Um homem que se respeite não tem pátria. Uma pátria é um visco.
Emil Cioran
Ela dizia sim, mas talvez fosse não, era preciso voltar no tempo através de uma memória que mergulhara em trevas, nada era certo. A memória dos pobres já é por natureza menos alimentada que a dos ricos, tem menos pontos de referência no espaço, considerando que eles raramente saem do lugar onde vivem, e tem também menos
pontos de referência no tempo de uma vida uniforme e sem cor. E claro que existe a memória do coração, que dizem ser a mais segura, mas o coração se desgasta com as dificuldades e o trabalho, esquece mais depressa sob o peso do cansaço. Só os ricos podem reencontrar o tempo perdido. Para os pobres, o tempo marca apenas os vagos vestigios do caminho da morte. E além disso, para poder suportar, nao convém se lembrar muito, é preciso ficar muito perto de cada dia, de cada hora, como fazia sua mãe.
Albert Camus. O primeiro homem
Era silencioso o amor. Podia-se adivinhá-lo no cuida do da mãe enxaguando as roupas nas águas de anil. Era silencioso, mas via-se o amor entre seus dedos cortando a couve, desfolhando repolhos, cristalizando figos, bordando flores de canela sobre o arroz-doce nas tigelas.
Lia-se o amor no corpo forte do pai, em seu prazer pelo trabalho, em sua mansidão para com os longos domingos. Era silencioso, mas escutava-se o amor murmurando -
noite adentro - no quarto do casal. A casa, sem forro, deixava vazar esse murmurio com o aroma de fumo e canela, que invadia lençóis e dúvidas, para depois filtrar-se por entre telhas
Experimentava-se o amor quando, assentados ao calor da cozinha, pai e mãe falavam de distâncias, dos avós, das origens, dos namoros, dos casamentos.
E, quando o sono chegava, para cada menino em cada tempo, era o amor que carregava cada filho nos braços para a cama, ajeitando o cobertor sob o queixo.
Bartolomeu Campos de Queirós. Indez
"Havia, na minha rua, uma casa pequena e branca. Durante dias, lá não vivia ninguém. Mas, se a lua era cheia, a janela se abria como um livro. Um homem, com rosto de anjo, vestido de luar, debruçava na jane
la e pensava, em sossego, sobre a cidade. Mais calado que o silêncio, o homem olhava e mais nos olhava. Todos da cidade tinham cuidado para não quebrar o seu silêncio. Ninguém soprava uma palavra.
Cochichavam que ele esperava os habitantes
dormir. Na noite alta, ele saía para visitar o sono de cada um. Entrava mansinho, mais leve que o gato, doce como o sereno, suave como o perfume, e virava um sonho diferente para cada uma das pessoas. Naquela noite, todos dormiriam com um breve sorriso na boca.
O prefeito sonhava em ser governador; o padre, em ser bispo; a professora, em ser diretora; o deputado, em ser senador; o soldado, em ser tenente; a solteira, em ser casada; o pedreiro, em ser engenheiro; a
criança, em ser grande; o sem-teto, em ter casa. Todos queriam outra coisa. E para tudo precisava tempo. No dia seguinte, todos acordam como eram antes e com vontade de continuar sonhando.
Mas na cidade vivia um menino. O pai era forte. A mãe, doce. Sua casa ficava perto de um riacho cercado de pedras. Eram três irmãos. O menino tinhaainda um cachorro e uma bola azul.
Quando o senhor dos sonhos entrava em seu sono, o menino sonhava sempre com o que já possuía: um pai, uma mãe, dois irmãos, um cachorro e uma bola, um riacho com pedras cercando a casa. O menino não precisava de tempo, sua vida era um sonho.
O senhor do luar voltava para a casa antiga e fechava o livro da janela. Todo desconheciam quando seria sua próxima visita para sonhar de novo. Mas o homem sabia que naquela cidade morava um menino inteiramente feliz, por saber que viver é um sonho."
Bartolomeu Campos de Queirós. Tempo de vôo.