quarta-feira, 20 de julho de 2016

Soneto do Amigo

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com os olhos que contem o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual à mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica... 

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Às vezes com alguém que amo

Às vezes com alguém que amo, me encho de fúria, pelo medo de extravasar amor sem retorno;
Mas agora penso não haver amor sem retorno – o pagamento é certo, de um jeito ou de outro;
(Eu amei certa pessoa ardentemente, e meu amor não teve retorno;
No entanto, disso escrevi estas canções.)

Walt Whitman

Canção de mim mesmo

Tenho dito que a alma não é mais que o corpo,
E tenho dito que o corpo não é mais que a alma,
E nada, nem Deus, é maior para alguém do que seu próprio eu,
E quem andar duzentos metros sem solidariedade anda para o próprio funeral vestido em sua mortalha,
E eu ou tu sem um tostão no bolso podemos comprar o escol da terra,
E relancear com um olho ou mostrar um feijão em sua vagem confunde a erudição de todos os tempos,
E não há comércio ou emprego que o jovem siga que não se torne um herói,
E não há objeto tão macio que não faça um eixo para o universo sobre rodas,
E digo a qualquer homem ou mulher,
Que sua alma fique calma e composta ante um milhão de universos.

E digo à humanidade, Não sejas curiosa acerca de Deus,
Pois eu que sou curioso acerca de todos não estou curioso acerca de Deus,
(Nenhum arranjo de termos pode dizer o quanto estou em paz acerca de Deus e da morte.)

Ouço e vejo Deus em todo objeto, no entanto de modo algum entendo Deus,
Nem entendo quem pode haver mais maravilhoso que eu mesmo.

Por que eu devia desejar ver Deus mais que a este dia?
Vejo algo de Deus em cada hora das vinte e quatro, e em cada momento então,
Nos rostos de homens e mulheres vejo Deus, e em meu próprio rosto no vidro,
Encontro cartas de Deus caídas na rua, e cada uma está assinada com o nome de Deus,
E as deixo onde estão, pois seu que onde quer que eu for,
Outras pontualmente virão sempre e sempre.

Walt Whitman, Canção de mim mesmo.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

O MITO



Carlos Drummond de Andrade
Sequer conheço fulana,
Vejo fulana tão curto
Fulana jamais me vê,
Mas como amo fulana.

Amarei mesmo fulana?
Ou é ilusão de sexo?
Talvez a linha do busto,
Da perna, talvez o ombro.

Amo fulana tão forte,
Amo fulana tão dor,
Que todo me despedaço
E choro,menino, choro

Mas fulana vai se rindo...
Vejam fulana dançando
No esporte ele está sozinha
No bar, quão acompanhada.

E fulana diz mistérios,
Diz marxismo, rimmel, gás.
Fulana me bombardeia,
No entanto sequer me vê.

E sequer nos compreendemos,
É dama de alta fidúcia,
Tem latifúndios, iates,
Sustenta cinco mil pobres,

Menos eu...que de orgulhoso
Me basto pensando nela
Pensando com unha, plasma,
Fúria, gilete, desânimo.

Amor tão disparatado,
Desbaratado é que é...
Nunca a sentei no meu colo
Nem vi pela fechadura.

Mas sei quanto me custa
Manter esse gelo digno,
Essa indiferença gaia, e não gritar:
vem, fulana!

Como deixar de invadir
Sua casa de mil fechos
E sua veste arrancando
Mostrá-la depois ao povo

Tal como deve ser:
Branca, intata, neutra, rara,
Feita de pedera translúcida,
De ausência e ruivos ornatos.

Mas como será fulana,
Digamos, no seu banheiro?
Só de pensar em seu corpo,
O meu se punge...pois sim.

Porque preciso do corpo
Para mendigar fulana,
Rogar-lhe que pise em mim,
Que me maltrate...assim não.

Mas fulana será gente?
Estará somente em ópera?
Será figura de livros?
Será bicho? saberei?

Não saberei? só pegando,
Pedindo: dona, desculpe,
O seu vestido, esconde algo?
Tem coxas reais? cintura?

Fulana às vêzes existe
Demais: até me apavora.
Vou sozinho pela rua,
Eis que fulana me roça.

Mas não quero nada disso.
Para que chatear fulana?
Pancada na sua nuca
Na minha que vai doer.

E daí não sou criança
Fulana estudo meu rosto
Coitado: de raça branca
Tadinho: tinha gravata

Já morto, me quererá?
Esconjuro, se é necrófila...
Fulana é vida, ama as flores,
As artérias e as debêntures.

Sei que jamais me perdoara
Matar-me para servi-la.
Fulana quer homens fortes
Couraçados, invasores.

Fulana é tão dinâmica
Tem um motor na barriga.
Suas unhas são elétricas,
Seus beijos refrigerados,

Desinfetados, gravados
Em máquina multilite.
Fulana, como é sadia!
Os enfermos somos nós.

Sou eu, o poeta precário
Que fêz de fulana um mito
Nutrindo-me de petrarca,
Ronsard, camões e capim;

Que a sei embebida em leite,
Carne, tomate, ginástica
E lhe colo metafísicas,
Enigmas, causas primeiras.

Mas, se tentasse construir
Outra fulana que não
Essa de burguês sorisso
E de tão burro esplendor?

Mudo-lhe o nome: recorto-lhe
Um traje de transparência;
Já perde a carência humana
E bato-a; de tirar sangue.

E lhe dou todas as faces
De meu sonho que especula;
E abolimos a cidade
Já sem peso e nitidez.

E vadeamos a ciência,
Mar de hipóteses.a lua
Fica sendo nosso esquema
De um território mais justo.

E colocamos os dados
De um mundo sem classe e imposto;
E nesse mundo instalamos
Os nossos irmãos vingados:

E nessa fase gloriosa,
De contradições extintas,
Eu e fulana, abrasados,
Queremos...que mais queremos?

E digo a fulana: amiga,
Afinal nos compreendemos.
Já não sofro, já não brilhas,
Mas somos a mesma coisa

(uma coisa tão diversa
da que pensava que fossemos.)