terça-feira, 28 de abril de 2020

despedida

"Eu acho que nunca cheguei a dizer a ninguém, só mesmo à Romina, mas na minha cabeça eu sempre escondia este pensamento: as despedidas têm cheiro. E não é cheiro bom tipo cha-de-caxinde, ou as plantas a darem ares duma primeira respiração na frescura da manhã, entre silêncios e cachimbos molhados. Não. Despedida tem cheiro de amizade cinzenta. Nem sei bem o que isso é, nem quero saber. Não gosto mesmo de despedidas.(...)


O camarada professor Angel continuava a falar e, sem querer, dizia coisas que nos emocionavam muito. Nas despedidas acontece isso: a ternura toca a alegria, a alegria traz uma saudade quase triste, a saudade semeia lágrimas, e nós, as crianças, não sabemos arrumar essas coisas dentro do nosso coração."



Conto "um pingo de chuva". Os da minha rua.  ondjaki. 

segunda-feira, 13 de abril de 2020

A peste e a desigualdade

"Havia, porém, outros motivos de inquietação, em consequência das dificuldades de abastecimento que cresciam com o tempo. A especulação interviera e oferecia, a preços fabulosos, os géneros de primeira necessidade que faltavam no mercado habitual. As famílias pobres viam-se, assim, numa situação muito difícil, enquanto às ricas não faltava praticamente nada.Enquanto a peste, pela imparcialidade eficaz com que exercia seu ministério, deveria ter reforçado a igualdade entre os nossos concidadãos pelo jogo normal dos egoísmos, ao contrário, tornava mais acentuado no coração dos homens o sentimento da injustiça."

Camus. A peste

Flagelos e vítimas

"Digo apenas que há neste mundo flagelos e vítimas e que é necessário, tanto quanto possivel, recusarmo-nos a estar com o flagelo. Isto parece a você talvez um pouco simples. Não sei se é simples, mas sei que é verdadeiro. (...)Foi assim que decidi pôr-me do lado das vítimas, em todas as ocasiões, para limitar os prejuízos. No meio delas, posso ao menos procurar saber como se chega à terceira categoria, isto é, à paz.


Ao terminar, Tarrou balançava a perna e batia levemente como pé no terraço. Depois de um silêncio, o médico soergueu-se um pouco e perguntou-lhe se tinha alguma ideia sobre o caminho que era preciso seguir para se chegar à paz.


-Tenho. A simpatia.

- Em resumo - disse Tarrou com simplicidade, o que me interessa é saber como alguém pode tornar-se um santo.


- Mas você não acredita em Deus...


- Justamente. Poder ser um santo sem Deus é o único problema concreto que tenho hoje.(...)


- Talvez - respondeu o médico -, mas, sabe, sinto-me mais solidário com os vencidos do que com os santos. Creio que não sinto atração pelo heroísmo e pela santidade. O que me interessa é ser um homem.


- Sim, buscamos a mesma coisa, mas eu sou menos ambicioso."


Albert Camus, in A peste.