domingo, 28 de fevereiro de 2016

A mentira imanente


Viver significa: crer e esperar, mentir e mentir-se. Por isso a imagem mais verídica que já se criou do homem continua sendo a do Cavaleiro da Triste Figura, esse cavaleiro que se encontra mesmo no sábio mais realizado. O episódio penoso em torno da cruz ou esse outro mais majestoso coroado pelo Nirvana participam da mesma irrealidade, ainda que se lhes tenha reconhecido uma qualidade simbólica que foi recusada depois às aventuras do pobre fidalgo. Nem todos os homens podem ter êxito: a fecundidade de suas mentiras varia... Tal engano triunfa: disso resulta uma religião, uma doutrina ou um mito - e uma multidão de fiéis; outro fracassa: não passa de uma divagação, de uma teoria ou uma ficção. Só as coisas inertes não acrescentam nada ao que são: uma pedra não mente: não interessa a ninguém - enquanto que a vida inventa sem cessar: a vida é o romance da matéria.

Pó apaixonado por fantasmas, tal é o homem: sua imagem absoluta, idealmente semelhante, encarnar-se-ia em um Dom Quixote visto por Ésquilo...

(Se na hierarquia das mentiras a vida ocupa o primeiro lugar, o amor lhe sucede imediatamente, mentira na mentira. Expressão de nossa posição híbrida, cerca-se de um aparato de beatitudes e de tormentos graças ao qual encontramos em outro um substituto de nós mesmos. Por qual embuste dois olhos nos apartam de nossa solidão? Há fracasso mais humilhante para o espírito? O amor adormece o conhecimento; o conhecimento desperto mata o amor. A irrealidade não pode triunfar indefinidamente, nem mesmo disfarçada com a aparência da mais estimulante mentira. E, de resto, quem teria uma ilusão tão firme para encontrar no outro o que busca em vão em si mesmo? E, no entanto, esse é o fundamento desta anomalia corrente e sobrenatural: resolver a dois - ou, antes, suspender - todos os enigmas: graças a uma impostura, esquecer esta ficção em que está mergulhada a vida: com uma dupla carícia preencher a vacuidade geral: e - paródia do êxtase - afogar-se, finalmente, no suor de um cúmplice qualquer...)

Emil Cioran, In Breviario da decomposição

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Os domingos da vida...


Se as tardes de domingo fossem prolongadas durante meses, o que seria da humanidade, emancipada do suor, livre do peso da primeira maldição? A experiência valeria a pena. É mais do que provável que o crime se tornasse a única diversão, que a devassidão parecesse candura, o uivo melodia e o escárnio ternura. A sensação da imensidade do tempo faria de cada segundo um intolerável suplício, um pelotão de execução capital. Nos corações mais imbuídos de poesia se instalariam um canibalismo estragado e uma tristeza de hiena; os patíbulos e os carrascos extinguiriam-se de langor; as igrejas e os bordéis explodiriam de suspiros. O universo transformado em tarde de domingo... é a definição do tédio - e o fim do universo... Retire a maldição suspensa sobre a História e esta desaparece imediatamente, assim como a existência, na vacância absoluta, revela sua ficção. O trabalho construído do nada forja e consolida os mitos; embriaguez elementar, excita e cultiva a crença na "realidade"; mas a contemplação da pura existência, contemplação independente de gestos e de objetos, só assimila o que não é...

Os desocupados captam mais coisas e são mais profundos que os atarefados: nenhuma empresa limita seu horizonte; nascidos em um eterno domingo, olham e se olham olhar. A preguiça é um ceticismo fisiológico, a dúvida da carne. Em um mundo tomado pela ociosidade, seriam os únicos a não se tornar assassinos. Mas não fazem parte da humanidade e, como o suor não é o seu forte, vivem sem sofrer as conseqüências da Vida e do Pecado. Não fazendo o bem nem o mal, desdenham - espectadores da epilepsia humana - as semanas do tempo, os esforços que asfixiam a consciência. O que deveriam temer de uma prolongação ilimitada de certas tardes, senão o pesar de haver sustentado evidências grosseiramente elementares? Nesse caso, a exasperação no verdadeiro poderia induzi-los a imitar os outros e a comprazer-se na tentação aviltante das tarefas. Tal é o perigo que ameaça a preguiça - milagrosa sobrevivência do paraíso.

(A única função do amor é nos ajudar a suportar as tardes dominicais, cruéis e incomensuráveis, que nos ferem para o resto da semana - e para a eternidade.

Sem a sedução do espasmo ancestral, precisaríamos de mil olhos para prantos ocultos ou, senão, unhas para roer, unhas quilométricas... Como matar de outra maneira este tempo que já não flui? Nestes domingos intermináveis, a dor de ser manifesta-se plenamente. Às vezes conseguimos nos esquecer em alguma coisa; mas como nos esquecermos no próprio mundo? Esta impossibilidade é a definição da dor. Aquele que é atingido por ela não se curará nunca, mesmo que o universo mudasse completamente. Só seu coração deveria mudar, mas é imutável; também para ele, existir só tem um sentido: mergulhar no sofrimento - até que o exercício de uma cotidiana nirvanização eleve-o à percepção da irrealidade...)

Emil Cioran, Breviário de Decomposição