quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A VIDA PESSOAL - Ortega e Gasset

Um pouco de filosofia. A ideia da solidão radical de Ortega e Gasset


Extrato do livro "O Homem e a Gente". Trad. J. Carlos Lisboa. Livro Ibero-Americano, 1960.

A VIDA PESSOAL

Trata-se de que, mais uma vez, o homem se perdeu. Porque não é coisa nova nem acidental. O homem se perdeu muitas vezes ao longo da história, — ainda mais: é constitutivo do homem, diferentemente de todos os demais seres, o ser capaz de perder-se, de se perder na selva da existência, dentro de si mesmo, e, graças a essa outra sensação de perda, re-operar energicamente para voltar a encontrar-se. A capacidade e o desgosto de sentir-se perdido são o seu trágico destino e seu ilustre privilégio.

Partamos, pois, mobilizados pelo intento de achar, em forma irrecusável, plenamente evidente, fatos de fisionomia tão característica que não nos pareça adequada outra denominação senão a de chamá-los, em sentido estrito, de "fenômenos sociais". Esta operação rigorosissima e decisiva, — a de achar que um tipo de fatos é uma realidade ou fenômeno, definitiva e resolutoriamente, sem dúvida alguma nem erro possível, diferente e, portanto, irredutível a qualquer outro tipo de fatos que se podem dar, — tem de consistir em que retrocedamos a uma ordem de realidade última, a uma ordem ou área de realidade que, por ser esta realidade radical, não deixe por baixo de si nenhuma outra,- ou melhor, por ser a básica, tenham de aparecer forçosamente, sobre ela, todas as demais.

Essa realidade radical, em cuja estrita contemplação temos de fundamentar e assegurar, ultimamente, todo nosso conhecimento de algo, é nossa vida, a vida humana.

Sempre que digo "vida humana", seja o que for, a não ser que eu faça alguma especial restrição, evite-se pensar na vida de outro, e cada um deve referir-se à sua própria e tratar de tê-la presente. Vida humana como realidade radical é somente a de cada um, é somente a minha vida. Para comodidade de linguagem, algumas vezes a chamarei de "nossa vida", mas deve sempre entender-se que, com essa expressão, me refiro à vida de cada um e não à dos outros, nem a uma suposta vida plural e comum. O que chamamos "vida dos outros", a do amigo, a da amada, já é algo que aparece no cenário que é a minha vida, a de cada um, e portanto, supõe esta. A vida de outro, ainda mesmo daquele que nos esteja mais próximo e íntimo, já é para mim mero espetáculo, como a árvore, a rocha, a nuvem viageira. Vejo-a mas não a sou, isto é, não a vivo. Se lhe doem os dentes a outro, a mim me é patente a sua fisionomia, a figura de seus músculos contraídos; ele é o espetáculo de alguém afligido pela dor, mas essa dor de dentes não me dói a mim e, portanto, o que tenho dela não se parece nada com aquilo que tenho, quando os dentes me doem a mim. Em rigor, a dor de dentes do próximo é ultimamente uma suposição, hipótese ou presunção minha, é uma dor presuntiva. A minha, no entanto, é inquestionável. Rigorosamente falando, nunca podemos estar certos de que ao amigo que se nos apresenta como portador de uma dor de dentes, estes lhe doam de fato. De sua dor só temos patentes certos sinais externos, que não são dor, mas concentração de músculos, olhar vago, a mão no rosto, esse gesto tão incongruente com aquilo que lhe dá origem, pois não parece senão que a dor de dentes seja um pássaro e que lhe pomos a mão em cima para que não se nos escape. A dor alheia não é realidade radical; mas realidade em sentido já secundário, derivativo e problemático. O que temos dela, com radical realidade, é somente o seu aspecto, a sua aparência, seu espetáculo, seus sinais. Esta é a única coisa dela que, com efeito, nos é patente e inquestionável. Mas a relação entre um sinal e o assinalado, entre uma aparência e o que nela aparece ou o que aparenta, entre um aspecto, e a coisa manifesta ou revelada (NT: Se o leitor me permitisse um, a meu ver eficaz, neologismo, de boa cepa, sugerido pela forma espanhola de Ortega, eu traduziria assim: "entre um aspecto e a coisa manifesta ou espetada nele"...) nele, é sempre, ultimamente, questionável e equívoca. Há quem nos finja perfeitamente toda a mise-en-scène da dor de dentes, sem padecê-la, para justificar fins privados. Já veremos como, diversamente, a vida de cada um não tolera ficções, porque, ao fingirmos algo para nós mesmos, sabemos, — é claro, — que fingimos, e nossa íntima ficção nunca consegue constituir-se plenamente; ao contrário, no fundo, notamos a sua não-autenticidade, não conseguimos enganar-nos de todo e vemos a sua falsidade. Esta genuinidade inexorável e a si mesmo evidente, indubitável, inquestionável, de nossa vida, — repito, — a de cada um, é a primeira razão que me faz denominá-la "realidade radical".

Mas há outra coisa. Ao chamá-la "realidade radical", não quero significar que seja a única, nem sequer que seja a mais elevada, respeitável ou sublime ou suprema, mas simplesmente que é a raiz, — daí, radical, — de todas as demais, no sentido de que estas, sejam quais forem, têm, para ser realidades diante de nós, têm de fazer-se presentes, de algum modo, ou, pelo menos, de anunciar-se nos âmbitos palpitantes de nossa própria vida. é, pois, essa realidade radical, — a minha vida, — tão pouco egoísta, tão nada "solipsista", que é, por essência, a área ou cenário oferecido e aberto para que toda outra realidade nela se manifeste e celebre seu Pentecostes. Deus mesmo, para ser Deus diante de nós, tem de achar maneira para nos denunciar a sua existência e, por isso, fulmina no Sinai, põe-se a arder nas sarças à beira do caminho e açoita os vendilhões no átrio do templo e navega sobre Gólgotas de três hastes, como as fragatas.

Daí, nenhum conhecimento de algo ser suficiente, — isto é, suficientemente profundo, radical, — se não começa por descobrir e precisar o lugar e o modo, dentro do orbe que é nossa vida, onde esse algo faz a sua aparição, assoma, brota e surge, em suma: existe. Porque isso significa propriamente existir, — vocábulo, presumo, originariamente de luta e beligerância, que designa a situação vital em que subitamente aparece, se mostra ou se faz aparente, entre nós, como brotando do solo, um inimigo que nos fecha o passo com energia, isto é, nos resiste e se afirma ou se torna firme a si mesmo diante e contra nós. No existir está incluído o resistir e, portanto, o afirmar-se o existente, se pretendemos suprimi-lo, anulá-lo ou tomá-lo como irreal. Por isso o existente ou surgente é realidade, já que realidade é tudo aquilo com que, queiramos ou não, temos de contar, porque, queiramos ou não, está aí, ex-iste, re-siste. Uma arbitrariedade terminológica, que raia pelo intolerável, vem querendo, desde alguns anos, empregar os vocábulos "existir" e "existência" com um sentido abstruso e incontrolável que é precisamente inverso daquele que, por si, a palavra milenar leva e diz.

Alguns querem hoje designar assim o modo de ser do homem; mas o homem, que é sempre eu, — o eu que é cada um, — é o único que não existe, mas vive ou é vivendo. São precisamente todas as demais coisas, que não são o homem, — eu, — aquelas que existem, porque aparecem, surgem, saltam, me resistem, se afirmam dentro do âmbito que é a minha vida. Seja isso dito e disparado de passagem.

Ora, dessa estranha e dramática realidade radical, — a nossa vida, — se podem dizer inumeráveis atributos, mas agora vou apenas destacar o mais imprescindível para o nosso tema.

E é que a vida não a demos nós a nós mesmos, mas a encontramos precisamente quando nos encontramos a nós mesmos. De repente, sem saber como, nem porque, sem prévio aviso, o homem se descobre e se surpreende tendo de ser, em um âmbito impremeditado, imprevisto, neste de agora, em uma conjuntura de circunstâncias determinadissimas.

Não é talvez ocioso observar que isto, — base do meu pensamento filosófico, — já foi anunciado, tal e como agora o fiz, em meu primeiro livro, publicado em 1914. Chamemos mundo provisoriamente e para facilitar a compreensão, — a esse âmbito impremeditado e imprevisto, a essa determinadissima circunstância em que, ao viver, sempre nos encontramos. Pois bem, esse mundo, em que tenho de ser, ao viver, me permite eleger dentro dele este sítio, ou outro, onde estar; mas a ninguém é dado escolher o mundo em que se vive; é sempre este, este de agora. Não podemos escolher o século, nem a jornada ou data em que vamos viver, nem o universo em que nos vamos mover. O viver ou ser vivente, o que é o mesmo, o ser homem não tolera preparação nem prévio ensaio. A vida nos é disparada a queima — roupa. Eu já o disse: onde e quando nascemos ou de onde estejamos, depois de nascer, temos de sair nadando, queiramos ou não. Neste instante, cada qual por si mesmo se encontra submerso em um ambiente que é um espaço em que tem, queira ou não queira, de enfrentar o elemento abstruso que é uma lição de filosofia, com algo que não sabe se lhe interessa ou não, se o entende ou não, que está gravemente consumindo uma hora de sua vida, — uma hora insubstituível, porque as horas de sua vida estão contadas. Esta é a sua circunstância, o seu aqui e o seu agora. Que fará? Porque, sem remédio, tem de fazer algo: atender-me ou, ao contrário, desatender-me, para vagar em meditações próprias, a pensar em seu negócio ou clientela, a recordar sua amada. Que fará? Levantar-se e ir-se ou ficar, aceitando a fatalidade de levar esta hora de sua vida, que porventura poderia ter sido tão bonita, ao matadouro das horas perdidas?

Porque, — repito, — algo, sem remédio, temos de fazer ou de estar fazendo sempre, pois esta vida, que nos é dada, não nos é dada feita; ao contrário, cada um de nós tem de fazê-la para si, cada qual, a sua. Essa vida que nos é dada, nos é dada vazia e o homem tem de ir enchendo-a, ocupando-a. As nossas ocupações são isto. Tal não acontece com a pedra, a planta, o animal. A eles é dado o seu ser já prefixado e resolvido. À pedra, quando começa a ser, não só é dada a sua existência mas lhe é prefixado, de antemão, o seu comportamento, — a saber, pesar, gravitar para o centro da terra. Semelhantemente, ao animal é dado o repertório da sua conduta, que está, sem a sua intervenção, governada por seus instintos. Ao homem, no entanto, lhe é dada a imperiosidade de ter de estar sempre fazendo algo, sob pena de sucumbir, mas não lhe é, de antemão e de uma vez para sempre, presente o que tem de fazer. Porque o mais estranho e incitante dessa circunstância, ou mundo, em que temos de viver, consiste em que sempre nos apresenta, dentro de seu círculo ou horizonte inexorável, uma variedade de possibilidades para a nossa ação, variedade diante da qual não temos outro remédio senão escolher e, portanto, exercitar a nossa liberdade. A circunstância, — repito, — o aqui e o agora, dentro dos quais estamos inexoravelmente inscritos e prisioneiros, — não nos impõe a cada instante uma única ação ou afazer, mas vários possíveis, e nos deixa cruelmente entregues à nossa iniciativa e inspiração, portanto: à nossa responsabilidade. Dentro de um momento, quando saírem para a rua, estarão obrigados a decidir sobre que direção tomarão, que rota. E, se tal acontece nesta ocasião trivial, muito mais ocorre nesses solenes momentos, decisivos da vida, nos quais o que se deve escolher é, nada menos, por exemplo, do que uma profissão, uma carreira, — e carreira significa estrada e direção do caminhar. Entre as poucas notas privadas que Descartes deixou, ao morrer, se acha uma de sua juventude, em que copiou um velho verso de Aussônio, o qual, por sua vez, traduz uma vetusta sentença pitagórica e que diz: Quod vitae sectabor iter: que estrada, que via tomarei para minha vida? Mas a vida não é senão o ser do homem, — portanto, isso significa o mais extraordinário, extravagante, dramático, paradoxal da condição humana, a saber: que é o homem a única realidade, a qual não consiste simplesmente em ser, mas tem de eleger o seu próprio ser. E se analisássemos esse pequeno acontecimento que se vai dar dentro de um momento, — o de que cada um haja de escolher e de decidir sobre a direção da rua que vai tomar, — veriam como, na escolha de uma ação, — tão simples, na aparência, — intervém íntegra a escolha que já fizeram, que neste momento, sentados, levam secreta no íntimo, em seu fundo recôndito, de um tipo de humanidade, de um modo de ser homem que em seu viver procuram realizar.

Para não nos perdermos, resumamos o que foi dito até agora: vida, no sentido de vida humana, portanto, em sentido biográfico e não biológico, — se por biologia se entende a psicosomática, — vida é encontrar-se alguém a que chamamos homem (como poderíamos e talvez devêssemos chamar X, — já verão porque), tendo de ser na circunstância ou mundo. Nosso ser, porém, enquanto "ser na circunstância", não é quieto e meramente passivo. Para ser, isto é, para continuar sendo, tem de estar sempre fazendo algo, mas isso que há-de fazer não lhe é imposto nem pre-fixado; antes: há-de escolhê-lo, há-de decidir, intransferivelmente, por si e diante de si, sob sua exclusiva responsabilidade. Ninguém pode substituí-lo nesse decidir sobre o que vai fazer, pois, inclusive o entregar-se à vontade de outro, é ele quem tem de decidir. Esta imperiosidade de ter de escolher e, portanto, estar condenado, queira ou não, a ser livre, a ser, por sua própria conta e risco, provém de que a circunstância nunca é unilateral, tem sempre vários e, às vezes, muitos lados. Isto é: convida-nos a diferentes possibilidades de fazer, de ser. Por isso passamos a vida a dizer-nos: "Por um lado", eu faria, pensaria, sentiria, quereria, decidiria isso, mas, "por outro lado"... A vida é multilateral. Cada instante e cada lugar abrem diante de nós diversos caminhos. Cotio diz o velhíssimo livro indiano: "onde quer que o homem ponha o pé, pisa sempre cem caminhos". Daí que a vida seja permanente encruzilhada e constante perplexidade. Por isso, costumo dizer que, a meu juízo, o mais certeiro título de um livro filosófico é o que leva a obra de Maimônides que se intitula: "More Nebuchim" — Guia para os Perplexos.

Quando queremos descrever uma situação vital extrema, em que a circunstância parece não nos deixar saída, nem, portanto, opção, dizemos, que "se está entre a espada e a parede"! A morte é certa, não há escapatória possível! Cabe qualquer opção? E, não obstante, é evidente que essa frase nos convida a escolher entre a espada e a parede. Privilégio tremendo e glória de que o homem goza e sofre por vezes — o de escolher a figura de sua própria morte: a morte do covarde ou a morte do herói, a morte feia ou a bela morte. De toda circunstância, mesmo a extrema, cabe a evasão. Do que não cabe evasão é de ter de fazer algo e, sobretudo, de fazer o que, afinal, é mais penoso-, escolher, preferir. Quantas vezes não se disse que se preferiria não preferir? Daí resulta que o que me é dado, quando me é dada a vida, não é senão afazer. A vida, bem o sabemos todos, dá muito que fazer. E o mais grave é conseguir que o fazer escolhido, em cada caso, seja não qualquer fazer, mas o que há a fazer, — aqui e agora, — que seja nossa verdadeira vocação, nosso autêntico afazer.

Entre todos esses caracteres da realidade radical ou vida, que anunciei, e que são uma parte mínima daqueles que fora mister descrever, para dar uma ideia, algo adequada, dela, entre todos, o que me interessa agora sublinhar é aquilo que o grande lugar-comum faz notar; que a vida é intransferível e que cada um tem de viver a sua,- que ninguém pode substituí-lo na faina de viver; que a dor de dentes que sente tem de doer-lhe a ele, e que ele não pode transferir a outro nem um pedaço dessa dor; que nenhum outro pode escolher, nem decidir, por delegação sua, o que vai fazer, o que vai ser; que ninguém pode substituí-lo, nem subrogar-se-lhe em sentir e querer; enfim, que não pode incumbir o próximo de pensar, em seu lugar, os pensamentos que necessita pensar para orientar-se no mundo, — no mundo das coisas e no mundo dos homens, — e assim acertar em sua conduta,- portanto, que necessita convencer-se ou não, ter evidências ou descobrir absurdos por sua própria conta, sem possível substituto, vigário ou lugar-tenente. Posso repetir-me mecanicamente que dois e dois são quatro, sem saber o que me digo, simplesmente porque o ouvi dizer inúmeras vezes; mas pensá-lo propriamente, — isto é, adquirir a evidência de que "dois e dois são quatro e não são nem três nem cinco" — Isso tenho de fazê-lo eu, eu só; ou, o que é o mesmo, eu, na minha solidão. E como isso acontece com as minhas decisões, vontades, com o meu sentir, temos que a vida humana, sensu stricto, por ser intransferível, acaba sendo essencialmente solidão, radical solidão.

Mas entenda-se bem tudo isso. Não quero de modo algum insinuar que eu seja a única coisa que existe. Em primeiro lugar, já se terá reparado em que, mesmo sendo "vida", em sentido próprio e originário, a de cada um, sendo sempre a minha, empreguei o menos possível esse possessivo como não empreguei quase o pessoal "eu". Se o fiz alguma vez foi meramente para facilitar-lhes uma primeira visão do que é essa estranha realidade radica — a vida humana. Preferi dizer o homem, o vivente ou "cada um". Em outra lição verão com clareza o porquê dessa reserva. Em definitivo, porém, e ao cabo de algumas voltas que daremos, trata-se, é claro, da vida, da minha e do eu. Esse homem, — esse eu, — é, ultimamente, em solidão radical; mas, — repito, — isso não quer dizer que somente ele é, que ele é a única realidade ou, pelo menos, a radical realidade. O que chamei assim não é somente eu, nem é o homem, mas a vida, a sua vida. Ora, isso inclui uma enormidade de coisas. O pensamento europeu já emigrou para fora do idealismo filosófico dominante desde 1640, em que Descartes o proclamou, — o idealismo filosófico para o qual não há outras realidades senão as ideias do meu eu, de um eu, do meu moi-même, do qual dizia Descartes-, moi qui ne suis qu'une chose qui pense. As coisas, o mundo, meu corpo mesmo, seriam somente ideias das coisas, imaginação de um mundo, fantasia do meu corpo. Só existiria a mente, e o mais — um sonho tenaz e exuberante, uma infinita fantasmagoria que a minha mente segrega. A vida seria assim a coisa mais cômoda que se pode imaginar. Viver seria existir eu dentro de mim mesmo, flutuando no oceano de minhas próprias ideias. A isso se chamou idealismo. Em nada tropeçaria eu. Não terra eu de ser no mundo, mas o mundo seria dentro de mim, como um filme sem fim que corresse dentro de mim. Nada me estorvaria. Seria como Deus, que flutua, único, em si mesmo, sem possível naufrágio, porque ele é, a um tempo, o nadador e o mar em que nada. Se houvesse dois Deuses, eles se enfrentariam. Esta concepção do real foi superada pela minha geração e, dentro dela, muito concreta e energicamente, por mim.

Não, a vida não é existir só a minha mente, existirem as minhas ideias: é totalmente o contrário. A partir de Descartes, o homem ocidental tinha ficado sem mundo. Mas viver significa ter de ser fora de mim, no absoluto fora que é a circunstância ou mundo: é ter de, querendo ou não, enfrentar-me e chocar-me, constantemente, incessantemente com quanto integra esse mundo: minerais, plantas, animais, os outros homens. Não há remédio. Tenho de atracar-me com isso tudo. Tenho velis nolis de ajustar-me, pior ou melhor, com tudo isso. Mas isso, — encontrar-me com tudo e necessitar ajustar-me com tudo, — isso me acontece ultimamente a mim só, e tenho de fazê-lo solitariamente, sem que no plano decisivo, — note-se que digo no plano decisivo, — ninguém me possa dar ajuda.

Isso quer dizer que já estamos muito longe de Descartes, de Kant, de seus sucessores românticos, — Schelling, Hegel, daquilo que Carlyle chamava "o luar transcendental". Nem é preciso dizer que estamos muito mais longe ainda de Aristóteles.

Estamos, pois, longe de Descartes, de Kant. Estamos mais longe ainda de Aristóteles e de Santo Tomás. Porventura é nosso dever e nosso destino, — não só o dos filósofos, mas o de todos, — distanciarmo-nos, distanciarmo-nos. . .? Não vou responder agora, nem sim, nem não. Nem sequer vou revelar de que, querendo ou não, havíamos de nos distanciar. Fica aí esse enorme ponto de interrogação, — com o qual pode cada um fazer o que lhe agrade, — usá-lo como um laço de gaúcho para captar o porvir ou simplesmente enforcar-se nele.

A solidão radical da vida humana, o ser do homem, não consiste, pois, em que não haja realmente nada mais do que ele. Ao contrário: há nada menos que o universo com todo o seu conteúdo. Há, portanto, infinitas coisas, mas, — aí está!, — em meio delas, o Homem, em sua realidade radical, está só, — só com elas e, como entre essas coisas estão os outros seres humanos, está só com eles. Se não existisse nada mais que um único ser, não se poderia dizer congruentemente que estaria só. A unicidade nada tem a ver com a solidão. Se meditássemos sobre a "saudade" portuguesa, — como é sabido, saudade é a forma galaico-lusitana de "solitudinem", de soledade, — falaríamos mais desta e veríamos que a solidão é sempre solidão de alguém, a saber, que é um ficar sozinho e um sentir falta. Assim é, a tal ponto, que a palavra com que o grego dizia meu e solitário, — Monos, — vem de moné, que significa ficar, — subentende-se: ficar sem, sem os outros. Quer seja porque se foram, quer seja porque morreram; em todo caso, porque nos deixaram, — nos deixaram... sozinhos. Ou seja porque os deixamos a eles, fugimos deles e vamos para o deserto ou para o retiro a fazer vida de moné. Daí, monakhós, monastérios e monge. E no latim solus. Meillet, cujo extremo rigor de foneticista e cuja falta de talento semântico tornam necessário que eu procure contrastar com ele minhas espontâneas averiguações etimológicas, suspeita que solus venha de sed-lus, isto é, do que fica sentado quando os demais se foram. Nossa Senhora da Soledade é a Virgem que fica sozinha de Jesus, pois o mataram, e o sermão da Semana Santa, que se chama o sermão da solidão, medita sobre a mais dolorida palavra de Cristo: Eli, Eli/lamma sabacthani — Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me? — "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste? Por que me deixaste só de ti?" é a expressão que mais profundamente declara a vontade de Deus de se fazer homem, — de aceitar o mais radicalmente humano, que é a sua radica) solidão. Ao lado disso, a lançada do centurião Longinos não tem tanta significação.

E este é o momento para recordar Leibniz. Não vou, é claro, empregar nem um instante para entrar em sua doutrina. Limito-me a fazer notar aos bons conhecedores de Leibniz que a melhor tradução da sua palavra mais importante, — Mônada, — não é unidade, tampouco unicidade. As manadas não têm janelas. Acham-se fechadas em si mesmas, — isto é idealismo. Mas, em seu último sentido, a concepção de Leibniz, da mônada, se expressaria da melhor maneira chamando às manadas "soledades". Também em Homero, um centurião dá uma lançada em Afrodite, faz manar o seu delicioso sangue de fêmea olímpica, e a faz correr gemendo ao pai Júpiter, como qualquer mocinha well-to-do. Não, não. Cristo foi homem, sobretudo, e, antes de tudo, porque Deus o deixou sozinho — sabacthani.

Conforme vamos tomando posse da vida e encarregando-nos dela, averiguamos que, quando chegamos a ela, os demais se tinham ido e que temos de viver o nosso radical viver. . . sozinhos, e que, somente em nossa solidão, somos nossa verdade.

Desse fundo de solidão radical que é, sem remédio, nossa vida, emergimos constantemente em uma ânsia, não menos radical, de companhia. Quereríamos achar aquele cuja vida se fundisse integramente, se interpenetrasse com a nossa. Para tanto, fazemos as mais várias tentativas. Uma é a amizade. Mas a suprema entre elas é a que chamamos de amor. O autêntico amor não é senão a tentativa de permutar duas solidões.

À solidão que somos pertencem, — e fazem parte essencial dela, — todas as coisas e seres do universo, que estão aí em nosso redor, formando nosso contorno, articulando nossa circunstância sem que jamais se fundam com o cada um que o homem é, — e que, ao contrário, são sempre o outro, o absolutamente outro, — um elemento estranho e sempre mais ou menos estorvante, negativo e hostil, no melhor caso: não-coincidente, que, por isso, advertimos como alheio e fora de nós, como o forasteiro, — porque nos oprime, comprime e reprime: o mundo.

Vemos, pois, diante de toda a filosofia idealista e solipsista, que nossa vida põe, com idêntico valor de realidade, estes dois termos: o alguém, o X, o Homem que vive, e o mundo, contorno ou circunstância em que tem de viver, queira ou não queira.

Nesse mundo, contorno ou circunstância é que precisamos de buscar uma realidade que, com todo rigor, diferenciando-se de todas as demais, possamos e devamos chamar "social".

O homem, ao achar-se vivendo, se acha tendo de ajustar-se a isso que chamamos contorno, circunstância ou mundo. Se esses três vocábulos vão diferenciando diante de nós o seu sentido, é coisa que agora não interessa. Neste momento, para nós, significam a mesma coisa; a saber, o elemento estranho ao homem, forâneo, o "fora de si", em que o homem tem de afanar-se para ser. Esse mundo é uma grande coisa, uma imensa coisa, de limites esbatidos, que está cheio até à borda de coisas menores, do que chamamos coisas e costumamos repartir em ampla e gorda classificação, dizendo que no mundo há minerais, vegetais, animais e homens. As diferentes ciências se ocupam do que são essas coisas, — por exemplo, de plantas e animais, a biologia. Mas a biologia, como qualquer outra ciência, é uma atividade determinada, de que alguns homens se ocupam, dentro já da sua vida, isto é: depois de já estarem vivendo. A biologia, — e qualquer outra ciência, — supõe portanto, que, antes de começar a sua operação, já tínhamos à vista, existiam para nós todas essas coisas. E isso que as coisas são, para nós, originariamente, primeiramente, em nossa vida de homem, antes de sermos físicos, mineralogistas, biólogos, etc, representa o que essas coisas são em sua realidade radical. O que, a seguir, as ciências nos digam sobre elas, será tudo tão plausível, tão convincente, tão exato quanto se queira, mas é evidente que o retiraram por complicados métodos intelectuais, daquilo que, inicialmente, primordialmente e sem mais, as coisas eram para nós, em nosso viver. A Terra será um planeta de certo sistema solar pertencente a certa galáxia ou nebulosa, e estará feita de átomos, cada um dos quais contém, por sua vez, uma multiplicidade de coisas, de quase-coisas ou enigmas que se chamam elétrons,. prótons, mésons, neutrons, etc. Mas nenhuma dessas sabedorias existiria, se a Terra não pre-existisse a elas como componente da nossa vida, como algo com que temos de nos ajustar e, portanto, com algo que nos importa, porque nos oferece certas dificuldades e nos proporciona certas facilidades. Isso quer dizer que, nesse plano prévio e radical de que as ciências partem e que dão por suposto, a Terra não é nada disso que a física, que a astronomia nos diz, mas é aquilo que me sustem firmemente, diversamente do mar, em que me afundo (a palavra terra — terra — vem de tersa, segundo Bréal, "a seca"), aquilo que talvez eu tenha de subir penosamente, porque é uma ladeira, aquilo que desço comodamente, porque é uma descida, aquilo que me distancia e separa lamentavelmente da mulher que amo, ou que me obriga a viver perto de alguém que detesto, aquilo que faz com que algumas coisas estejam perto de mim e outras longe, que umas estejam aqui e outras aí e outras ali, etc, etc. Estes e muitos outros atributos parecidos são a autêntica realidade da Terra, tal e qual •ela me aparece no âmbito radical que é a minha vida. Notem que todos esses atributos —, suster-me, ter de subir ou descer a ladeira, ter de cansar-me em ir por ela até onde está aquilo de que necessito, separar-me dos que amo, etc. — se referem todos a mim, de sorte que a Terra, em sua primordial aparição, consiste em puras referências de utilidade para mim. O mesmo encontrarão, se tomarem qualquer outro exemplo: a árvore, o animal, o mar ou o rio. Se fizermos abstração do que são em referência a nós, quero dizer, de seu ser para uma utilidade nossa, como meios, instrumentos ou, vice-versa, estorvos e dificuldades para nossos fins, ficam sem ser nada. Ou, expresso em outra forma-, tudo o que compõe, enche e integra o mundo em que, ao nascer, o homem se encontra, não tem por si condição independente, não tem um ser próprio, não é nada em si, — mas somente um algo para ou um algo contra os nossos fins. Por isso, não devíamos tê-lo chamado de "coisas", diante do sentido que esta palavra tem hoje para nós. Uma "coisa" significa algo que tem o seu próprio ser, à parte de mim, à parte do que seja para o homem. E se isso acontece com cada coisa da circunstância ou mundo, quer dizer que o mundo, em sua realidade radical, é um conjunto de "algos" com os quais o homem, — eu, — pode ou tem de fazer isto ou aquilo, — que é um conjunto de meios e estorvos, de facilidades e dificuldades com que, para viver efetivamente, me encontro. As coisas não são originariamente "coisas", mas algo que procuro aproveitar ou evitar, a fim de viver e viver o melhor possível, — portanto, aquilo com que consigo ou não fazer o que desejo: são assuntos em que ando constantemente. E, como fazer e ocupar-se, ter assuntos se diz em grego práctica, prâxis, as coisas são radicalmente prágmata e minha relação com elas, pragmática. Não há, por má ventura, vocábulo em nossa língua ou, pelo menos, eu não o encontrei, que anuncie com suficiente adequação o que o vocábulo prâgma, sem mais nada, significa. Só podemos dizer que uma coisa, enquanto prâgma, não é algo que exista por si e sem ter a ver comigo. No mundo ou circunstância de cada um de nós, não há nada que não tenha a ver com cada qual, e este tem, por sua vez, a ver com tudo quanto parte dessa circunstância ou mundo. Este está composto exclusivamente de referências a mim e eu estou consignado a tudo quanto há nele, dependendo disso para o meu bem ou para o meu mal; tudo me é favorável ou adverso, carícia ou atrito, afago ou lesão, serviço ou dano. Uma coisa é, pois, enquanto prâgma, algo que manipulo com determinada finalidade, que maneio ou evito, com que tenho de contar ou que tenho de descontar, é um instrumento ou impedimento para. . . um trabalho, um utensílio, um traste, uma deficiência, uma falha, uma trava; em suma, é um assunto em que andar, algo que, mais ou menos, me importa, que me falta, que me sobra, portanto, uma importância. Espero agora, depois de haver acumulado todas essas expressões, que comece a tornar-se clara a diferença que existe, se se faz chocar na mente a ideia de um mundo de coisas com a ideia de um mundo de assuntos ou importâncias. Num mundo de coisas, não temos nenhuma intervenção: ele e tudo nele é por si. Diversamente, num mundo de assuntos ou importâncias, tudo consiste exclusivamente em sua referência a nós, tudo intervém em nós, isto é, tudo nos importa e somente é, na medida e no modo em que nos importa e nos afeta.

Tal é a verdade radical sobre o que é o mundo, porque ela expressa a sua consistência ou aquilo em que consiste originariamente, como elemento em que temos de viver a nossa vida. Tudo mais que as ciências nos digam, sobre esse mundo, é e era, no melhor caso, uma verdade secundária, derivada, hipotética e problemática, — pela simples razão, repito, de que começamos a fazer ciência depois de já estar vivendo no mundo e, portanto, sendo já o mundo isso que é. A ciência é somente uma das inumeráveis práticas, ações, operações que o homem faz em sua vida.

O homem faz ciência como faz paciência, como faz a sua fazenda, — por isso se chama assim, — faz versos, faz política, negócios, viagens, faz o amor, faz que faz, espera, isto é, faz. . . tempo e, muito mais que tudo, o homem faz ilusões para si mesmo.

Todos esses dizeres são expressão da língua espanhola mais vulgar, familiar, coloquial. Não obstante, vemos hoje que são termos técnicos numa teoria da vida humana. Para vergonha dos filósofos, é mister declarar que eles não tinham visto nunca o fenômeno radical que é a nossa vida. Sempre o deixavam para trás, e foram os poetas e romancistas, foi sobretudo o homem qualquer que reparou nela, em seus modos e situações. Por isso, aquela série de palavras representa uma série de títulos em que se nomeiam grandes temas filosóficos sobre os quais seria necessário falar muito. Pense-se na profunda questão que anuncia a expressão "fazer tempo", — portanto, nada menos que esperar, a expectação e a esperança. Está por fazer-se uma fenomenologia da esperança. Que é no homem a esperança? Pode o homem viver sem ela?. Faz alguns anos, Paul Morand me enviou um exemplar de sua biografia de Maupassant com uma dedicatória que dizia: "Envio-lhe esta vida de um homem qui n'espérait pas..." Morand tinha razão? é possível, — literal e formalmente possível, — um viver humano que não seja um esperar? Não é a expectativa a função primária mais essencial da vida? e não é a esperança o seu órgão mais visceral? Como se vê, o tema é enorme.

E não é de menor interesse esse outro modo de vida em que o homem "faz que faz"? Que é esse estranho e inautêntico fazer, ao qual, às vezes, o homem se dedica precisamente para não fazer de verdade, inclusive o que está fazendo? — o escritor, que não é escritor, mas faz de escritor, a mulher que mal é feminina, mas faz de mulher, faz que sorri, faz que desenha, faz que deseja, faz que ama, incapaz de fazer propriamente qualquer dessas coisas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário