quarta-feira, 16 de maio de 2018

Lagartos

" O homem vestido de preto, óculos escuros, joga paciência com o celular, faz o sinal da cruz bebendo um café que parece frio.
Do bolso de seu paletó sai um pequeno lagarto de óculos escuros como os dele.
O lagarto anda pela perna, sobe pelos braços, avança apoiando as patas gelatinosas nas orelhas avermelhadas do homem, que permanece quieto. Chegando ao topo da cabeça, o lagarto abre as asas e voa.
A criança que assiste a cena segura um robô de plástico na mão.
Imóvel, chama a mãe que, fazendo compras, não se importa com o que ela diz.
Outro lagarto sai do bolso e faz o mesmo trajeto. O homem continua imóvel, assim como a criança que o contempla.
Sabemos que o lagarto é apenas uma emoção e que, não cabendo em si, um dia desistirá de existir. Então, todos serão como o robô que o menino traz a mão e que, neste instante, ele joga ao chão sem ver nele mais nenhum interesse.
Pede à sua mãe um lagarto, mas ela não ouve o que ele diz."

Márcia Tiburi

http://www.vidabreve.com/uncategorized/emocao-e-outras-microcronicas

domingo, 13 de maio de 2018

O Que se Pode Prometer



Pode-se prometer acções, mas não sentimentos, pois estes são involuntários. Quem promete a alguém amá-lo sempre, ou odiá-lo sempre, ou ser-lhe sempre fiel, promete algo que não está em seu poder; mas o que pode perfeitamente prometer são aquelas acções que, na verdade, são geralmente as consequências do amor, do ódio, da fidelidade, mas que também podem emanar de outras razões, pois a uma acção conduzem diversos caminhos e motivos. A promessa de amar sempre alguém significa, portanto: enquanto eu te amar, manifestar-te-ei as acções do amor; se eu já não te amar, pois, não obstante, receberás para sempre de mim as mesmas acções, ainda que por outros motivos. De modo que a aparência de que o amor estaria inalterado e continuaria sendo o mesmo permanece na cabeça das outras pessoas. Promete-se, por conseguinte, a persistência da aparência do amor, quando, sem ilusão, se promete a alguém amor perpétuo. 

Friedrich Nietzsche, in 'Humano, Demasiado Humano' 


A realidade

A realidade é tão infinitamente estruturada, de tal modo escapa a mais segura dissociação de pensamentos teóricos, que não se coaduna a nenhuma possibilidade de sistema nem de métodos. A realidade tende, como variação, a se dicotomizar de forma perpétua. Num interstício resta sempre um escaninho da vida, não a efetiva; mas a íntima, a impenetrável.

Dostoiévski. Recordações da casa dos mortos.

domingo, 6 de maio de 2018

A tirania

A tirania é um hábito, tem a propriedade de se desenvolver, e se dilata a tal ponto que acaba virando doença. Assevero que o melhor dos homens pode, com o hábito, acabar se transformando num animal feroz. Sangue e poder estonteiam, em geral desenvolvem a brutalidade e a perversão; o espírito e o sentimento se tornam pasto de prazeres esdrúxulos. O homem e o cidadão deixam de coexistir, surgindo então apenas o tirano. A volta ao estado de homem e cidadão se torna impossível, não havendo mais consciência nem arrependimento, e sim voracidade e delícia. Daí o perigo da possibilidade dum idêntico despotismo contagiar a sociedade; esse poder é infinito. Uma sociedade que se afaz a tais conjunturas já está corroída até o âmago.

Dostoiévski. Recordações da casa dos mortos.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Sou um Caso Perdido

Por fim um crítico sagaz revelou
(eu já sabia que iam descobrir)
que nos meus contos sou parcial
e tangencialmente apela
que assuma a neutralidade
como qualquer intelectual que se respeite


creio que tem razão
sou parcial
disto não tem dúvida
mais ainda eu diria que um parcial irrecuperável
caso perdido enfim
já que por mais esforço que faça
nunca poderei chegar a ser neutro
em vários países deste continente
especialistas destacados
fizeram o possível e o impossível
para curar-me da parcialidade
por exemplo na biblioteca nacional do meu país
ordenaram o expurgo parcial
dos meus livros parciais
na Argentina me deram quarenta e oito horas
(e senão me matavam) para que me fosse
com minha parcialidade nos ombros
por último no peru isolaram minha parcialidade
e a mim me deportaram
de ter sido neutro
não teria necessitado
essas terapias intensivas
porém que se vai fazer
sou parcial
incuravelmente parcial
e mesmo que possa soar um pouco estranho
totalmente
parcial


já sei
isso significa que não poderia aspirar
a tantíssimas honras e reputações
e preces e dignidades
que o mundo reserva para os intelectuais
que se respeitam
quer dizer para os neutros
com um agravante
como cada vez existem menos neutros
as distinções se dividem
entre pouquíssimos


além disso e a partir
das minhas confessas limitações
devo reconhecer que a esses poucos neutros
tenho certa admiração
ou melhor lhes reservo certo assombro
já que na realidade é necessário uma têmpera de aço
para se manter neutro diante de episódios como
girón
tlatelolco
trelew
pando
la moneda


é claro que a gente
e talvez seja isto o que o crítico queria me dizer
poderia ser parcial na vida privada
e neutro nas belas-letras
digamos indignar-se contra Pinochet
durante a insônia
e escrever contos diurnos
sobre a atlântida


não é má ideia
e lógico
tem a vantagem
de que por um lado
a gente tem conflitos de consciência
e isso sempre representa
um bom nutrimento para a arte
e por outro não deixa flancos para que o fustigue
a imprensa burguesa e/ou o neutro


não é má ideia
mas
já me vejo descobrindo ou imaginando
no continente submerso
a existência de oprimidos e opressores
parciais e neutros
torturados e verdugos
ou seja a mesma confusão
cuba sim ianques não
dos continentes não submergidos


de modo que
como parece que não tenho remédio
e estou definitivamente perdido
para a frutífera neutralidade
o mais provável é que continue escrevendo
contos não neutros
e poemas e ensaios e canções e novelas não neutras
mas aviso que será assim
mesmo que não tratem de torturas e prisões
ou outros tópicos que ao que parece
tornam-se insuportáveis para os neutros


será assim mesmo que tratem de borboletas e nuvens
e duendes e peixinhos

Mario Benedetti

Por que Cantamos

Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

você perguntará por que cantamos

se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha

você perguntará por que cantamos

se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram as árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro

você perguntará por que cantamos

cantamos porque o rio esta soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino

cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos

cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota

cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta

cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.


Mario Benedetti. Antologia Poética