sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Herança


Eu vim de infinitos caminhos, 
e os meus sonhos choveram lúcido pranto
pelo chão.

Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos, 
essa vida, que era tão viva, tão fecunda, 
porque vinha de um coração?

E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos, 
do pranto que caiu dos meus olhos passados, 
que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão?

Cecília Meireles

domingo, 24 de setembro de 2017

Pensamento e ação

Parece-me que presentemente podemos representar-nos, ainda que seja em vago esquematismo, qual tem sido a trajetória humana, considerada sob este ângulo. Façamo-lo num texto condensado, que nos sirva a um tempo como resumo e como recordação de tudo anteriormente dito.

 

Acha-se o homem, não menos do que o animal, consignado ao mundo, às coisas em torno, à circunstância. Em princípio, sua existência mal difere da existência zoológica: êle, também, vive governado pelo contorno, inserido entre as coisas do mundo como uma delas. Não obstante, mal os seres em torno lhe deixam um alento, o homem, fazendo um esforço gigantesco, consegue um instante de concentração, mete-se dentro de si, isto é, mantém, a duras penas, sua atenção fixa nas ideias que brotam dentro dele, ideias que as coisas suscitam, e que se referem ao comportamento destas, ao que logo o filósofo chamará "o ser das coisas". Trata-se, de pronto, de uma ideia muito tosca, sobre o mundo, mas que permita esboçar um primeiro plano de defesa, uma conduta preconcebida. Mas, nem essas coisas em torno lhe permitem vagar por muito tempo nessa concentração; tampouco, embora elas o consentissem, esse homem primigênio seria capaz de prolongar mais de uns segundos ou minutos essa torção aten-cional, essa fixação nos impalpáveis fantasmas que são as ideias. Essa atenção para dentro, que é o ensimesmamento, constitui o fato mais antinatural, mais ultrabiológico. O homem tardou milhares de anos para educar um pouco, - nada mais que um pouco, - a sua capacidade de concentração. O que lhe é natural é dispersar-se, distrair-se para fora, como o macaco na selva e na jaula do Jardim Zoológico.

 

O padre Chevesta, explorador e missionário, que foi o primeiro etnógrafo especializado no estudo dos pigmeus, provavelmente a variedade de homens mais antiga que se conhece, que êle foi procurar lá dentro das selvas tropicais mais recônditas, - o padre Chevesta, que desconhece por completo a doutrina agora exposta por mim e se limita a descrever o que vê, diz em sua última obra, de 1932, sobre os anões do Congo (Bambuti, die Zwerge des Congo):

 

"Falta-lhes por completo o poder de concentrar-se. Estão sempre absorvidos pelas impressões exteriores, cuja contínua mutação lhes impede recolher-se a si mesmos, o que constitui condição indispensável a todo aprendizado. Sentá-los no banco de uma escola seria para estes homenzinhos um tormento insuportável. De modo que o trabalho do missionário e do mestre se torna sumamente difícil".


 

Mas, embora instantâneo e tosco, esse primitivo ensimesmamento vai separar radicalmente a vida humana da vida animal. Porque agora o homem, esse homem primigênio vai submergir novamente nas coisas do mundo, resistindo a elas, sem entregar-se de todo a elas. Leva um plano contra elas, um projeto de trato com elas, de manipulação de suas formas, que produz uma transformação mínima em seu redor, suficiente para que o oprimam um pouco menos e, em consequência, lhe permitam mais frequentes e folgados ensimesmamentos. . . e assim sucessivamente.

São, pois, três momentos diferentes que ciclicamente se repetem ao longo da história humana em formas cada vez mais complexas e densas: I) O homem se sente perdido, naufragado nas coisas; é a alteração. II) O homem, com enérgico esforço, se recolhe à sua intimidade para formar ideias sobre as coisas e seu possível domínio; é o ensimesmamento, a vita contemplativa como diziam os romanos, o theoretikos bios dos gregos, a theoria. III) O homem torna a submergir no mundo para atuar nele conforme um plano preconcebido; é a ação, a vida ativa, a praxis.

 

De acordo com isto, não se pode falar de ação senão na medida em que esteja regida por uma prévia contemplação; e vice-versa, o ensimesmamento não é senão um projetar a ação futura.

 

O destino do homem é, portanto, primariamente ação. Não vivemos para pensar, mas ao contrário: pensamos para conseguir perviver. Este é um ponto capital em que, a meu juízo, urge que nos oponhamos radicalmente a toda tradição filosófica e nos resolvamos a negar que o pensamento, em qualquer sentido suficiente do vocábulo, tenha sido dado ao homem de uma vez para sempre, de forma que este o encontre, sem mais, à sua disposição, como uma faculdade ou potência perfeita, pronta a ser usada e posta em exercício, como ao pássaro foi dado o voo e ao peixe, a natação."

Ortega y gasset. O homem e os outros.

Isto é um homem?

"Uma parte da nossa existência está nas almas de quem se aproxima de nós; por isso, não é humana a experiência de quem viveu dias nos quais o homem foi apenas uma coisa ante os olhos de outro homem."

Primo Levi. Isto é um homem?

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Noite

Carlos Drummond de Andrade

Há tantas coisas germinando na noite, que nem sei como enumerá-las. À noite nascem as revoluções tanto as que vão triunfar como as que só se realizam em pensamento, e são quase todas. Os revolucionários viram-se, inquietos, na cama. E também os que se converterão, pela manhã, a religiões novas. E os amorosos. Análises emocionais levadas ao extremo da tortura arrastam-se pela horas lentas da noite. Como a noite é rica! A noite é o tempo de não dormir; é o de velar e procurar; de criar mundos.

Demétrio quis prolongar a noite obturando todas as frestas do quarto, para que não entrasse a luz. Luz não entrou. Demétrio gozou da noite plena, continuada, e todos os pensamentos lhe floresciam. Construiu sistemas filosóficos. A escuridão era propícia a teorias políticas. Nenhum crítico foi mais perspicaz do que Demétrio, na literatura e nas artes. Aquela noite era fantástica. Demétrio quis experimentar as sensações de horror, êxtase, humilhação, glória, poder e morte. Morreu, mesmo no escuro. Tendo sentido a morte em seu interior físico, não pôde mais tirá-la de si. É o único morto, conscientemente morto, de que já ouvi falar nesta vida. A noite é fantástica.

Contos Plausíveis, in Andrade, C. D. (1992): Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Aguilar, pg. 1240

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

LÂMINA


[norma de souza lopes]

não tive pai que me cortasse
quem me cortou foi a poesia
cindiu minh'alma como lâmina
e me fez pousar segura
sobre a tragédia que é a vida

desnecessário foi
desintegrar a linguagem
empregar luta corporal
me desintegrei primeiro
palavras me atravessaram

Assim tão só
assim tão pó
assim tão pouco

Fui refazendo as bordas do furo
preenchendo espaços com palavras
hoje palavras me costuram

domingo, 17 de setembro de 2017

Saudades

Saudade
Saudade de tudo!…
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!…
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim…

Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!…

Pressa!…
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!…
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 132.
.

Vocês que vivem seguros

Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,

        pensem bem se isto é um homem
        que trabalha no meio do barro,
        que não conhece paz,
        que luta por um pedaço de pão,
        que morre por um sim ou por um não.
        Pensem bem se isto é uma mulher,
        sem cabelos e sem nome,
        sem mais força para lembrar,
        vazios os olhos, frio o ventre,
        como um sapo no inverno.

Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-nas em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos.
       

        Ou não, desmorone-se a sua casa,
        a doença os torne inválidos,
        os seus filhos virem o rosto para não         vê-los

Primo Levi

A felicidade ou a infelicidade completa são irrealizáveis

"Cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se da conta de que a felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que também é irrealizável a infelicidade completa. Os motivos que se opõem a realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza; eles vem de nossa condição humana, que é contra qualquer "infinito". Assim, opõe-se a esta realização o insuficiente conhecimento do futuro, chamado de esperança no primeiro caso e de dúvida da morte, que fixa um limite a cada alegria, mas também a cada tristeza. Assim, opõem-se as inevitáveis lides materiais que, da mesma forma como desgastam com o tempo toda a felicidade, desviam a cada instante a nossa atenção da desgraça que pesa sobre nos tornando a sua percepção fragmentária, e, portanto, suportável".

Primo Levi . É isto um homem?

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Envelhecer

Mas, um dia, todos começaram a perceber que Tio Totó estava envelhecendo. Não pelos cabelos brancos, porque há muito que ele já os tinha. Não porque andasse meio trôpego e nem porque já trouxesse a voz meio rouca. Não eram essas as marcas da velhice de Tio Totó. Ele envelhecia porque nem vontade de recomeçar de novo tinha. Envelhecia ao fazer um balanço de toda sua vida e só ver a morte como única saída.

Becos da memória. Conceição Evaristo.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

O Discurso da Servidão Voluntária

Mas, ó Deus, o que pode ser isso? Como diremos que isso se chama? Que desgraça é essa? Por que vício, e vício horrível, vemos um grande número de pessoas não só obedecer mas servir, não ser governadas mas tiranizadas, sem possuir bens, nem pais, nem filhos, nem sequer sua própria vida? Sofrendo as rapinas, as truculências e as crueldades, não de um exército, não de uma horda de bárbaros contra os quais cada um deveria arriscar o sangue e a vida para defender-se, mas de um só. Não de um Hércules ou de um Sansão, mas de um homenzinho só, muitas vezes o mais covarde e efeminado da nação, não acostumado à poeira das batalhas, mas a muito custo à areia dos torneios, não só incapaz de comandar os homens pela força, mas ainda de servir de maneira indigna à menor mulherzinha.

Étienne de La Boétie, in O Discurso da Servidão Voluntária.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Tabacaria

Não sou nada. 
Nunca serei nada. 
Não posso querer ser nada. 
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. 

Janelas do meu quarto, 
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é 
(E se soubessem quem é, o que saberiam?), 
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, 
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, 
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, 
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, 
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, 
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. 

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. 
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, 
E não tivesse mais irmandade com as coisas 
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua 
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada 
De dentro da minha cabeça, 
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. 

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. 
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo 
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, 
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. 

Falhei em tudo. 
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. 
A aprendizagem que me deram, 
Desci dela pela janela das traseiras da casa. 
Fui até ao campo com grandes propósitos. 
Mas lá encontrei só ervas e árvores, 
E quando havia gente era igual à outra. 
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar? 

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? 
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa! 
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! 
Gênio? Neste momento 
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu, 
E a história não marcará, quem sabe?, nem um, 
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. 
Não, não creio em mim. 
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas! 
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? 
Não, nem em mim... 
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo 
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando? 
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas - 
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -, 
E quem sabe se realizáveis, 
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? 
O mundo é para quem nasce para o conquistar 
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. 
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. 
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, 
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. 
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, 
Ainda que não more nela; 
Serei sempre o que não nasceu para isso; 
Serei sempre só o que tinha qualidades; 
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, 
E ouviu a voz de Deus num poço tapado. 
Crer em mim? Não, nem em nada. 
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente 
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, 
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. 
Escravos cardíacos das estrelas, 
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; 
Mas acordamos e ele é opaco, 
Levantamo-nos e ele é alheio, 
Saímos de casa e ele é a terra inteira, 
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. 

(Come chocolates, pequena; 
Come chocolates! 
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. 
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. 
Come, pequena suja, come! 
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! 
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, 
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) 

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei 
A caligrafia rápida destes versos, 
Pórtico partido para o Impossível. 
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, 
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro 
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas, 
E fico em casa sem camisa. 

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas, 
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, 
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, 
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, 
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, 
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, 
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê - 
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! 
Meu coração é um balde despejado. 
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco 
A mim mesmo e não encontro nada. 
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. 
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, 
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, 
Vejo os cães que também existem, 
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, 
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.) 

Vivi, estudei, amei e até cri, 
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. 
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, 
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses 
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); 
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo 
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente 

Fiz de mim o que não soube 
E o que podia fazer de mim não o fiz. 
O dominó que vesti era errado. 
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. 
Quando quis tirar a máscara, 
Estava pegada à cara. 
Quando a tirei e me vi ao espelho, 
Já tinha envelhecido. 
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. 
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário 
Como um cão tolerado pela gerência 
Por ser inofensivo 
E vou escrever esta história para provar que sou sublime. 

Essência musical dos meus versos inúteis, 
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse, 
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, 
Calcando aos pés a consciência de estar existindo, 
Como um tapete em que um bêbado tropeça 
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada. 

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. 
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada 
E com o desconforto da alma mal-entendendo. 
Ele morrerá e eu morrerei. 
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos. 
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também. 
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, 
E a língua em que foram escritos os versos. 
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. 
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente 
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra, 
Sempre uma coisa tão inútil como a outra, 
Sempre o impossível tão estúpido como o real, 
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, 
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. 

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?) 
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. 
Semiergo-me enérgico, convencido, humano, 
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. 

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los 
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. 
Sigo o fumo como uma rota própria, 
E gozo, num momento sensitivo e competente, 
A libertação de todas as especulações 
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto. 

Depois deito-me para trás na cadeira 
E continuo fumando. 
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. 

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira 
Talvez fosse feliz.) 
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. 
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). 
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica. 
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.) 
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. 
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo 
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Fernando Pessoa

Cantiga dos ais

Os ais de todos os dias,
os ais de todas as noites.
Ais do fado e do folclore,
o ai do ó ai ó linda.

Os ais que vêm do peito,
ai pobre dele, coitado
que tão cedo se finou!

Os ais que vêm da alma.
Ais d’ amor e de comédia,
ai pobre da rapariga
que se deixou enganar…
ai a dor daquela mãe.

Os ais que vêm do sexo,
os ais do prazer na cama.
Os ais da pobre senhora
agarrada ao travesseiro
ai que saudades, saudades,
os ais tão cheios de luto
da viúva inconsolável.
Ai pobre daquele velhinho:
_ai que saudades menina,
ai a velhice é tão triste.

Os ais do rico e do pobre
ai o espinho da rosa
os ais do António Nobre.
Ais do peito e da poesia
e os ais de outras coisas mais.
Ai a dor que tenho aqui,
ai o gajo também é,
ai a vida que tu levas,
ai tu não faças asneiras,
ai mulher és o demónio,
ai que terrível tragédia,
ai a culpa é do António!

Ai os ais de tanta gente…
ai que já é dia oito
ai o que vai ser de nós.

E os ais dos liriquistas
a chorar compreensão?
ai que vontade de rir.

E os ais de D. Dinis
Ai Deus e u é…

Triste de quem der um ai
sem achar eco em ninguém.
Os ais da vida e da morte
Ai os ais deste país…

                           Armindo Mendes de Carvalho


Não me peças sorrisos


Não me exijas glórias
que ainda transpiro
os ais
dos feridos nas batalhas

Não me exijas glórias
que sou eu o soldado desconhecido
da humanidade

As honras cabem aos generais

A minha glória
é tudo o que padeço
e que sofri
Os meus sorrisos
tudo o que chorei

Nem sorrisos nem glória

Apenas um rosto duro
de quem constrói a estrada
pedra após pedra
em terreno difícil

Um rosto triste
pelo tanto esforço perdido
- o esforço dos tenazes que se cansam
á tarde
depois do trabalho

Uma cabeça sem louros
porque não me encontro por ora
no catálogo das glórias humanas

Não me descobri na vida
e selvas desbravadas
escondem os caminhos
por que hei-de passar

Mas hei-de encontrá-los
e segui-los
seja qual for o preço

Então
num novo catálogo
mostrar-te-ei o meu rosto
coroado de ramos de palmeira

E terei para ti
os sorrisos que me pedes.

 Agostinho Neto

1949