domingo, 29 de março de 2015

O fazer-se

Entre Religião e Ciência Não Existe Parentesco


(...) Na realidade, entre a religião e a verdadeira ciência não existe parentesco, nem amizade ou inimizade: elas habitam planetas diversos. Toda filosofia que deixa brilhar, na escuridão de suas últimas perspectivas, uma cauda de cometa religiosa, torna suspeito aquilo que apresenta como ciência: tudo é, presumivelmente, também religião, ainda que sob os enfeites da ciência.

— Friedrich Wilhelm Nietzsche, in Humano, Demasiado Humano - trecho do aforismo 110

Origem do Culto Religioso


Se remontarmos aos tempos em que a vida religiosa florescia com toda a força, acharemos uma convicção fundamental que já não partilhamos, e devido à qual vemos fechadas definitivamente para nós as portas da vida religiosa: tal convicção diz respeito à natureza e à relação com ela. Naqueles tempos nada se sabia sobre as leis da natureza; seja na terra, seja no céu, nada tinha que suceder; uma estação, o sol, a chuva podiam vir ou faltar. Não havia qualquer noção de causalidade natural. Quando se remava, não era o remo que movia o barco; remar era apenas uma cerimônia mágica, pela qual se forçava um demônio a mover o barco. Todas as enfermidades, a própria morte eram resultado de influências mágicas. O adoecer e o morrer não sobrevinham naturalmente; não existia a ideia de "ocorrência natural" — que surgiu apenas com os antigos gregos, ou seja, numa fase bem tardia da humanidade, na concepção da Moira que reina acima dos deuses. Quando alguém atirava com o arco, havia sempre uma mão e uma força irracionais; se as fontes secavam de repente, pensava-se primeiro em demônios subterrâneos e suas maldades; se um homem caía, era certamente o efeito invisível da flecha de um deus. Na Índia (segundo Lubbock) o carpinteiro costuma oferecer sacrifícios a seu martelo, a sua machadinha e às ferramentas; o brâmane trata do mesmo modo o lápis com que escreve, o soldado as armas que usa em campanha, o pedreiro sua trolha, o lavrador seu arado. Na imaginação dos homens religiosos, toda a natureza é uma soma de atos de seres conscientes e querentes, um enorme complexo de arbitrariedades. Em relação a tudo o que nos é exterior não é permitida a conclusão de que algo será deste ou daquele modo, de que deverá acontecer dessa ou daquela maneira; o que existe de aproximadamente seguro, calculável, somos nós: o homem é a regra, a natureza, a ausência de regras — este princípio contém a convicção fundamental que domina as grosseiras culturas primitivas, criadoras de religião. Nós, homens modernos, sentimos precisamente o inverso: quanto mais interiormente rico o homem se sente hoje, quanto mais polifônica a sua subjetividade, tanto mais poderosamente age sobre ele o equilíbrio da natureza; juntamente com Goethe, todos nós reconhecemos na natureza o grande meio de tranquilização da alma moderna, ouvimos a batida do pêndulo desse grande relógio com nostalgia de sossego, de recolhimento e silêncio, como se pudéssemos absorver esse equilíbrio e somente por meio dele chegar à fruição de nós mesmos.

Antigamente era o inverso: se recordamos as rudes condições primitivas dos povos ou vemos de perto os selvagens atuais, achamo-los determinados da maneira mais rigorosa pela lei, pela tradição: o indivíduo está quase que automaticamente ligado a ela e se move com a uniformidade de um pêndulo. Para ele a natureza — a incompreendida, terrível, misteriosa natureza — deve parecer o reino da liberdade, do arbítrio, do poder superior, como que um estágio sobre-humano da existência, Deus mesmo. Mas então cada indivíduo, em tais épocas e condições, sente como sua vida, sua felicidade, a de sua família, a do Estado, o sucesso de todos os empreendimentos, dependem dessas arbitrariedades da natureza: alguns fenômenos naturais devem sobrevir no tempo certo, e outros deixar de ocorrer no tempo certo. Como ter influência sobre essas temíveis incógnitas, como subjugar o reino da liberdade? Eis o que ele se pergunta, eis o que busca ansiosamente: não há como tornar essas potências regulares mediante uma lei ou tradição, assim como você próprio é regular? — As reflexões daqueles que acreditam em magia e milagres levam a impor uma lei à natureza —: e, em poucas palavras, o culto religioso é produto dessas reflexões. O problema que esses homens se colocam é intimamente aparentado ao seguinte: como pode a tribo mais fraca ditar leis para a mais forte, decidir a respeito dela, dirigir suas ações (na relação com a mais fraca)? Recordemos primeiro a espécie mais inócua de coação, aquela que exercitamos ao conquistar a afeição de alguém. Logo, por meio de súplicas e orações, por meio da submissão, do compromisso de tributos e presentes regulares, de exaltações lisonjeiras, é possível também exercer uma coação sobre os poderes da natureza, na medida em que os tornamos afeiçoados a nós: o amor vincula e é vinculado. Em seguida podemos fechar acordos em que nos obrigamos mutuamente a determinada conduta, estabelecemos penhores e trocamos juramentos. Muito mais importante, porém, é uma espécie de coação mais violenta, mediante a magia e a feitiçaria. Assim como o homem, com a ajuda de um feiticeiro, pode prejudicar um inimigo mais forte e mantê-lo amedrontado, assim como o feitiço do amor age à distância, assim também o homem fraco acredita poder guiar até mesmo os espíritos poderosos da natureza. O meio principal de toda magia é termos em nosso poder algo que seja próprio de alguém: cabelos, unhas, um pouco da comida de sua mesa e mesmo sua imagem, seu nome. Com tal aparato se pode então praticar a magia, pois o pressuposto fundamental é de que a todo ser espiritual pertence algum elemento corporal; com o auxílio deste se pode vincular o espírito, prejudicá-lo, destruí-lo; o elemento corporal fornece a alça com que podemos apreender o espiritual. Do mesmo modo que um homem influencia outro homem, também influencia qualquer espírito da natureza; pois este também tem seu elemento corporal, pelo qual pode ser apreendido. A árvore e, comparado a ela, o broto do qual surgiu — essa enigmática coexistência parece provar que nas duas formas se corporiflcou um único espírito, ora pequeno, ora grande. Uma pedra que rola subitamente é o corpo em que age um espírito; se numa charneca solitária se encontra uma rocha, parece impossível imaginar uma força humana que a tenha trazido até ali; então ela deve ter se movido por si própria, ou seja: deve hospedar um espírito. Tudo o que possui um corpo é acessível ao encantamento, também os espíritos da natureza. Se um deus está vinculado à sua imagem, pode-se também exercer sobre ele uma coação direta (ao lhe negar o alimento sacrificial, açoitá-lo, acorrentá-lo e assim por diante). A fim de obter as graças de um deus que as abandonou, as pessoas pobres, na China, amarram com cordas a sua imagem, arrastam-na pelas ruas através de montes de lama e estrume, e dizem: "Ó tu, cão de espírito, nós te fizemos habitar um magnífico templo, te douramos esplendidamente, te alimentamos bem, te oferecemos sacrifícios, e contudo és tão ingrato". Semelhantes medidas de violência contra imagens dos santos e da mãe de Deus, quando eles não quiseram cumprir sua obrigação em casos de peste ou de seca, por exemplo, ocorreram ainda neste século em países católicos. — Todas essas relações mágicas com a natureza deram origem a inúmeras cerimônias; por fim, quando sua confusão se tornou muito grande houve esforços para ordená-las, sistematizá-las, de modo que se acreditou garantir o desenrolar favorável de todo o curso da natureza, isto é, do grande ciclo anual das estações, mediante o correspondente desenrolar de um sistema de procedimentos. O sentido do culto religioso é influenciar e esconjurar a natureza em benefício do homem, ou seja, imprimir-lhe uma regularidade que a princípio ela não tem; enquanto na época atual queremos conhecer as regras da natureza para nos adaptarmos a elas. Em suma, o culto religioso baseia-se nas idéias de feitiço entre um homem e outro; e o feiticeiro é mais antigo que o sacerdote. Mas igualmente se baseia em concepções outras, mais nobres; pressupõe um laço de simpatia entre os homens, a existência de boa vontade, gratidão, atendimento aos suplicantes, acordos entre inimigos, concessão de garantias, direito à proteção da propriedade. Mesmo em baixos níveis de cultura o homem não se acha frente à natureza como um escravo impotente, não é necessariamente o seu servo desprovido de vontade: no nível religioso dos gregos, sobretudo na relação com os deuses olímpicos, deve-se mesmo pensar na convivência de duas castas, uma mais nobre, mais poderosa, e outra menos nobre; mas por sua origem elas de algum modo estão ligadas e são de uma única espécie; não precisam se envergonhar uma da outra. Eis o que há de nobre na religiosidade grega.

— Friedrich Wilhelm Nietzsche, in Humano, Demasiado Humano - aforismo 111.

domingo, 22 de março de 2015

A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos

A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos - vis porque são nossos e vis porque são vis.

O amor, o sono, as drogas e intoxicantes,
são formas elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono e drogas tem cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram estimular.

Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela.

O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele.

Por arte entende-se tudo que nos delicia
sem que seja nosso - o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objetivo.

Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência."

Bernardo Soares, no Livro do Desassossego

sexta-feira, 20 de março de 2015

A um passarinho

Para que vieste
Na minha janela
Meter o nariz?
Se foi por um verso
Não sou mais poeta
Ando tão feliz!
Se é para uma prosa
Não sou Anchieta
Nem venho de Assis.

Deixa-te de histórias
Some-te daqui!

Vinicius de Morais

quinta-feira, 19 de março de 2015

Ao leitor - As flores do mal

Charles  Baudelaire  -Tradução de Mário Laranjeira

A estulticia, o engano, o pecado, a avareza,
Ocupam - nos a mente e os nossos corpos minam,
E remorsos amáveis nosso corpo animam,
Como o mendigo ao verme que ele tanto preza.

Nossos pecados são  duros, tíbio o pesar,
Vendemos a alto preço as nossas confissões,
E voltamos com gozo aos barrentos rincoes,
Com vis prantos achando as nódoas apagar.

Do mal no travesseiro  é Satã  Trismegistro
Que embala lentamente a nossa alma encantada,
E o tão rico metal da vontade enleada
Faz-se vapor na mão desse sábio alquimista.

O Demo é quem segura o fio que nos guia!
Achamos sedução nas coisas mais nojentas;
Sem horror, através das trevas fedorentas.
Pro Inferno um passo a mais nos leva a cada dia.

Qual pobre garanhao que devora na transa
De alguma velha puta o seio dolorido
Queremos de passagem prazer escondido
Que esprememos tal qual bagaço de laranja.

Cerrado, a formigar como um milhão de helmintos,
Um povo de Demônios folga em nossa mente,
E a Morte, ao respirarmos, no pulmão, fremente,
Desce, invisível rio, em queixume indistinto.

Se o estupro, o incêndio, o veneno, o punhal,
Não lhes bordaram inda em desenhos risonhos
O rascunho banal de seus fados tristonhos
É que nossa alma, é pena, a isso se presta mal.

Mas em meio às cadelas, onças e chacais,
Macacos, escorpiões, gaviões e serpentes.
Os monstros a ganir, rosnar, pelo chão rentes.
Na fauna infame e vil dos vícios ancestrais,

Existe um mais feio, e maldoso, e imundo!
Embora sem fazer grandes gestos, gritar,
É capaz de em frangalho a terra transformar
E num só bocejar engoliria o mundo;

É  o Tédio!   -carregado o olhar de pranto vão,
Ao fumar seu cachimbo em sonhos mergulhado,
Tu conheces, leitor, tal monstro delicado, -Hipócrita leitor - meu igual - meu irmão !

sexta-feira, 6 de março de 2015

Fausto, de Goethe

MARGARIDA

Crês em Deus?

FAUSTO

Quem se atreve, amada prenda,
a dizer: Creio em Deus? Se o perguntares
a qualquer padre, a qualquer sábio, afirmo-te
que há-de a resposta parecer-te escárnio.

MARGARIDA

Então não crês?

FAUSTO

Encanto meu querido,
não tomes o que digo em mau sentido.

Defini-lo, que língua o tentara?
Quem se atreve a dizer: Em Deus creio?
Ou quem pode, sentindo-o no seio,
Não há Deus, temerário afirmar?
Pois aquele que abrange, que ampara
todo um mundo em seu grémio patente,
a nós ambos não pode igualmente
e a si próprio abranger, amparar?
Não nos cobre uma abóbada imensa?
Não pisamos um chão tão seguro?
Não nos banha em clarões pelo escuro
de astros meigos perene caudal?
Quando embebo este olhar, que em ti pensa,
nesse teu, que à minha alma responde,
¿de um poder que entreluz e se esconde
não sentimos o influxo fatal?
Toda a vez que o teu peito sedento
se afundir neste mar de doçura,
põe-lhe o nome a teu gosto: ventura,
céu de amor, ou potência de um Deus.
Eu nenhum. De o gozar me contento.

Nome é fumo em que a luz se reveste;
e eu não quero um tal fogo celeste
encobrir aos teus olhos e aos meus

terça-feira, 3 de março de 2015

Sobre a morte -Quintana

Um dia...Pronto!...Me acabo.
Pois seja o que tem de ser.
Morrer: Que me importa?
O diabo é deixar de viver

Sobre a morte - Mário Quintana

O pensamento da morte não tem nada de fúnebre, como pensam os superticiosos.

Nada tem a ver com a morte e sim com a vida; é ele que empresta a cada instante nosso este preço único, todo esse encantamento agradecido que os tímidos desconhecem...

A morte é o aperitivo da vida

domingo, 1 de março de 2015

Tudo o que faço ou medito

   Tudo o que faço ou medito
   Fica sempre na metade.
   Querendo, quero o infinito.
   Fazendo, nada é verdade.

   Que nojo de mim fica
   Ao olhar para o que faço!
   Minha alma é lúcida e rica
   E eu sou um mar de sargaço –

   Um mar onde bóiam lentos
   Fragmentos de um mar de além...
   Vontades ou pensamentos?
   Não o sei e sei-o bem.

Fernando Pessoa