terça-feira, 29 de setembro de 2015

Remissão

Tua memória, pasto de poesia,
tua poesia, pasto dos vulgares,
vão se engastando numa coisa fria
a que tu chamas: vida, e seus pesares.

Mas, pesares de quê? perguntaria,
se esse travo de angústia nos cantares,
se o que dorme na base da elegia
vai correndo e secando pelos ares,

e nada resta, mesmo, do que escreves
e te forçou ao exílio das palavras,
senão contentamento de escrever,

enquanto o tempo, em suas formas breves
ou longas, que sutil interpretavas,
se evapora no fundo do teu ser?

Carlos Drummond de Andrade

Confissão

Não amei bastante meu semelhante,
não catei o verme nem curei a sarna.
Só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde , ao voltar da festa.

Dei sem dar e beijei sem beijo.
(Cego é talvez quem esconde os olhos
embaixo do catre.) E na meia-luz
tesouros fanam-se, os mais excelentes.

Do que restou, como compor um homem
e tudo o que ele implica de suave,
de concordâncias vegetais, múrmurios
de riso, entrega, amor e piedade?

Não amei bastante sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro -vinha azul e doido-
que se esfacelou na asa do avião

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

PARA QUE VIVI

Três paixões, simples mas avassaladoras, me dominaram a vida: o desejo de amor, a busca do saber e a insuportável piedade pelo sofrimento humano. Três paixões, como vendavais, me lançaram aqui e ali, em rumo desordenado, sobre as profundezas de um mar de angústia beirando o desespero.
Busquei o amor, primeiro, por trazer consigo o êxtase – êxtase tão imenso que, muitas vezes, teria de bom grado sacrificado todo o resto de meus dias por algumas horas de felicidade. Busquei-o depois para alívio da solidão – a terrível solidão na qual uma trêmula consciência vê, dos confins do mundo, o frio, imponderável e inerme abismo. Busquei-o, enfim, porque, na união do amor vislumbrei, em mística miniatura, um esboçar da visão do paraíso imaginada por santos e poetas. Foi o que busquei e, embora talvez pareça bom demais para um ser humano, foi – finalmente – o que encontrei.
Com idêntica paixão, busquei o saber. Quis entender os corações dos homens. Quis saber por que brilham as estrelas. E tentei captar o significado da potência pitagórica na qual o número sobrepuja o fluxo. Disso, um pouco, mas não muito, consegui. Amor e saber, no que me foi possível, elevaram-me aos céus. Mas, sempre, tristeza e pena traziam-me de volta à terra. Ecos dos gritos de dor reverberam em meu coração. Crianças famintas, vítimas torturadas pelo opressor, velhos indefesos – carga odiada pelos filhos – e todo um mundo de solidão, pobreza e dor, caricatura do que deveria ser a vida humana. Desejo aliviar o mal mas não consigo, e também eu sofro. Foi essa minha vida.

Prólogo da Autobiografia de Bertrand Russell (1892/1970

terça-feira, 15 de setembro de 2015

O homem revoltado

“A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível. Mas seu ímpeto cego reivindica a ordem no meio do caos e a unidade no próprio seio daquilo que foge e desaparece. A revolta clama, ela exige, ela quer que o escândalo termine e que se fixe finalmente aquilo que até então se escrevia sem trégua sobre o mar. Sua preocupação é transformar. (…) Que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento. Um escravo, que recebeu ordens durante toda a sua vida, julga subitamente inaceitável um novo comando. Qual é o significado deste ‘não’?
Significa, por exemplo, ‘as coisas já duraram demais’, ‘até aí, sim; a partir daí, não’; ‘assim já é demais’, e, ainda, ‘há um limite que você quer ultrapassar’. (…) Encontra-se a mesma idéia de limite no sentimento do revoltado de que o outro ‘exagera’, que estende o seu direito além de uma fronteira a partir da qual um outro direito o enfrenta e o delimita. Desta forma, o movimento de revolta apóia-se ao mesmo tempo na recusa categórica de uma intromissão julgada intolerável e na certeza confusa de um direito efetivo ou, mais exatamente, na impressão do revoltado de que ele ‘tem o direito de…’. A revolta não ocorre sem o sentimento de que, de alguma forma e em algum lugar, se tem razão. (…) Ele [o revoltado] demonstra, com obstinação, que traz em si algo que ‘vale a pena’ e que deve ser levado em conta. De certa maneira, ele contrapõe à ordem que o oprime uma espécie de direito de não ser oprimido além daquilo que pode admitir.
O revoltado, no sentido etimológico, é alguém que se rebela. Caminhava sob o chicote do senhor, agora o enfrenta. Contrapõe o que é preferível ao que não o é. Nem todo valor acarreta a revolta, mas todo movimento de revolta invoca tacitamente um valor. (…) Segundo os bons autores, o valor ‘representa, na maioria das vezes, uma passagem do fato ao direito, do desejado ao desejável (em geral, por meio do geralmente desejado)’ (Lalande, Vocabulário Filosófico). A revolta passa do ‘seria necessário que assim fosse’ ao ‘quero que assim seja’, mas talvez, mais ainda, a essa noção de superação do indivíduo para um bem doravante comum. O surgimento do Tudo ou Nada mostra que a revolta, contrariamente à voz corrente, e apesar de oriunda daquilo que o homem tem de mais estritamente individual, questiona a própria noção de indivíduo. Se com efeito o indivíduo aceita morrer, e morre quando surge a ocasião, no movimento de sua revolta, ele mostra com isso que se sacrifica em prol de um bem que julga transcender o seu próprio destino.”

domingo, 13 de setembro de 2015

Medo de amar

O céu está parado, não conta nenhum segredo
A estrada está parada, não leva a nenhum lugar
A areia do tempo escorre de entre meus dedos
        Ai que medo de amar!

O sol põe em relevo todas as coisas que não pensam
Entre elas e eu, que imenso abismo secular...
As pessoas passam, não ouvem os gritos do meu silêncio
        Ai que medo de amar!

Uma mulher me olha, em seu olhar há tanto enlevo
Tanta promessa de amor, tanto carinho para dar
Eu me ponho a soluçar por dentro, meu rosto está seco
Ai que medo de amar!

Dão-me uma rosa, aspiro fundo em seu recesso
E parto a cantar canções, sou um patético jogral
Mas viver me dói tanto! e eu hesito, estremeço...
        Ai que medo de amar!

E assim me encontro: entro em crepúsculo, entardeço
Sou como a última sombra se estendendo sobre o mar
Ah, amor, meu tormento!... como por ti padeço...
        Ai que medo de amar!

Vinicius de Moraes

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

A Alegoria da Caverna de Platão: Os meios de comunicação e a distorção da realidade



Na Alegoria da caverna de Platão, os homens estavam presos à uma condição que os impedia de verem a realidade, pois somente conseguiam enxergar as sombras projetadas à sua frente. Ou seja, na perspectiva platônica eles só tinham acesso ao mundo sensível, vivendo na penumbra. Poderíamos afirmar que atualmente vivemos uma condição análoga aquela apontada por Platão? Qual seria o papel dos meios de comunicação neste contexto?

A caverna representava um mundo fechado, permeado por sombras que definiam o que era a realidade. Os meios de comunicação atualmente fazem esse papel de mostrar o que é importante para ser pensado, para ser discutido, para ser visto como verdadeiro. Antes do aparecimento da sociedade de comunicação de massas, a religião fazia esse papel de definidora da realidade, apontando para as pessoas toda a compreensão  de mundo aceitável naquela época. Os que se opunham eram categorizados de hereges, perseguidos e, em alguns casos, mortos.

Ao longo do século XIX e principalmente no XX os meios de comunicação tomaram o lugar que até então era predominante da religião. Na verdade a religião continua tendo uma importância enorme para a maioria das pessoas, mas não é mais o grande  veículo disseminador de padrões de comportamento.  O cinema, a televisão e as redes sociais como o Facebook e Twitter filtram a realidade, criando um consenso social sobre o mundo. Esse consenso é introjetado pelo senso comum e  acaba fazendo as pessoas terem ideias muito parecidas e irrefletidas em relação à política, às questões sociais e morais.

Desde bem cedo, ainda na infância, somos bombardeados por propagandas, informações, padrões de condutas e pensamentos "aceitáveis", objetivos de vida a alcançarmos, etc. Isso nos leva a adequar a um projeto de vida dentro do sistema econômico e social que vivemos, que valoriza o consumo e a busca de destaque. E esse "se dá bem na vida" diz respeito ao mundo sensível, a desejos que não correspondem ao Belo, ao Bem e à Verdade. Tudo isso nos impede de ter uma experiência de vida de fato significativa, já que buscamos o tempo todo corresponder a esse simulacro existencial, onde o mais valorizado é o "parecer" e não o "ser". Mais importante do que as experiências reais é a espetacularização de nossas ações, por isso buscamos as "curtidas" no Facebook e Instagram. Somente o reconhecimento nas redes sociais parecem dar valor à vida irreal que levamos.

A crença nas verdades geradas pelos meios de comunicação é tão grande que o pensamento contrário não é aceito. Na Alegoria da Caverna o homem que consegue escapar e ver a luz e as cores da realidade, ao tentar voltar e mostrar o que viu aos aprisionados, não foi aceito e tentaram matá-lo. Hoje isso se repete a quem se propõe à construção de uma compreensão reflexiva sobre a vida. Aqueles que buscam acessar o mundo inteligível são considerados destruidores da moral e dos bons costumes, perturbadores da ordem. Não devem ser ouvidos.


Platão afirmava que o encontro com o conhecimento verdadeiro, que se encontra no mundo inteligível, se daria através da dialética, passos que daríamos através da reflexão, da racionalização e da abstração nesse mundo sensível. A luz do conhecimento nos tiraria desse simulacro e nos levaria à essência das coisas. Esse continua sendo o grande desafio para o filósofo: Fazer o contraponto aos meios de comunicação e gerar reflexão que nos tire do senso comum e das ilusões em que vivemos.




A Alegoria da Caverna e o cinema:

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Eu e o mundo

O fato de que eu existo prova que o mundo não tem sentido. Que sentido eu poderia encontrar, com efeito, nos suplícios de um homem infinitamente atormentado e infeliz, para quem tudo se reduz em última instância ao nada e o sofrimento faz a lei deste mundo? O fato de que o mundo tenha permitido a existência de um humano tal como eu mostra que as manchas sobre o sol da vida são tão vastas que elas acabarão por esconder a luz. A bestialidade da vida pisoteou-me e esmagou - ela cortou-me as asas em pleno voo e recusou-me quaisquer alegrias às quais eu pudesse ter pretendido. Meu zelo desmesurado, a energia louca que eu gastei para brilhar aqui embaixo, a dominação demoníaca a qual me submeti para vestir uma auréola futura e todas as minhas forças desperdiçadas em vista de um revestimento vital ou de uma aurora interior - tudo isto revelou-se mais fraco que a irracionalidade deste mundo, que versou em mim todas as suas fontes de negatividade envenenada. A vida não resiste à alta temperatura. Assim sendo, entendi que os homens mais atormentados, cuja dinâmica interior atinge o paroxismo, e que não podem acomodar-se à tepidez habitual, são destinados a fundir-se. Encontramos, na angústia dos que habitam regiões insólitas, o aspecto demoníaco da vida, mas também sua insignificância, o que explica que ela seja privilégio dos medíocres. Somente estes últimos vivem a uma temperatura normal; os outros, um fogo devorante os consome. Eu nada posso trazer ao mundo, porque minha caminhada é única: a da agonia. Vocês se queixam de que os homem sejam malvados, vingativos, ingratos ou hipócritas? Eu proponho-lhes, quanto a mim, o método da agonia, que lhes permitirá de escapar temporariamente a todas estas falhas. Apliquem-na a cada geração - os efeitos manifestar-se-ão em pouco tempo. Assim sendo, renderei-me, talvez, também útil à humanidade.

Através do chicote, do fogo ou do veneno, façam então com que cada agonizante prove a experiência dos últimos momentos, a fim de que ele conheça, num atroz suplício, a grande purificação que é a visão da morte. Deixem-no, então, partir, correr aterrorizado até que ele caia de fraqueza. O resultado será, não o duvidem, mais brilhante do que aquele que obteríamos pelas vias habituais. Pudesse eu levar o mundo inteiro a agonia para purgar a vida em suas próprias raízes! Eu aí colocaria chamas tenazes, não para destruí-la, mas para comunicá-la uma seiva e um calor diferentes. O fogo que eu colocaria no mundo em nada traria sua ruína, mas sim uma transfiguração cósmica, essencial. Também a vida acostumar-se-ia a uma alta temperatura e cessaria de ser um ninho de mediocridade. Quem sabe a própria morte não cessaria, no seio deste sonho, de ser imanente à vida?

(Escrito neste dia de 8 de abril de 1933, meu vigésimo segundo aniversário. Experimento uma estranha sensação ao pensar que sou, à minha idade, um especialista do problema da morte.)

Nos cumes do desespero. Emil Cioran