quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Medo do escuro


No meio da calçada um vulto 
escuro no escuro. 
A mocinha no meio do caminho 
trêmula de pavor, gritos em desejos 
sufocam-lhe a garganta. 
Mãos assassinas apertam-lhe a glote. 
SOCORRO, grita calada.

O vulto escuro no escuro 
se aproxima. Arma em riste. 
Abruptamente cola 
o seu corpo ao da mocinha. 
A arma em riste continua.

Um pedaço de pau, 
em desconexos giros, 
movimenta no espaço. 
No meio do corpo da mocinha 
um vulto escuro no escuro,

como se buscasse aconchego, 
pede desculpas pelo encontrão 
e implora quase em sussurro 
uma ajuda para atravessar a rua.

Um homem cego 
entre um copo e outro 
se distanciou de seus amigos 
e de sua bengala.

Conceição Evaristo. Poemas da recordação e outros movimentos.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

A origem dos outros

"Como uma pessoa se torna racista ou sexista? Já que ninguém nasce racista, e tampouco existe qualquer predisposição fetal ao sexismo, aprende-se a Outremização não por meio do discurso ou da instrução, mas pelo exemplo."

"Qual é a natureza do conforto proporcio nado pela Outremização, de sua atração, de seu poder (social, psicológico e econômico )? Será a emoção de pertencer, que implica fazer parte de algo maior do que um único eu isolado, e portanto mais forte? Minha opinão inicial tende para a necessidade social/
psicológica de um "estrangeiro", um Outro, que possibilite definir o eu isolado (aquele que busca multidões é sempre o solitário)."

"(...) não existem estrangeiros. Existem apenas versões de nós mesmos; muitas delas nós não abraçamos, e da maioria desejamos nos proteger. Pois o estrangeiro não é desconhecido, e sim aleatório; não é alienígena, e sim lembrado; e é o caráter aleatório do encontro com nossos eus já conhecidos, ainda que não admitidos, que causa um sinal de alarme. Que nos faz rejeitar a figura e a emoção que ela provoca, principalmente quando essas emoções são profundas. É também o que nos faz querer possuir, governar e administrar o Outro. Romantizá-lo, se pudermos, e assim trazê-lo de volta para dentro de nossos próprios espelhos. Em qualquer dos casos (seja no alarme, seja na falsa reverência), nós lhe negamos a realidade como pessoa, a individualidade específica que assistimos manter para nós mesmos." 

"A ficção narrativa proporciona uma selva controlada, uma oportunidade de ser e de se tornar o Outro. O estrangeiro. Com empatia, clareza e o risco de uma autoinvestigação." 

Toni Morrison. "A origem dos outros."

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Ser ou tornar-se estrangeiro


(...) não existem estrangeiro. Existem apenas versões de nós mesmos; muitas delas nós não abraçamos, e da maioria desejamos nos proteger. Pois o estrangeiro  não é desconhecido, e sim aleatório; não é alienígena, e sim lembrado; e é o caráter aleatório do encontro com nossos eus já conhecidos, ainda que não admitidos, que causa um sinal de alarme. Que nos faz rejeitar a figura e a emoção que ela provoca, principalmente quando essas emoções são profundas. É também o que nos faz querer possuir, governar e administrar o Outro. Romantizá-lo, se pudermos, e assim trazê-lo de volta para dentro de nossos próprios espelhos. Em qualquer dos casos (seja no alarme, seja na falsa reverência), nós lhe negamos a realidade como pessoa, a individualidade específica que instimos manter para nós mesmos.


Toni Morrison. A origem dos outros. Seis ensaios sobre racismo e literatura.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

OS BRAVOS E SERENOS HERDARÃO A TERRA

 

O cotidiano plenifica-me
de dor, abandono e busca. 
O grão de arroz que soçobra 
na pia, me emociona
nasalizando-me a voz 
e brilha como um diamante 
preso nos campos vazios 
onde a fome brinca 
escovando os dentes dos famintos 
com uma pasta dentifrícia 
feita de saliva seca 
que sabe a fome. 

No cotidiano busco a plêiade 
tenaz da esperança 
e plenificada de crença e gozo 
encontro outras laboriosas mãos 
revolvendo a terra 
e retomando as sementes 
dos falsos donos da gleba. 

Do cotidiano só irmos. 
Sorrimos o nosso sapiente riso 
com os nossos dentes 
abrilhantados de fome e força, 
porque aqueles que todos pensavam mansos, 
bravios se tornaram 
e então, seremos nós, 
bravos e serenos, 
que herdaremos a terra. 

 Conceição Evaristo. "Poemas da recordação e outros movimentos".

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Certidão de óbito


Os ossos de nossos antepassados
colhem as nossas perenes lágrimas
pelos mortos de hoje.
Os olhos de nossos antepassados,
negras estrelas tingidas de sangue,
elevam-se das profundezas do tempo
cuidando de nossa dolorida memória.
A terra está coberta de valas
e a qualquer descuido da vida
a morte é certa.
A bala não erra o alvo, no escuro
um corpo negro bambeia e dança.
A certidão de óbito, os antigos sabem,
veio lavrada desde os negreiros.
Conceição Evaristo. Poemas da recordação e outros movimentos.

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Tempestades

Neste ponto foi a moça interrompida por uma observação banal do irmão, que tinha um termômetro infalível nos pés e anunciou que havia trovoada iminente. A irmã olhou silenciosamente para ele, e admirou consigo mesma a ventura daqueles para quem as tempestades do ar importam mais que as 
tempestades da vida.

Machado de Assis. Ressurreição.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

É carnaval

“É Carnaval, e estão as ruas cheias
De gente que conserva a sensação,
Tenho intenções, pensamento, ideias,
Mas não posso ter máscara nem pão.

Esta gente é igual, eu sou diverso —
Mesmo entre os poetas não me aceitariam.
Às vezes nem sequer ponho isto em verso —
E o que digo, eles nunca assim diriam.

Que pouca gente a muita gente aqui!
Estou cansado, com cérebro e cansaço.
Vejo isto, e fico, extremamente aqui
Sozinho com o tempo e com o espaço.

Detrás de máscaras nosso ser espreita,
Detrás de bocas um mistério acode
Que meus versos anódinos enjeita.

Sou maior ou menor? Com mãos e pés
E boca falo e mexo-me no mundo.
Hoje, que todos são máscaras, és
Um ser máscara-gestos, em tão fundo…”

—  Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

Quem sou eu?

Quem sou eu?

Quem sou eu? que importa quem?

Sou um trovador proscrito,

Que trago na fronte escrito

Esta palavra — Ninguém! —

(A. E. Zalvar — Dores e Flores)

 

Amo o pobre, deixo o rico,

Vivo como o Tico-tico;

Não me envolvo em torvelinho,

Vivo só no meu cantinho:

Da grandeza sempre longe,

Como vive o pobre monge.

Tenho mui poucos amigos,

Porém bons, que são antigos,

Fujo sempre à hipocrisia,

À sandice, à fidalguia;

Das manadas de Barões?

Anjo Bento, antes trovões.

Faço versos, não sou vate,

Digo muito disparate,

Mas só rendo obediência

À virtude, à inteligência:

Eis aqui o Getulino

Que no pletro anda mofino.

Sei que é louco e que é pateta

Quem se mete a ser poeta;

Que no século das luzes,

Os birbantes mais lapuzes,

Compram negros e comendas,

Têm brasões, não — das Kalendas,

E, com tretas e com furtos

Vão subindo a passos curtos;

Fazem grossa pepineira,

Só pela arte do Vieira,

E com jeito e proteções,

Galgam altas posições!

Mas eu sempre vigiando

Nessa súcia vou malhando

De tratantes, bem ou mal

Com semblante festival.

Dou de rijo no pedante

De pílulas fabricante,

Que blasona arte divina,

Com sulfatos de quinina,

Trabusanas, xaropadas,

E mil outras patacoadas,

Que, sem pinga de rubor,

Diz a todos, que é DOUTOR!

Não tolero o magistrado,

Que do brio descuidado,

Vende a lei, trai a justiça

— Faz a todos injustiça —

Com rigor deprime o pobre

Presta abrigo ao rico, ao nobre,

E só acha horrendo crime

No mendigo, que deprime.

- Neste dou com dupla força,

Té que a manha perca ou torça.

Fujo às léguas do lojista,

Do beato e do sacrista —

Crocodilos disfarçados,

Que se fazem muito honrados,

Mas que, tendo ocasião,

São mais feroz que o Leão.

Fujo ao cego lisonjeiro,

Que, qual ramo de salgueiro,

Maleável, sem firmeza,

Vive à lei da natureza;

Que, conforme sopra o vento,

Dá mil voltas num momento.

O que sou, e como penso,

Aqui vai com todo o senso,

Posto que já veja irados

Muitos lorpas enfunados,

Vomitando maldições,

Contra as minhas reflexões.

Eu bem sei que sou qual Grilo,

De maçante e mau estilo;

E que os homens poderosos

Desta arenga receiosos

Hão de chamar-me Tarelo,

 

Bode, negro, Mongibelo;

Porém eu que não me abalo,

Vou tangendo o meu badalo

Com repique impertinente,

Pondo a trote muita gente.

Se negro sou, ou sou bode

Pouco importa. O que isto pode?

Bodes há de toda a casta,

Pois que a espécie é muito vasta.

Há cinzentos, há rajados,

Baios, pampas e malhados,

Bodes negros, bodes brancos,

E, sejamos todos francos,

Uns plebeus, e outros nobres,

Bodes ricos, bodes pobres,

Bodes sábios, importantes,

E também alguns tratantes...

Aqui, nesta boa terra

Marram todos, tudo berra;

Nobres Condes e Duquesas,

Ricas Damas e Marquesas,

Deputados, senadores,

Gentis-homens, veadores;

Belas Damas emproadas,

De nobreza empantufadas;

Repimpados principotes,

Orgulhosos fidalgotes,

Frades, Bispos, Cardeais,

Fanfarrões imperiais,

Gentes pobres, nobres gentes

Em todos há meus parentes.

Entre a brava militança

Fulge e brilha alta bodança;

Guardas, Cabos, Furriéis,

Brigadeiros, Coronéis,

Destemidos Marechais,

Rutilantes Generais,

Capitães de mar-e-guerra,

— Tudo marra, tudo berra —

Na suprema eternidade,

Onde habita a Divindade,

Bodes há santificados,

Que por nós são adorados.

Entre o coro dos Anjinhos

Também há muitos bodinhos. —

O amante de Syiringa

Tinha pêlo e má catinga;

O deus Mendes, pelas contas,

Na cabeça tinha pontas;

Jove quando foi menino,

Chupitou leite caprino;

E, segundo o antigo mito,

Também Fauno foi cabrito.

Nos domínios de Plutão,

Guarda um bode o Alcorão;

Nos lundus e nas modinhas

São cantadas as bodinhas:

Pois se todos têm rabicho,

Para que tanto capricho?

Haja paz, haja alegria,

Folgue e brinque a bodaria;

Cesse pois a matinada,

Porque tudo é bodarrada!

 

(SILVA, Júlio Romão da. Luiz Gama e suas poesias satíricas. 2 ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1981. p.177-181.)

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Ficção e metafísica

Os textos ficcionais prestam auxilio a nossa tacanheza metafísica. Vivemos no grande labirinto do mundo real, que é maior e mais complexo que o mundo de Chapeuzinho Vermelho. É um mundo cujos caminhos ainda não mapeamos inteiramente e cuja estrutura total não conseguimos descrever. Na esperança de que existam regras do jogo, ao longo dos séculos a humanidade vem se perguntando se esse labirinto tem um autor ou talvez mais de um. E vem pensando em Deus ou nos deuses como autores empíricos, narradores ou autores-modelo. As pessoas tentam imaginar  uma divindade empírica: se tem barba; se é Ele. Ela ou Isso: se nasceu ou sempre existiu; e até (em nossa própria época) se morreu. Sempre se procurou Deus como Narrador-nos intestinos dos animais, no vôo dos pássaros, na sarça ardente, na primeira frase dos Dez Mandamentos. Alguns, todavia (inclusive filósofos, é claro, mas também adeptos de muitas religiões), procuraram Deus como Autor-Modelo - quer dizer, Deus como a Regra do Jogo, como a Lei que torna ou um dia tornará compreensível o labirinto do mundo. A Divindade nesse caso é algo que precisamos descobrir ao mesmo tempo que descobrimos por que estamos no labirinto e qual é o caminho que nos cabe percorrer.

(...)há outro motivo pelo qual nos sentimos metafisicamente mais à vontade na ficção do que na realidade.  O problema com o mundo real é que, desde o começo dos tempos, os seres humanos vêm se perguntando se há uma mensagem e, em havendo, se essa mensagem faz sentido. Com os
universos ficcionais sabemos sem dúvida que têm uma mensagem e que uma entidade autoral está por trás deles como criador e dentro deles como um conjunto de instruções de leitura.

Umberto Eco. Seis passeios pelo bosque da ficção.