pose de ser o que sou. 

Nada de desafios à plebe, nada de girândolas para o riso ou a raiva dos inferiores. A superioridade não se mascara de palhaço; é de renúncia e de silêncio que se veste. 

O último rasto de influência dos outros no meu carácter cessou com isto. Reconheci — ao sentir que podia e ia dominar o desejo intenso e infantil de « lançar o Interseccionismo» — a tranquila posse de mim. 
Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci. 

Fernando Pessoa, 
'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação'

Fonte:
Palavras sentidas

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Porco-espinhos/homens



“Um grupo de porcos-espinhos num frio dia de inverno se aglomerou para, através do aquecimento recíproco, não morrer de frio. Contudo, logo começam a sentir os espinhos uns dos outros, o que os leva então a se afastarem novamente. Quando a necessidade de aquecimento os aproxima mais uma vez, repete-se aquele segundo infortúnio. Neste vai-e-vem em meio aos dois sofrimentos, seguem até encontrarem uma distância segura entre eles, na qual podem melhor suportá-los. Do mesmo modo os homens são impelidos uns aos outros pelas necessidades da sociedade, de cujo seio surgem o vazio e a monotonia. Entretanto, suas particularidades assaz desagradáveis e defeitos insuportáveis os afastam mais uma vez. A distância mediana ao fim encontrada, na qual podem se reunir, são a polidez e os bons costumes (...) Quem no entanto tem muito de seu calor interno prefere ficar longe da sociedade, para não ser incomodado e não causar incômodo.”

- Arthur Schopenhauer, Parerga und Paralipomena II

domingo, 15 de dezembro de 2013

OS DEGRAUS



Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...

Mario Quintana - Baú de Espantos

domingo, 1 de dezembro de 2013

UM DIA ACORDARÁS



Um dia acordarás num quarto novo
sem saber como fosse para lá
e as vestes que acharás ao pé do leito
de tão estranhas te farão pasmar,

a janela abrirás, devagarinho:
fará nevoeiro e tu nada verás...
Hás de tocar, a medo, a campainha
e, silenciosa, a porta se abrirá.

E um ser, que nunca viste, em um sorriso
triste, te abraçará com seu maior carinho
e há de dizer-te para o teu assombro:

— Não te assustes de mim, que sofro há tanto!
Quero chorar — apenas — no teu ombro
e devorar teus olhos, meu amor...

_____Mario Quintana - Nariz de Vidro

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A noite

Ouvi em algum lugar:
"Todo noite era a mesma coisa. Ele tinha medo que a noite acabasse com a chegada dos primeiros raios do sol. Não porque gostasse da escuridão, mas porque não queria ter a fadiga de viver um outro dia, de ter que enfrentar a necessidade da ação.
Por isso a noite era o melhor momento do dia. Representava a hora do descanso das obras."

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

“A oração do ateu”


Ouve meus rogos Tu, Deus que não existes,
e em Teu nada recolhe estas minhas queixas;
Tu, que aos pobres homens nunca deixas
sem consolo de engano. Não resistes
ao nosso rogo, e nosso anelo viste,
quando mais Te afastas de minha mente;
mas recordo os doces conselhos somente
com que minh’alma acalentou noites tão tristes.
Quão grande és, meu Deus! Tu és tão grande,
que não és senão Idéia; é muito estreita
a realidade por muito que se expande 
para abarcar-te. Sofro eu por tua causa,
Deus não existente, pois se tu fosses realidade,
eu também existiria de verdade.

Miguel de Unamuno

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

OS OLHOS DOS POBRES


Ah! Você quer saber por que eu a odeio hoje. Será, certamente, menos fácil para você compreender do que  para mim, explicar; porque você é, creio, o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar.

Tínhamos passado juntos um longo dia que me parecera curto. Nós nos tínhamos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns a um e ao outro e que nossas duas almas não seriam mais do que uma só — um sonho que nada tem de original, uma vez que, afinal, é um sonho sonhado por todos os homens, mas nunca realizado por nenhum.

À noite, já um pouco fatigada, você quis sentar-se em frente a um café novo, na esquina de um bulevar também novo, ainda cheio de cascalhos, mas já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café brilhava. Mesmo as simples tochas de gás revelavam todo o ardor de uma estréia e iluminavam, com todas as suas forças, as paredes de uma brancura ofuscante, exibindo a seqüência de espelhos, o ouro das molduras e dos frisos, mostrando pagens rechonchudos arrastados por cães nas coleiras, senhoras rindo com os falcões pousados em seus punhos, ninfas e deusas trazendo frutas em suas cabeças, patês e caças diversas, as Hebes e Ganimedes apresentando, com os braços estendidos, a pequena ânfora com creme bávaro ou o obelisco bicolor de sorvetes coloridos; enfim, toda a história e a mitologia postas a serviço da glutonaria.

Bem em frente de nós, na calçada, estava plantado um homem de bem, de uns quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, tendo numa das mãos um menino e sobre o outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele cumpria o papel de uma babá e trazia seus filhos para tomar o ar da noite. Todos em farrapos. Esses três rostos estavam extremamente sérios e seus seis olhos contemplavam fixamente o novo café com igual admiração, mas, naturalmente, com as nuances devidas às idades.

Os olhos do pai diziam: “Que beleza! Que beleza! Dir-se-ia que todo o ouro do pobre mundo fora posto nessas paredes.” Os olhos do menino: “Que beleza! Que beleza! Mas é uma casa onde só podem entrar pessoas que não são como nós!” Quanto aos olhos do menor, eles estavam fascinados demais para exprimirem outra coisa senão uma alegria estúpida e profunda.

Os cancioneiros dizem que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. A canção tinha razão nesta noite relativamente a mim. Não somente eu estava enternecido por esta família de olhos, como me sentia envergonhado por nossos copos e nossas garrafas, maiores que nossa sede. Virei meus olhos para os seus, querido amor, para ler neles o “meu pensamento”; mergulhei em seus olhos tão belos e tão bizarramente doces, nos seus olhos verdes, habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: “Não suporto essa gente com seus olhos arregalados como as portas das cocheiras! Será que você poderia pedir ao maîttre do café para afastá-los daqui?”

É tão difícil o entendimento, meu caro anjo, e tão incomunicável é o pensamento mesmo entre as pessoas que se amam.

In,  "Pequenos Poemas em Prosa" (também conhecida como Le Spleen de Paris) de Charles Baudelaire


Embebedai-vos

É preciso estar-se, sempre, bêbado. Tudo está lá, eis a única questão. Para não sentir o fardo do tempo que parte vossos ombros e verga-vos para a terra, é preciso embebedar-vos sem tréguas.

Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, a escolha é vossa. Mas embebedai-vos.

E se, às vezes, sobre os degraus de um palácio, sobre a grama verde de uma vala, na solidão morna de vosso quarto, vós vos acordardes, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que passa, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, vos responderão: “É hora de embebedar-vos! Para não serdes escravos martirizados do Tempo, embebedai-vos, embebedai-vos sem parar! De vinho, de poesia ou de virtude: a escolha é vossa.”

"Pequenos Poemas em Prosa" (Le Spleen de Paris) de Charles Baudelaire.

domingo, 17 de novembro de 2013

O QUARTO DUPLO


UM QUARTO que parece um devaneio, um quarto verdadeiramente "espiritual", onde a atmosfera estagnada é de leve tingida de róseo e de azul.

Nele a alma toma um banho de preguiça, aromatizado pelo arrependimento e pelo desejo. É algo crepuscular, azulado e tenuemente cor-de-rosa; um sonho de volúpia durante um eclipse.

Os móveis tem formas alongadas, desfalecidas, enlanguescidas. Dão a impressão de estar sonhando; dir-se-iam dotados de uma vida sonambúlica, assim como o vegetal e o mineral. Falam os estofos uma língua muda, como as flores, como os céus, como os poentes.

Nas paredes, nenhuma abominação artística. Relativamente ao sonho puro, à impressão não analisada, a arte definida, a arte positiva é uma blasfêmia. Aqui, há em tudo a suficiente claridade e a deliciosa obscuridade da harmonia.

Um aroma infinitestinal, da mais requintada escolha, ao qual se mistura leve toque de umidade, flutua nesta atmosfera, onde o espírito dorminante é embalado por sensações cálidas de estufa.

Chove copiosamente a musselina diante das janelas e do leito; derrama-se em cascatas nevadas. No leito jaz um Ídolo, a soberania dos sonhos. Mas como veio ter aqui? Quem a trouxe? que mágico poder a instalou neste trono de fantasias e de volúpia? Que importa! Ei-la! Reconheço-a.

São aqueles os olhos cuja flama atravessa o crepúsculo; aqueles sutis e terríveismirantes, que eu reconheço na sua espantosa malícia! Eles atraem, subjugam, devoram o olhar do incauto que os contempla. Estudei-as muitas vezes, a essas estrelas negras que impõem curiosidade e admiração.

A que demônio benévolo devo eu o estar assim cercado de mistério, de silêncio, de paz e de perfumes? Ó beatitude! aquilo a que em geral chamamos a vida, nada tem de comum, mesmo na mais feliz das suas expansões, com esta vida suprema que eu agora conheço e que saboreio minuto a minuto, segundo a segundo!
 Não! já não há minutos, já não há segundos! O tempo desapareceu; é a Eternidade que reina, uma eternidade feita de delícias!

Mas um golpe terrível, pesado, ressoou à porta, e, como nos sonhos infernais, pareceu-me receber uma picaretada no estômago.

E depois entrou um Espectro. É um meirinho que vem torturar em nome da lei; uma infante concubina que vem chorar miséria e acrescentar às dores da minha vida as atividades da sua; ou o contínuo de um diretor de jornal que reclama a continuação do manuscrito.

O quarto paradisiaco, o Ídolo, a soberana dos sonhos, a Sílfide, como dizia o grande René, toda essa magia desapareceu ao golpe brutal vibrado pelo Espectro.

Horror! Bem me lembro! bem me lembro! Sim, esta pocilga, esta morada do eterno tédio, é bem a minha. Eis aqui os móveis estúpidos, poentos, esbeiçados; a lareira sem chama e sem brasa, manchada de escarno; as tristes janelas onde a chuva abriu sulcos na poeira; os manuscritos riscados ou incompletos; o calendário onde o lápis assinalou as datas sinistras!

E àquele perfume de outro mundo, de que eu me embriagava com sensibilidade aprimorada - ai! -, sucedeu um fétido cheiro de tabaco, mesclado a um vago e nauseante odor a mofo. Respira-se aqui, agora, o bafo da desolação.

Neste mundo estreito, mas tão cheio de tédio, um único objeto conhecido me sorri: a garrafinha de láudanos; velha e terrível amiga; como todas as amigas - ai! -, fecunda em carícias e traições.

Oh, sim! ressurgiu o Tempo; o Tempo agora reina como soberano; e com o horrendo velho retornou todo o seu cortejo demoníaco de Lembranças, de Pesares, de Espasmos, de Terrores, de Angústias, de Pesadelos, de Cóleras e de Neuroses.

Eu vos asseguro que os segundos, agora, são fortes e solenemente assinalados, e cada um deles, jorrando do pêndulo, diz: - "Eu sou a Vida, a insuportável, a implacável Vida!"

Em toda a vida humana humana só há um Segundo que tem a missão de anunciar uma boa-nova, a boa-nova que a todos causa inexplicável medo.

Sim! reina o Tempo; reassumiu a sua brutal ditadura. E acossa-me, como se eu fosse um boi, com o seu ferrão: - "Eia, burrico! Sua, escravo! Vive, condenado!"

Charles Baudelaire


CADA UM COM SUA QUIMERA


Sob um grande céu cinzento, uma grande planície empoeirada, sem trilhas, sem gramado, sem um cacto, sem uma urtiga, encontrei alguns homens que caminhavam curvados.
Cada um deles levava às costas uma enorme Quimera, tão pesada quanto um saco de farinha ou de carvão ou os apetrechos de um soldado romano.
Mas a monstruosa besta não era um peso inerte, ao contrário, ela envolvia e oprimia o homem com seus músculos elásticos e potentes; ela agarrava-se ao peito de sua montaria, com suas duas vastas garras e a cabeça fabulosa sobrepunha-se à fronte do homem, como um desses capacetes horríveis com os quais os antigos guerreiros esperavam aumentar o terror dos inimigos.
Questionei um desses homens e perguntei-lhe para onde iam assim, Ele me respondeu que de nada sabia, nem ele nem os outros; mas que, evidentemente, iriam a algum lugar, pois eram impulsionados por uma invencível vontade de andar.
Coisa curiosa de se anotar: nenhum desses viajantes tinha um ar irritado contra a besta feroz pendurada em seu pescoço e colada às suas costas. Dir-se—ia que as consideravam como fazendo parte deles mesmos. Todas essas faces fatigadas e sérias não testemunhavam qualquer desespero; sob a cúpula ente- diante do céu, os pés afundados na poeira de um chão também tão desolado quanto este céu, eles caminhavam com a fisionomia resignada dos que são condenados a esperar sempre.
E o cortejo passou a meu lado e se afundou na atmosfera do horizonte, no local onde a superfície arredondada do planeta se furta à curiosidade do olhar humano.
E durante alguns instantes eu me obstinava em querer compreender este mistério, mas logo uma irresistível indiferença se abateu sobre mim e eu fiquei mais pesadamente oprimido do que eles próprios por suas esmagadoras Quimeras.

Pequenos Poemas em Prosa - Charles Baudelaire

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Desassossego

Márcio Ramos

O frio da noite me desperta, roubando-me o sono.
Como Narciso diante de seu reflexo no rio, sou forçado a ver minha imagem, mas ela não me parece perfeita.
Tenho que enfrentar meus demônios.
Lá fora ouço música, dança, muita agitação.
Haverá alegria em meio a tal alvoroço?

Questões fustigam meu ser...
A vida parece me sorrir com meio sorriso.
Há sempre a existência da falta.
Há sempre o sentimento da saudade.
A ausência de sentido parece ser a regra da existência.

Afinal, é possível encontrar sentido em nossa vida tão curta?
Cada sentido construído é passageiro, limitado,  incompleto...
Fugir dos demônios existenciais, talvez em meio à agitação social, não parece uma boa opção?

O frio novamente me toca e diz não!
O que me faz ter uma existência humana significativa é a coragem de me olhar no espelho.
Mesmo que esse autoconhecimento provoque desassossego e me  leve a perder o sono madrugada afora.


21 de julho de 2012

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Precisamos de você (Bertolt Brecht)



Aprende - lê nos olhos,lê nos olhos - aprende
a ler jornais, aprende:
a verdade pensa
com tua cabeça.

Faça perguntas sem medo
não te convenças sozinho
mas vejas com teus olhos.
Se não descobriu por si,
na verdade não descobriu.

Confere tudo ponto
por ponto - afinal
você faz parte de tudo,
também vai no barco,
"aí pagar o pato, vai
pegar no leme um dia."

Aponte o dedo, pergunte
que é isso? Como foi
parar aí? Por que?
Você faz parte de tudo.

Aprende, não perde nada
das discussões, do silêncio.
Esteja sempre aprendendo
por nós e por você.

Você não será ouvinte
diante da discussão,
não será cogumelo
de sombras e bastidores,
não será cenário
para nossa ação.

Bertolt Brecht (1898–1956) foi um influente dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX. 


segunda-feira, 23 de setembro de 2013

De que Serve a Bondade





De que serve a bondade 
Quando os bondosos são logo abatidos, ou são abatidos 
Aqueles para quem foram bondosos? 

De que serve a liberdade 
Quando os livres têm que viver entre os não-livres? 

De que serve a razão 
Quando só a sem-razão arranja a comida de que cada um precisa? 



Em vez de serdes só bondosos, esforçai-vos 
Por criar uma situação que torne possível a bondade, e melhor;
A faça supérflua! 

Em vez de serdes só livres, esforçai-vos 
Por criar uma situação que a todos liberte 
E também o amor da liberdade 
Faça supérfluo! 

Em vez de serdes só razoáveis, esforçai-vos 
Por criar uma situação que faça da sem-razão dos indivíduos 
Um mau negócio! 

Bertold Brecht, in 'Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas' 
Tradução de Paulo Quintela

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Vida


Uma estranha sensação domina a minha alma,
O prazer, o medo, a insegurança e a precariedade do viver.
A liberdade de ter o destino em minha mão me encanta,
Mas o que fazer dela é a decisão que determinará quem de fato quero ser.

Outrora tudo era mais seguro e estável.
A rota estava traçada por uma força externa.
A mim cabia resolutamente segui-la, sem questioná-la.
Mesmo que para isso tivesse que andar na penumbra de minha existência.

Eis que repentinamente um raio penetrou pela fresta de meu coração.
O desejo adormecido de felicidade se inquietou. E  acordou.
Tocado pela força absurda e provocadora do amor,
Novos sentidos e possibilidades do construto de quem sou brotaram.
Como uma pequena nascente de água redescoberta e despoluída, que volta a jorrar vida.

Sentir-se com o leme nas mãos é libertador.
Por isso opto pelo não retorno à terra firme.
Preciso me construir na caminhada,
Preciso sentir o vento,
Preciso contemplar o céu,
Preciso enfrentar as ondas, suaves e bravias.
E preciso de companheiros nessa jornada.


Márcio Ramos, 17 de janeiro de 2012


Noite


Carlos Drummond de Andrade
Há tantas coisas germinando na noite, que nem sei como enumerá-las. À noite nascem as revoluções tanto as que vão triunfar como as que só se realizam em pensamento, e são quase todas. Os revolucionários viram-se, inquietos, na cama. E também os que se converterão, pela manhã, a religiões novas. E os amorosos. Análises emocionais levadas ao extremo da tortura arrastam-se pela horas lentas da noite. Como a noite é rica! A noite é o tempo de não dormir; é o de velar e procurar; de criar mundos.
Demétrio quis prolongar a noite obturando todas as frestas do quarto, para que não entrasse a luz. Luz não entrou. Demétrio gozou da noite plena, continuada, e todos os pensamentos lhe floresciam. Construiu sistemas filosóficos. A escuridão era propícia a teorias políticas. Nenhum crítico foi mais perspicaz do que Demétrio, na literatura e nas artes. Aquela noite era fantástica. Demétrio quis experimentar as sensações de horror, êxtase, humilhação, glória, poder e morte. Morreu, mesmo no escuro. Tendo sentido a morte em seu interior físico, não pôde mais tirá-la de si. É o único morto, conscientemente morto, de que já ouvi falar nesta vida. A noite é fantástica.
Contos Plausíveis, in Andrade, C. D. (1992): Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Aguilar, pg. 1240

Texto de KANT: Resposta à Pergunta: Que é esclarecimento []?


Esclarecimento [<Aufklärung>] é a saída do homem de sua menoridade,
da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu
entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa
menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de
decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude!
Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento
[<Aufklärung>].

A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos
homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha
(naturaliter maiorennes), continuem, no entanto de bom grado menores durante toda a
vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se
constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as
vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um
médico que por mim decide a respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçarme
eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar;
outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis. A imensa maioria da
humanidade (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e
além do mais perigosa, porque aqueles tutores de bom grado tomaram a seu cargo a
supervisão dela. Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado doméstico e
preservado cuidadosamente estas tranqüilas criaturas a fim de não ousarem dar um
passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as encerraram, mostram-lhes, em
seguida, o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo na verdade
não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de algumas
quedas. Basta um exemplo deste tipo para tornar tímido o indivíduo e atemorizá-lo em
geral para não fazer outras tentativas no futuro.

É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da
menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a
ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca
o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos
mecânicos do uso racional, ou, antes, do abuso de seus dons naturais, são os grilhões de
uma perpétua menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto
inseguro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este
movimento livre. Por isso são muito poucos aqueles que conseguiram, pela
transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma
marcha segura.

Que, porém, um público se esclareça [<aufkläre>] a si mesmo é
perfeitamente possível; mais que isso, se lhe for dada a liberdade, é quase inevitável.
Pois, encontrar-se-ão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até
entre os tutores estabelecidos da grande massa, que, depois de terem sacudido de si
mesmos o jugo da menoridade, espalharão em redor de si o espírito de uma avaliação
racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo. O
interessante nesse caso é que o público, que anteriormente foi conduzido por eles a este
jugo, obriga-os daí em diante a permanecer sob ele, quando é levado a se rebelar por
alguns de seus tutores que, eles mesmos, são incapazes de qualquer esclarecimento
[<Aufklärung>]. Vê-se assim como é prejudicial plantar preconceitos, porque terminam
por se vingar daqueles que foram seus autores ou predecessores destes. Por isso, um
público só muito lentamente pode chegar ao esclarecimento [<Aufklärung>]. Uma
revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de
lucros ou de domínios, porém nunca produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar.
Apenas novos preconceitos, assim como os velhos, servirão como cintas para conduzir a
grande massa destituída de pensamento.

Para este esclarecimento [<Aufklärung>], porém, nada mais se exige senão
LIBERDADE. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a
saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém,
exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas
exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama:
não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto
quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!). Eis aqui por toda a parte a limitação
da liberdade. Que limitação, porém, impede o esclarecimento [<Aufklärung>]? Qual
não o impede, e até mesmo favorece? Respondo: o uso público de sua razão deve ser
sempre livre e só ele pode realizar o esclarecimento [<Aufklärung>] entre os homens. O
uso privado da razão pode, porém, muitas vezes, ser muito estreitamente limitado, sem
contudo por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento [<Aufklärung>].
Entendo, contudo, sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer
homem, enquanto SÁBIO, faz dela diante do grande público do mundo letrado.

Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em um certo cargo
público ou função a ele confiado. Ora, para muitas profissões que se exercem no
interesse da comunidade, é necessário um certo mecanismo, em virtude do qual alguns
membros da comunidade devem comportar-se de modo exclusivamente passivo para
serem conduzidos pelo governo, mediante uma unanimidade artificial, para finalidades
públicas, ou pelo menos devem ser contidos para não destruir essa finalidade. Em casos
tais, não é sem dúvida permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. Na medida, porém,
em que esta parte da máquina se considera ao mesmo tempo membro de uma
comunidade total, chegando até a sociedade constituída pelos cidadãos de todo o
mundo, portanto na qualidade de sábio que se dirige a um público, por meio de obras
escritas de acordo com seu próprio entendimento, pode certamente raciocinar, sem que
por isso sofram os negócios a que ele está sujeito em parte como membro passivo.
Assim, seria muito prejudicial se um oficial, a que seu superior deu uma ordem,
quisesse pôr-se a raciocinar em voz alta no serviço a respeito da conveniência ou da
utilidade dessa ordem. Deve obedecer. Mas, razoavelmente, não se lhe pode impedir,
enquanto homem versado no assunto, fazer observações sobre os erros no serviço
militar, e expor essas observações ao seu público, para que as julgue. O cidadão não
pode se recusar a efetuar o pagamento dos impostos que sobre ele recaem; até mesmo a
desaprovação impertinente dessas obrigações, se devem ser pagas por ele, pode ser
castigada como um escândalo (que poderia causar uma desobediência geral).

Exatamente, apesar disso, não age contrariamente ao dever de um cidadão se, como
homem instruído, expõe publicamente suas idéias contra a inconveniência ou a injustiça
dessas imposições. Do mesmo modo também o sacerdote está obrigado a fazer seu
sermão aos discípulos do catecismo ou à comunidade, de conformidade com o credo da
Igreja a que serve, pois foi admitido com esta condição. Mas, enquanto sábio, tem
completa liberdade, e até mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as
suas idéias, cuidadosamente examinadas e bem intencionadas, sobre o que há de errôneo
naquele credo, e expor suas propostas no sentido da melhor instituição da essência da
religião e da Igreja. Nada existe aqui que possa constituir um peso na consciência. Pois
aquilo que ensina em decorrência de seu cargo como funcionário da Igreja, expõe-no
como algo em relação ao qual não tem o livre poder de ensinar como melhor lhe pareça,
mas está obrigado a expor segundo a prescrição de um outro e em nome deste. Poderá
dizer: nossa igreja ensina isto ou aquilo; estes são os fundamentos comprobatórios de
que ela se serve.

Tira então toda utilidade prática para sua comunidade de preceitos que ele
mesmo não subscreveria, com inteira convicção, em cuja apresentação pode contudo se
comprometer, porque não é de todo impossível que em seus enunciados a verdade esteja
escondida. Em todo caso, porém, pelo menos nada deve ser encontrado aí que seja
contraditório com a religião interior. Pois se acreditasse encontrar esta contradição não
poderia em sã consciência desempenhar sua função, teria de renunciar. Por conseguinte,
o uso que um professor empregado faz de sua razão diante de sua comunidade é
unicamente um uso privado, porque é sempre um uso doméstico, por grande que
seja a assembléia. Com relação a esse uso ele, enquanto padre, não é livre nem tem o
direito de sê-lo, porque executa uma incumbência estranha. Já como sábio, ao contrário,
que por meio de suas obras fala para o verdadeiro público, isto é, o mundo, o sacerdote,
no uso público de sua razão, goza de ilimitada liberdade de fazer uso de sua própria
razão e de falar em seu próprio nome. Pois o fato de os tutores do povo (nas coisas
espirituais) deverem ser eles próprios menores constitui um absurdo que dá em
resultado a perpetuação dos absurdos.

Mas não deveria uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma
assembléia de clérigos, ou uma respeitável classe (como a si mesma se denomina entre
os holandeses) estar autorizada, sob juramento, a comprometer-se com um certo credo
invariável, a fim de por este modo de exercer uma incessante supertutela sobre cada um
de seus membros e por meio dela sobre o povo, e até mesmo a perpetuar essa tutela?
Isto é inteiramente impossível, digo eu. Tal contrato, que decidiria afastar para sempre
todo ulterior esclarecimento [<Aufklärung>] do gênero humano, é simplesmente nulo e
sem validade, mesmo que fosse confirmado pelo poder supremo, pelos parlamentos e
pelos mais solenes tratados de paz. Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar
a seguinte em um estado em que se torne impossível para esta ampliar seus
conhecimentos (particularmente os mais imediatos), purificar-se dos erros e avançar
mais no caminho do esclarecimento [<Aufklärung>]. Isto seria um crime contra a
natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço. E a
posteridade está portanto plenamente justificada em repelir aquelas decisões, tomadas
de modo não autorizado e criminoso. Quanto ao que se possa estabelecer como lei para
um povo, a pedra de toque está na questão de saber se um povo se poderia ter ele
próprio submetido a tal lei. Seria certamente possível, como se à espera de lei melhor,
por determinado e curto prazo, e para introduzir certa ordem. Ao mesmo tempo, se
franquearia a qualquer cidadão, especialmente ao de carreira eclesiástica, na qualidade
de sábio, o direito de fazer publicamente, isto é, por meio de obras escritas, seus reparos
a possíveis defeitos das instituições vigentes. Estas últimas permaneceriam intactas, até
que a compreensão da natureza de tais coisas se tivesse estendido e aprofundado,
publicamente, a ponto de tornar-se possível levar à consideração do trono, com base em
votação, ainda que não unânime, uma proposta no sentido de proteger comunidades
inclinadas, por sincera convicção, a normas religiosas modificadas, embora sem
detrimento dos que preferissem manter-se fiéis às antigas. Mas é absolutamente
proibido unificar-se em uma constituição religiosa fixa, de que ninguém tenha
publicamente o direito de duvidar, mesmo durante o tempo de vida de um homem, e
com isso por assim dizer aniquilar um período de tempo na marcha da humanidade no
caminho do aperfeiçoamento, e torná-lo infecundo e prejudicial para a posteridade. Um
homem sem dúvida pode, no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim só por algum
tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento [<Aufklärung>]. Mas
renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa
ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade. O que, porém, não é lícito a
um povo decidir com relação a si mesmo, menos ainda um monarca poderia decidir
sobre ele, pois sua autoridade legislativa repousa justamente no fato de reunir a vontade
de todo o povo na sua. Quando cuida de toda melhoria, verdadeira ou presumida,
coincida com a ordem civil, pode deixar em tudo o mais que seus súditos façam por si
mesmos o que julguem necessário fazer para a salvação de suas almas. Isto não lhe
importa, mas deve apenas evitar que um súdito impeça outro por meios violentos de
trabalhar, de acordo com toda sua capacidade, na determinação e na promoção de si.
Causa mesmo dano a sua majestade quando se imiscui nesses assuntos, quando submete
à vigilância do seu governo os escritos nos quais seus súditos procuram deixar claras
suas concepções. O mesmo acontece quando procede assim não só por sua própria
concepção superior, com o que se expõe à censura: Ceaser non est supra grammaticos,
mas também e ainda em muito maior extensão, quando rebaixa tanto seu poder supremo
que chega a apoiar o despotismo espiritual de alguns tiranos em seu Estado contra os
demais súditos.

Se for feita então a pergunta: "vivemos agora uma época esclarecida
[<aufgeklärten>]"?, a resposta será: "não, vivemos em uma época de esclarecimento
[<Aufklärung>]. Falta ainda muito para que os homens, nas condições atuais, tomados
em conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em
matéria religiosa sejam capazes de fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento
sem serem dirigidos por outrem. Somente temos claros indícios de que agora lhes foi
aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem
progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento [<Aufklärung>] geral ou à
saída deles, homens, de sua menoridade, da qual são culpados. Considerada sob este
aspecto, esta época é a época do esclarecimento [<Aufklärung>] ou o século de
Frederico.

Um príncipe que não acha indigno de si dizer que considera um dever não
prescrever nada aos homens em matéria religiosa, mas deixar-lhes em tal assunto plena
liberdade, que, portanto, afasta de si o arrogante nome de tolerância, é realmente
esclarecido [<aufgeklärt>] e merece ser louvado pelo mundo agradecido e pela
posteridade como aquele que pela primeira vez libertou o gênero humano da
menoridade, pelo menos por parte do governo, e deu a cada homem a liberdade de
utilizar sua própria razão em todas as questões da consciência moral. Sob seu governo
os sacerdotes dignos de respeito podem, sem prejuízo de seu dever funcional expor livre
e publicamente, na qualidade de súditos, ao mundo, para que os examinasse, seus juízos
e opiniões num ou noutro ponto discordantes do credo admitido. Com mais forte razão
isso se dá com os outros, que não são limitados por nenhum dever oficial. Este espírito
de liberdade espalha-se também no exterior, mesmo nos lugares em que tem de lutar
contra obstáculos externos estabelecidos por um governo que não se compreende a si
mesmo. Serve de exemplo para isto o fato de num regime de liberdade a tranqüilidade
pública e a unidade da comunidade não constituírem em nada motivo de inquietação. Os
homens se desprendem por si mesmos progressivamente do estado de selvageria,
quando intencionalmente não se requinta em conservá-los nesse estado.
Acentuei preferentemente em matéria religiosa o ponto principal do
esclarecimento [<Aufklärung>], a saída do homem de sua menoridade, da qual tem a culpa. Porque no
que se refere às artes e ciências nossos senhores não têm nenhum interesse em exercer a
tutela sobre seus súditos, além de que também aquela menoridade é de todas a mais
prejudicial e a mais desonrosa. Mas o modo de pensar de um chefe de Estado que
favorece a primeira vai ainda além e compreende que, mesmo no que se refere à sua
legislação, não há perigo em permitir a seus súditos fazer uso público de sua própria
razão e expor publicamente ao mundo suas idéias sobre uma melhor compreensão dela,
mesmo por meio de uma corajosa crítica do estado de coisas existentes. Um brilhante
exemplo disso é que nenhum monarca superou aquele que reverenciamos.
Mas também somente aquele que, embora seja ele próprio esclarecido
[<aufgeklärt>], não tem medo de sombras e ao mesmo tempo tem à mão um numeroso e
bem disciplinado exército para garantir a tranqüilidade pública, pode dizer aquilo que
não é lícito a um Estado livre ousar: raciocinais tanto quanto quiserdes e sobre
qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei! Revela-se aqui uma estranha e não
esperada marcha das coisas humanas; como, aliás, quando se considera esta marcha em
conjunto, quase tudo nela é um paradoxo. Um grau maior de liberdade civil parece
vantajoso para a liberdade de espírito do povo e, no entanto, estabelece para ela limites
intransponíveis; um grau menor daquela dá a esse espaço o ensejo de expandir-se tanto
quanto possa. Se, portanto, a natureza por baixo desse duro envoltório desenvolveu o
germe de que cuida delicadamente, a saber, a tendência e a vocação ao pensamento
livre, este atua em retorno progressivamente sobre o modo de sentir do povo (com o que
este se torna capaz cada vez mais de agir de acordo com a liberdade), e finalmente até
mesmo sobre os princípios do governo, que acha conveniente para si próprio tratar o
homem, que agora é mais do que simples máquina, de acordo com a sua dignidade.