Paulo Brabo
Nesse momento entra
em cena esse sujeito J. Harold
Ellens, um psicólogo norte-americano que em seus livros e artigos defende essencialmente uma
ideia: a de que a notícia evangelical da graça incondicional e do perdão
universal dos pecados não representa apenas a única chance para a salvação
espiritual da humanidade, mas a única chance para a salvação dos nossos distúrbios
mentais. E que, de fato, não existe diferença entre uma coisa e outra.
Desde que a psicologia ganhou alguma reputação como
disciplina e como prática seus méritos, seu vocabulário e suas ênfases tem sido
apropriados (ou, alternativamente, questionados) por muitos cristãos a fim de
legitimar suas próprias versões da ortodoxia. Ellens, no entanto, está a milhas
de distância da banalidade de obras como Jesus, o maior psicólogo que já existiu;
do ponto de vista privilegiado ao qual nos erguem as suas reflexões
descortina-se um horizonte desconcertante.
Ellens talvez seja o mais articulado proponente de um
movimento de interpretação que até onde sei ainda não tem nome, mas que podemos
chamar interinamente de teologia da graça radical (a partir de um dos mais celebrados
volumes de Ellens, Radical
Grace).
Não há na verdade grande coerência de pensamento
entre os proponentes dessa visão, e nem poderia haver. O que pode ser dito a
respeito desses caras (e já fui visto bebendo e comendo entre eles) é que
intuem antes de tudo que Deus é um sujeito muito mais gentil e desencanado do
que sugerem as ortodoxias usuais. Deus não está muito interessado em saber se
você fica admirando as pernas de gente do sexo errado e não controla onde você
passa suas manhãs e noites de domingo; Deus não vai ficar ruborizado se você
engravidar a sua noiva e não vai mandar ninguém para o inferno por acreditar na
evolução, por fumar um baseado ou por beijar uma estátua. Esse Deus não tem o
rabo preso com ninguém, não aceita subornos e a ninguém rejeita; não tem
ilusões, por isso não se rebaixa a aplicar critérios. A característica mais
predominante do seu caráter – na verdade a única característica dele a que
temos acesso e a única necessária – é seu inflexível cavalheirismo. O que ele
quer é que você não machuque ninguém e não se machuque; se for para você se
machucar que seja em favor dos outros, mas de modo inteiramente consciente,
informado e sem ilusões.
É um Deus que tem muito de hippie; suas únicas
diretrizes de conduta são de fato paz e amor: ou, como se diz na linguagem do
Novo Testamento, amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo
(que são, evidentemente, operações idênticas e equivalentes).
Porém esse é um Deus não se ilude, e sabe que o amor
precisa de uma medida, uma diretriz que o extraia do domínio dos discursos para
o terreno da prática. Esse parâmetro de grandeza para o amor é a graça, a
implacável inclinação divina em aceitar. E essa medida de grandeza ficou
estabelecida em sua inteireza na pessoa de Jesus.
O que J. Harold Ellens vem fazendo é articular com todas
as letras o que já havia sido sugerido, por exemplo, por Paul Tournier em Culpa e graça.
Para Ellens, a graça – entendida como a inclinação inflexível e radical, por
parte de Deus, em aceitar o ser humano como ele é – não é apenas um aspecto da
salvação ou um a porta de entrada para ela. A graça é a própria salvação.
Em resumo, para Ellens a graça ou é radical (isto é,
absolutamente resoluta e invariável) ou é na verdade graça nenhuma. Ela só tem
poder curativo se for de fato radical, incondicional e universal: privar a
graça de seu caráter incondicional seria privá-la de todo seu poder. Dito de
outra forma, a graça só é realmente capaz de curar se não fizer diferença para
Deus se você vai ser curado ou não.
Essa fragilidade é o único mecanismo da
coisa toda, e dela depende toda a sua eficácia.
O toque de uma graça radical – aquilo que Ellens chama
de “uma perspectiva graciosa e incondicional de apreço positivo” – é a única
solução concebível para nossos entraves, traumas, neuroses e inadequações. Essa
graça implacável é o único bálsamo com o potencial de nos aplacar em regime
definitivo as doenças do espírito, sendo portanto a única chance que temos de
encontrar o bem-estar e de o vermos aplicado neste mundo.
Esse é o poder subversivo do perdão universal dos
pecados, apregoado por João Batista e endossado por Jesus. Somente a boa nova
(somente essa boa nova) é capaz de agir eficazmente na anulação do poder
diabólico da culpa, raiz daquela “ansiedade destrutiva que produz em nós toda
enfermidade e todo o pecado”. Quem torna-se livre da culpa torna-se livre, e
ponto final.
Isso porque “uma perspectiva graciosa e incondicional de
apreço positivo” implica numa aceitação radical ao ponto da mais atordoante
descaracterização. A singularidade do Deus de Jesus está em que ele não vai
amar você menos se você o rejeitar; não vai amá-lo menos se você o matar. Não
vai deixar de aceitá-lo em caso algum. O apreço positivo que ele nutre pelo ser
humano é a expressão mais destilada e invariável da pessoa e do caráter dele; o
céu e o inferno não teriam como alterá-la um milímetro em qualquer direção,
muito menos algo que você puder fazer. “Nada poderá nos separar do amor de
Deus”, e nada é muita coisa.
Em termos teológicos, essa visão de um Deus de amor
invariável cuja matriz e coroa é Jesus já foi articulada (e questionada) muitas
vezes ao longo dos séculos. A tarefa que Ellens tomou sobre si foi a de
estabelecer além da dúvida o caráter e o valor terapêutico dessa graça ampla, invariável e
arbitrária. Porque se Deus nos ama independentemente da nossa cura, só então a
cura torna-se possível – mas, pasme-se, ela então torna-se possível. Se Deus
pode nos aceitar como somos, só então nos tornamos livres para mudar. Isso não
quer dizer que Deus exige que mudemos; pelo contrário, o cerne e o único poder
da coisa toda está em que a aceitação e o apreço divinos pelo ser humano (e o
nosso uns pelos outros) devem resistir galhardamente à rejeição, ao desprezo,
ao esquecimento, à distração.
Se for assim, e Ellens
não demora em apontá-lo1,
Dietrich Bonhoeffer estava equivocado quando condenou e chamou de “graça
barata” a graça que não produz mudança de vida na pessoa tocada por ela.
Chamá-la de qualquer outra coisa que não simplesmente graça, mesmo quando não
há mudança de vida, seria invocar o antigo fantasma da culpa e anular qualquer
poder terapêutico que a graça poderia ter. Porque, e isso Ellens procura sempre
novas formas de explicar, o único poder da graça está em que sua eficácia não
depende da sua eficácia. A graça se basta.
A imagem resultante é a de um Deus ao mesmo tempo
muito arrebatado e muito na dele. Por um lado, trata-se de um cara apaixonado
para além da breguice e da cegueira, uma divindade que decide que nada no
passado ou no futuro será capaz de alterar a sua devastadora inclinação em
abraçar e aceitar o ser humano. Por outro, trata-se de um Deus absolutamente
maduro em termos psicológicos, seu caráter livre por completo dos traumas,
ansiedades, histerias, psicoses e neuroses que caracterizam a postura e a
conduta dos deuses de sempre. Sua auto-estima e seu apreço por tudo que é
humano, bem como seu equilíbrio emocional, em nada dependem da sua capacidade
de agradar, da realização de seus projetos e expectativas com relação aos que
ama ou de sua própria capacidade em salvar o mundo. O Deus de Jesus é um amante
desiludido sem jamais chegar a ser amargo, um amante resoluto sem jamais chegar
a ser invasivo.
É um Deus que não se rebaixa ao proselitismo, isto
é, um Deus que não quer converter ninguém para além da sacada de que nenhuma
conversão é necessária (e que portanto toda mudança é possível). É um Deus sem
outro critério que não o amor, que abraça o filho pródigo e espera o mesmo do
filho comportado; que dá a mesma recompensa ao cara que suou o dia todo e ao
folgado que só apareceu para trabalhar na hora de ir embora. Um Deus que não
tem ninguém na sua lista.
Naturalmente, tudo que sabemos a respeito desse Deus
cavalheiresco só pode ser intuído a partir da postura e das indicações do Jesus
dos evangelhos. Há traços muito claros desse Deus no restante do Novo
Testamento e indícios desconcertantes dele no Antigo, mas seríamos por completo
incapazes de rastreá-los não fossem a luz e a lucidez providas diretamente pelo
próprio Filho do Homem, o rabi galileu de pés empoeirados, o louco crucificado.
Como observou certa vez um perplexo Brennan Manning,
Jesus é o único sujeito na conturbada história das religiões a ousar chamar
Deus de Pai. E, não custa acrescentar: na conturbada história das relações
freudianas, Jesus é o único sujeito a prover para seu pai e para sua relação
com ele um caráter maduro e psicologicamente equilibrado.
Ellens é aparentemente culpado de reconstruir o caráter
de Deus não a partir do dogmatismo das ortodoxias, mas a partir da própria
pessoa de Jesus. Seu pecado é acreditar que Jesus pode ser na verdade maior –
um cara ao mesmo tempo mais ambicioso e muito menos – do que tudo que a igreja
chegou jamais a construir ao redor do seu nome.
Porque se a postura de Deus em relação a nós resume-se
a essa atordoante “perspectiva graciosa e incondicional de apreço positivo”, se
a graça é de fato tão radical quanto sugerido por Jesus, existe de fato uma
esperança para as nossas mais entranhadas patologias. Em meio a nossas
mesquinhezas e inadequações, e antes de darmos qualquer passo para longe delas,
levanta-se a possibilidade de sermos encontrados pela cura que não buscávamos,
a cura com a qual havíamos deixado de sonhar.
Afinal de contas, é esse o sentido primário da
palavra grega do Novo Testamento que aprendemos a traduzir como salvação: cura. Ser salvo é ter a
saúde restaurada. É por isso que nossa salvação pode representar a saúde do
mundo: isso acontece quando decidimos estender ao próximo (graciosamente,
porque não haveria outro motivo e outra maneira) a perspectiva graciosa e
incondicional de apreço positivo que entrevemos e tocou-nos no Deus singular de
Jesus.
Assim, de forma desguardada e gentil, abrem-se os
portões do palácio e os loucos, os mendigos e os criminosos recebem permissão
para brincar no jardim ao lado dos filhos do príncipe. Ou talvez seria mais
correto dizer que são os filhos do príncipe que recebem permissão para tocar a
beleza sem intermediários da vida real. Na verdade não faz diferença, e essa é
a moral da história. A risada de todos torna-se a mesma debaixo do mesmo sol, e
logo todos cansam das simetrias do jardim e escolhem percorrer livremente o
mundo. Essa inesperada liberdade adquirida, essa descomunal integridade
recuperada, já foi chamada de bem-aventurança; Ellens gosta de chamá-la
simplesmente de bem-estar.
NOTAS
«A ideia de Bonhoeffer de que a
graça que não produz uma vida radicalmente diferente é “graça barata” é um
traição da verdade bíblica sobre a graça. É claro, todos gostariam que a graça
de Deus produzisse em cada vida humana o fruto de uma vida integral e santa,
mas o caso é que, mesmo quando isso não acontece, a graça permanece
incondicional, perdoando e aceitando por completo essa pessoa falha. Bonhoeffer
substitui a graça por um antiquado e incorreto moralismo medieval e por uma
religião mecanicista. Sua ideia de “graça barata” revela que ele anseia
novamente por uma espécie de legalismo e de condicionalismo que nos moldem. A
graça, porém, é livre, radical, incondicional e universal, ou então não é graça
e não tem nada de boa nova – visto que, se não for assim, não consegue atingir
o centro da patologia à qual de outro modo estamos algemados para sempre, sem
esperança. Não consegue libertar-nos da ansiedade destrutiva que produz toda
nossa enfermidade e pecado.
[…] Bonhoeffer, que compreendia tão bem a graça de tantas maneiras, rendeu-se
inadvertidamente à noção de uma graça condicional em suas observações sobre
graça barata. Naquele momento de descuido ele cobiça novamente pelo legalismo,
obscurecendo o fato de que a graça é gratuita; que pode ser pressuposta
eternamente; que é radical, incondicional e universal. Graça condicional é
graça nenhuma.» (J. H. Ellens, Radical Grace).