domingo, 31 de janeiro de 2016

Criança

Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança. Mas por que deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com as mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, por que deitaram fora o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança a chorar, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a tristeza da criança o horror desprevenido do meu coração exausto. Doo-me com toda a estatura da vida sentida, e são minhas as mãos que torcem o canto do bibe, são minhas as bocas tortas das lágrimas verdadeiras, é minha a fraqueza, é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passa usam-me como luzes de fósforos riscados no estofo sensível do meu coração.

Bernardo Soares . O livro do desassossego.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Da Mitologia à filosofia

A mitologia  surge como uma tentativa  grega de elaborar um sentido para a existência humana e responder às questões primordiais do homem, tais como quem sou? de onde vim? para onde vou? Essa resposta foi dada através das narrativas mitológicas

.A explicação da origem e da manutenção do cosmos é o grande feito da mitologia. O cosmo é aquilo que nos cerca, a ordem estabelecida de todas as coisas  e a mitologia vai mostrar como o mundo saiu do caos para a existência. Dessa forma, se entende que há uma ordem no universo, mais do que isso, essa ordem estabelece um lugar específico para cada ser em sua estrutura. A reposta para uma vida boa então passa pela descoberta de qual é meu lugar, meu papel nesse cosmo e como me adequar à ele.

A filosofia vai beber dessa concepção mitológica de encontrar a felicidade em meio à ordem cósmica. A questão colocada será como encontrar a felicidade prescindindo das divindades? Como experimentar a vida boa nesse mundo? Essa será a busca da filosofia antiga, e para se construir essa vida boa, a maioria dos pensadores vão apontar a criação racional do mundo ético como saída para a vida boa. Ou seja, através da Razão, da reflexão e do discurso racional os homens poderiam construir um sentido para a vida que estivesse em acordo com o mundo. Para os antigos, esse sentido só podia ser construído através da aceitação da vida como algo trágico, assumindo assim o que de fato ela era, sem idealização, sem negação.

E esse pensamento de afirmação da vida tal como ela era favoreceu o desenvolvimento de toda a filosofia antiga. Nasce assim a necessidade da criação de uma ética, ou seja, da percepção dos gregos de que precisavam fazer escolhas em relação a si e ao todo social, A reflexão filosófica sobre a vida boa se tornará o caminho para esse processo.

Márcio Ramos

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

O final da queda

Se um homem cai de um avião no meio da noite
Apenas Deus pode segurá-lo.
Deus se mostra no meio da noite
E toca o homem e atenua o seu sofrimento.
Deus não limpa dele o seu sangue
Porque o sangue não é sua alma,
Deus não satisfaz o seu corpo
Porque um homem não é de carne.
Deus inclina-se sobre ele, ergue sua cabeça e observa
Em seus olhos o homem é uma criança
Enquanto desajeitado põe-se de quatro e tenta andar
E sente então que pode voar.
O homem está ainda confuso e não sabe
Que é bem melhor flutuar do que engatinhar.
Deus tem vontade de acariciar a sua cabeça
Mas espera, porque não quer
Assustar o homem
Com sinais de amor.
Se um homem cai de um avião no meio da noite
Apenas Deus conhece o final da queda.

Dahlia Rabikovitch

domingo, 10 de janeiro de 2016

A ARROGÂNCIA DA ORAÇÃO

Quando se chega ao limite do monólogo, aos confins da solidão, inventa-se — na falta de outro interlocutor — Deus, pretexto supremo de diálogo. Enquanto o nomeias, tua demência está bem disfarçada e… tudo te é permitido. O verdadeiro crente mal se distingue do louco; mas sua loucura é legal, admitida; acabaria em um asilo se suas aberrações estivessem livres de toda fé. Mas Deus as cobre, as torna legítimas. O orgulho de um conquistador empalidece comparado à ostentação do devoto que dirige-se ao Criador. Como se pode ser tão atrevido? E como poderia ser a modéstia uma virtude dos templos, quando uma velha decrépita, que imagina o Infinito a seu alcance, eleva-se pela oração a um nível de audácia ao qual nenhum tirano jamais aspirou?

Sacrificaria o império do mundo por um só momento em que minhas mãos juntas implorassem ao grande Responsável de nossos enigmas e de nossas banalidades. Entretanto, esse momento constitui a qualidade corrente — e como que o tempo oficial — de qualquer crente. Mas quem é verdadeiramente modesto repete a si mesmo: “Demasiado humilde para rezar, demasiado inerte para transpor o limiar de uma igreja, resigno-me à minha sombra e não quero uma capitulação de Deus ante minhas orações”. E aos que lhe propõem a imortalidade, responde: “Meu orgulho não é inesgotável: seus recursos são limitados. Pensam, em nome da fé, vencer seu eu; na realidade, desejam perpetuá-lo na eternidade, pois não lhes basta esta duração presente. Sua soberba excede em refinamento todas as ambições do século. Que sonho de glória, comparado ao seu, não se revela engano e vã ilusão? Sua fé é apenas um delírio de grandeza tolerado pela comunidade, porque utiliza caminhos camuflados; mas seu pó é sua única obsessão: gulosos do intemporal, perseguem o tempo que o dispersa. Só o além é bastante espaçoso para suas cobiças; a terra e seus instantes parecem demasiado frágeis. A megalomania dos conventos supera tudo o que jamais imaginaram as febres suntuosas dos palácios. Quem não admite sua nulidade é um doente mental. E o crente, entre todos, é o menos disposto a consentir. A vontade de durar, levada até tal ponto, apavora-me. Recuso-me à sedução malsã de um Eu indefinido. Quero chafurdar-me em minha mortalidade. Quero permanecer normal.”

(Senhor, dá-me a faculdade de jamais rezar, poupa-me a insanidade de toda adoração, afasta de mim essa tentação de amor que me entregaria para sempre a Ti. Que o vazio se estenda entre meu coração e o céu! Não desejo ver meus desertos povoados com Tua presença, minhas noites tiranizadas por Tua luz, minhas Sibérias fundidas sob Teu sol. Mais solitário do que Tu, quero minhas mãos puras, ao contrário das Tuas que sujaram-se para sempre ao modelar a terra e ao misturar-se nos assuntos do mundo. Só peço à Tua estúpida onipotência respeito para minha solidão e meus tormentos. Não tenho nada a fazer com Tuas palavras. Concede-me o milagre recolhido antes do primeiro instante, a paz que Tu não pudeste tolerar e que Te incitou a abrir uma brecha no nada para inaugurar esta feira dos tempos, e para condenar-me assim ao universo, à humilhação e à vergonha de existir.)

Emil Cioran, em Breviario da decomposição.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

DA ININSISTÊNCIA

O tempo, que não existe, tudo destrói.
Tudo corrói
Tudo.
O tempo tudo anula,
Tudo engole,
Tudo apaga,
Tudo arrasa
Tudo.
Caem os Impérios, revelam-se os mistérios,
Povoam-se ermitérios e nascem vivas,
ressurretas,
as almas mudas, esquecidas, dos cemitérios.
O nada explode,
O tudo encolhe,
O algo foge.
O burro aprende.
O inevitável suspende o seu olhar
E retrocede.
O maior inimigo, rendido, cede.
O Tempo tudo constrói
sobre os membros mortos das suas vítimas.

O Tempo, que não existe, insiste em ser,
e, não existindo, nele tudo insiste em converter.
 


Manuel Anastácio