sábado, 22 de dezembro de 2018

A  POESIA É UMA ARMA CARREGADA DE FUTURO


Quando  nada se espera de pessoalmente exaltante,mas se palpita e se continua para da consciência,ferozmente existindo, cegamente afirmando,como um pulso que lateja nas trevas,
quando se olham de frente
os 
claros olhos vertiginosos da morte,
dizem-se as 
verdades:
as bárbaras, 
terríveis, amorosas crueldades.

Dizem-se os 
poemas
que dilatam os pulmões de quantos, asfixiados,
pedem 
ser, pedem ritmo,
pedem 
lei para o que sentem excessivo.
Com a velocidade do instinto,com o raio do prodígio,como mágica evidência, converte-se o real
no 
idêntico a si mesmo.
poesia para o pobrepoesia necessária
como o pão de cada dia,como o ar que exigimos treze vezes por minuto,para ser e enquanto somos dizer um sim que glorifica.
Porque vivemos de vez em quando,porque mal nos deixamdizer que somos quem somos,nossos cantos não podem sem pecado ser um ornamento.
Estamos a 
tocar o fundo.

Maldigo a 
poesia concebida como um luxo
cultural 
pelos neutrais
que lavando as mãos, se desinteressam e evadem.
Maldigo a 
poesia de quem não toma partido até manchar-se.

Faço 
minhas as faltas. Sinto em mim quantos sofrem
canto ao respirar.Cantocanto, e a cantar para além de minhas mágoas
pessoais, fico maior.

Quisera dar-vos 
vidaprovocar novos actos,
e calculo 
por isso com técnicaque venço.
Sinto-me 
um engenheiro do verso e um operário
que com outros trabalha Espanha nos seus aços.
Assim é a minha poesia: poesia-ferramenta
e ao 
mesmo tempo pulsação do unânime e cego.Assim é, arma carregada de futuro expansivo
com que aponto ao peito.
Não é uma poesia gota a gota pensada.Nem um belo produtoNem um fruto perfeito.
É 
algo como o ar que todos respiramos
e é o 
canto que difunde o que dentro levamos.
São palavras que todos repetimos sentindocomo nossas, e voam. São mais que oque elas dizem.
São o mais necessário: o que possui um nome.São no céu, e, na terrasão actos. 

Gabriel Celaya

domingo, 4 de novembro de 2018

Minha mãe


Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fronte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.

Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão, que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu.

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Dize que eu parta, ó mãe, para a saudade.
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.
Vinicius de Moares

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Por quem os sinos dobram

“Nenhum homem é uma ilha;
cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra;
se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída,
como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio;
a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano.
E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

John Donne

domingo, 21 de outubro de 2018

Sou um vigarista, não um socialista

Ouça, primeiro vamos levantar um motim — apressava-se em demasia Vierkhoviénski, a todo instante agarrando Stavróguin pelo braço esquerdo. — Eu já lhe disse: vamos penetrar no seio do próprio povo. Sabe que já agora somos terrivelmente fortes? Os nossos não são apenas aqueles que degolam e ateiam fogo, e ainda fazem disparos clássicos ou mordem. Gente assim só atrapalha. Não concebo nada sem disciplina. Ora, sou um vigarista e não um socialista, eh, eh! Ouça, tenho uma relação de todos eles: o professor de colégio que ri com as crianças do Deus delas e do berço delas, já é dos nossos. O advogado que defende o assassino culto que por essa condição já é mais evoluído do que suas vítimas e que, para conseguir dinheiro, não pode deixar de matar, já é dos nossos. Os colegiais que matam um mujique para experimentar a sensação, são dos nossos. Os jurados que absolvem criminosos a torto e a direito são dos nossos. O promotor que treme no tribunal por não ser suficientemente liberal é dos nossos. Os administradores, os escritores, oh, os nossos são muitos, um horror, e eles mesmos não sabem disso!

Dostoiévski. Os demônios

sábado, 20 de outubro de 2018

Precisamos organizar a obediência

"Não precisamos de educação, chega de ciência! Já sem a ciência há material suficiente para mil anos, mas precisamos organizar a obediência. No mundo só falta uma coisa: obediência. A sede de educação já é uma sede aristocrática. Basta haver um mínimo de família ou amor, e já aparece o desejo de propriedade. Vamos eliminar o desejo: vamos espalhar a bebedeira, as bisbilhotices, a delação; vamos espalhar uma depravação inaudita; vamos exterminar todo e qualquer gênio na primeira infância. Tudo será reduzido a um denominador comum, é a plena igualdade. “Aprendemos o ofício, somos gente honesta, não precisamos de mais nada”—é essa a resposta recente dos operários ingleses. Só o indispensável é indispensável —eis a divisa do globo terrestre daqui para a frente. Mas precisamos também da convulsão; disso cuidaremos nós, os governantes. Os escravos devem ter governantes. Plena obediência, ausência total de personalidade(...)".

Dostoiévski. Os demônios.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

O corvo

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: "Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso 
Batestes, não fui logo, prestemente, 
Certificar-me que aí estais."
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro coa alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma cousa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso 
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento e nada mais."

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "O tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o corvo disse: "Nunca mais!"

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais".

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais".

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranquilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: "Nunca mais."

“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o corvo disse: "Nunca mais".

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!

Edgar Allan Poe

domingo, 14 de outubro de 2018

Como aa democracias morrem

"Surgira uma séria disputa entre o cavalo e o javali; então, o cavalo foi a um caçador e pediu ajuda para se vingar. O caçador concordou, mas disse: "Se deseja derrotar o javali, você deve permitir que eu ponha esta peça de ferro entre as suas mandibu las, para que possa guiá-lo com estas rédeas, e que coloque esta sela nas suas costas, para que possa me manter firme enquanto seguimos o inimigo." O cavalo aceitou as condições e o caçador logo o selou e bridou. Assim, com a ajuda do caçador, o cavalo logo venceu o javali, e então disse: "Agora, desça e retire essas coisas da minha boca e das minhas costas." "Não tão rápido, amigo", disse o caçador. "Eu o tenho sob minhas rédeas e es poras, e por enquanto prefiro mantê-lo assim."

"O javali, o cavalo e o caçador", Fábulas de Esopo.  Citada em Como as democracias morrem.

Fanatismo

O fanático
é como o fósforo:
alienado dentro da caixa,
serve a qualquer
causa incendiaria.

Sérgio Vaz. Colecionador de pedras.

Metamorfose

Para se transformar num verme
cometa injustiças,
ou então, 
aceite-as.

Sérgio Vaz. Colecionador de pedras.

sábado, 13 de outubro de 2018

Consciência e atitude

Que a pele escura
não seja escudo
para os covardes
que habitam na senzala
do silêncio.
Porque nascer negro é consequência.
Ser, é consciência.

Sérgio Vaz. Colecionador de pedras.

Os miseráveis

Vítor, nasceu no Jardim das Margaridas.
Erva daninha, nunca teve primavera.
Cresceu sem pai, sem mãe, sem norte, sem seta.
Pés no chão, nunca teve bicicleta.

Já Hugo, não nasceu, estreou.
Pele branquinha, nunca teve inverno.
Tinha pai, tinha mãe, caderno e fada madrinha.

Vítor virou ladrão, Hugo salafrário.
Um roubava pro pão, o outro, pra reforçar o salário.
Um usava capuz, o outro, gravata.
Um roubava na luz, o outro, em noite de serenata.
Um vivia de cativeiro, o outro, de negócio.
Um não tinha amigo: parceiro.
O outro, tinha sócio.

Retrato falado, Vítor tinha a cara na notícia,
enquanto Hugo fazia pose pra revista.
O da pólvora apodrece penitente, o da caneta
enriquece impunemente.
A um, só resta virar crente, o outro, é candidato a presidente.

Sérgio Vaz. Colecionador de pedras

domingo, 30 de setembro de 2018

Ter ideia é mais difícil do que ser violenta

"Deixei de compreender! Mas será que compreendes, grito para ele, será que compreendes que se vocês põem a guilhotina no primeiro plano e com tamanho entusiasmo é porque cortar cabeças é a coisa mais fácil, ao passo que ter idéias é a coisa mais difícil."

Dostoiévski em "Os demônios"


Vida eterna

Você passou a acreditar na futura vida eterna? — Não, não na futura vida eterna, mas na vida eterna aqui. Há momentos, você chega a esses momentos, em que de repente o tempo para e acontece a eternidade.

Dostoiévski em "Os demônios".

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Os deuses e o medo.

Todos os deuses que recebem homenagem são cruéis. Todos os deuses distribuem sofrimento sem motivo. De outro modo não seriam cultuados. Pelo sofrimento indiscriminado os homens conhecem o medo, e o medo é a mais divina das emoções. É a pedra para os altares e o princípio da sabedoria.

Zora Neale Hurston. "Seus olhos viam Deus".

domingo, 26 de agosto de 2018

A recoleta

Convencidos da caducidade
por tantas nobres certezas do pó,
demoramo-nos e baixamos a voz
entre as lentas filas de panteões,
cuja retórica de sombra e mármore
promete ou prefigura a desejável
dignidade de estar morto.
Belos são os sepulcros,
o claro latim e as enlaçadas datas fatais,
a conjunção do mármore e da flor
e as pequenas praças com frescura de pátio
e os muitos ontens da história
hoje detida e única.
Enganamos essa paz com a morte
e cremos almejar nosso fim
e almejamos o sonho e a indiferença.
Vibrante nas espadas e na paixão
e adormecida na hera,
só a vida existe.
O espaço e o tempo são formas suas,
são instrumentos mágicos da alma,
e quando esta se apagar
com ela se apagará o espaço, o tempo e a morte,
como ao cessar a luz
se extingue o simulacro dos espelhos
que a tarde foi apagando.
Sombra benigna das árvores,
vento com pássaros que sobre os ramos ondeia,
alma que se dispersa em outras almas,
teria sido um milagre deixarem de ser,
milagre incompreensível,
ainda que sua imaginária repetição
desminta com horror nossos dias.
Estas coisas pensei na Recoleta
no lugar de minha cinza.

Jorge Luis Borges

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Eu amo tudo que foi

Eu amo tudo o que foi,

Tudo o que já não é,

A dor que já me não dói,

A antiga e errónea fé,

O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria

Só porque foi, e voou

E hoje é já outro dia.


Fernando Pessoa

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Quem me leva os meus fantasmas


De que serve ter o mapa se o fim está traçado, 
De que serve a terra à vista se o barco está parado, 
De que serve ter a chave se a porta está aberta, 
Pra que servem as palavras se a casa está deserta? 

Aquele era o tempo em que as mãos se fechavam 
E nas noites brilhantes as palavras voavam 
E eu via que o céu me nascia dos dedos 
E a Ursa Maior eram ferros acesos 

Marinheiros perdidos em portos distantes 
Em bares escondidos em sonhos gigantes 
E a cidade vazia da cor do asfalto 
E alguém me pedia que cantasse mais alto 

Quem me leva os meus fantasmas? 
Quem me salva desta espada? 
Quem me diz onde é a estrada? 

Aquele era o tempo em que as sombras se abriam 
Em que homens negavam o que outros erguiam 

E eu bebia da vida em goles pequenos, 
Tropeçava no riso, abraçava de menos. 
De costas voltadas não se vê o futuro 
Nem o rumo da bala nem a falha no muro 

E alguém me gritava com voz de profeta 
Que o caminho se faz entre o alvo e a seta. 

Quem leva os meus fantasmas? 
Quem me salva desta espada? 
Quem me diz onde é a estrada? 
Quem leva os meus fantasmas? 
Quem leva os meus fantasmas? 
Quem me salva desta espada? 
E me diz onde é a estrada 

Quem leva os meus fantasmas? 
Quem me salva desta espada? 
Quem me diz onde é a estrada? 
Quem leva os meus fantasmas? 
Quem leva os meus fantasmas? 
Quem leva? 

domingo, 12 de agosto de 2018

Mora comigo

Mora comigo na minha casa
Um rapaz que eu amo
Aquilo que ele não me diz porque não sabe
Vai me dizendo com o seu corpo
Que dança pra mim
Ele me adora e eu vejo através de seus olhos
O menino que aperta o gatilho do coração
Sem saber o nome do que pratica 
Ele me adora e eu gratifico
Só com olhos que eu vejo
Corto todas as cebolas da casa
Arrasto os móveis, incenso
Ele tem um medo de dizer que me ama
E me aperta a mão 
E me chama de amiga.

Luiz Carlos Lacerda

terça-feira, 31 de julho de 2018

Obedecer é mais fácil do que entender

"O que ele explicado mandou, eu fui e principiei; que obedecer é mais fácil do que entender.Era? Não sou cão, não sou coisa. Antes isto, que sei, para se ter ódio da vida: que força a gente a ser filho-pequeno de estranhos... Ah, o que eu não entendo, isso é que é capaz de me matar... "

João Guimarães Rosa. Grande sertão veredas

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Soneto 91

A uns, o berço dá a glória, a outros, o talento,
A uns, a riqueza, a outros, a força,
A uns, as vestes, mesmo espaventosas,
A uns, suas águias e cães, a outros, seus cavalos,
E todo humor provê o seu próprio prazer,
Vendo alegria acima de tudo o mais;
Mas essas questões de nada me servem;
Supero tudo isso com um único trunfo.
Teu amor é mais que um berço de ouro,
Mais rico que a riqueza, mais caro do que roupas,
Mais prazeroso que águias e cavalos;
E tendo a ti, desdenho de todo o humano orgulho –
Apenas triste por um motivo: que possas privar-me
De tudo, tornando-me o mais infeliz.

William Shakespeare

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Os muros nossos de cada dia.

A semelhança de outros tempos, o mundo contemporâneo é modelado e condicionado profundamente por essa forma ancestral da vida cultural, jurídica e política que são a clausura, o cercamento, o muro, o campo, o cerco e, no fim das contas, a fronteira. São recuperados por todo lado processos de diferenciação, classificação e hierarquização para fins de exclusão, expulsão e erradicação. Novas vozes se erguem para proclamar que o universal humano ou não existe ou se limita ao que é comum não a todos os homens, mas apenas a alguns deles.

Achile Mbembe. Crítica da razão negra.

sábado, 7 de julho de 2018

Soneto 64

Ao ver a cruel mão do tempo apagar
Dos ricos o orgulho graças à decadência da idade;
Quando, por vezes, as altas torres são destruídas,
E o eterno escravo do metal entregue à mortal ira;
Ao ver o oceano faminto ganhar
Vantagem sobre os domínios das encostas;
E a terra firme avançar sobre o braço de água,
Equilibrando-se entre as perdas e ganhos;
Ao ver tal mudança de condição,
Ou a própria condição confundida, a decair,
Assim ensinou-me a pensar a ruína:
Que o tempo virá e levará o meu amor.
Este pensamento é mortal, sem outra escolha
Senão lamentar ter o que se teme perder.

William Shakespeare