sábado, 31 de maio de 2014

O Tédio. O livro do desassossego.

Soneto de Homenagem

de Antero de Quental,

Se há nesta vida um Deus para os acasos,
Que pela humanidade o bem reparte
Que te dê da fortuna a melhor parte
Que venturas te dê, sem lei nem prazos.

Eu, de alegrias tenho os olhos rasos
de lágrimas, querida, ao vir brindar-te
Quando vejo que até para saudar-te,
As flores se debruçam sobre os vasos.

O meu brinde é sumário, curto e breve
Se o nome que se quer, quando se escreve
Move-se a pena com traços ideais.

Um anjo como tu, quando se brinda
Tem-se a missão cumprida e a festa finda
Quebra-se a taça e não se bebe mais

domingo, 25 de maio de 2014

O Amor em paz

Eu amei,
E amei ai de mim muito mais
Do que devia amar
E chorei
Ao sentir que iria sofrer
E me desesperar

Foi então
Que da minha infinita tristeza
Aconteceu você
Encontrei em você
A razão de viver
E de amar em paz
E não sofrer mais,
Nunca mais
Porque o amor
É a coisa mais triste
Quando se desfaz
O amor é a coisa mais triste
Quando se desfaz

Vinicius de Moraes

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Jung

“Que eu faça um mendigo sentar-se à minha mesa, que eu perdoe aquele que me ofende e me esforce por amar, inclusive o meu inimigo, em nome de Cristo, tudo isto, naturalmente, não deixa de ser uma grande virtude. O que faço ao menor dos meus irmãos é ao próprio Cristo que faço. Mas o que acontecerá, se descubro, porventura, que o menor, o mais miserável de todos, o mais pobre dos mendigos, o mais insolente dos meus caluniadores, o meu inimigo, reside dentro de mim, sou eu mesmo, e precisa da esmola da minha bondade, e que eu mesmo sou o inimigo que é necessário amar?”

(Carl Gustav Jung, volume XI, parágrafo 520)

O Dia mais banal


Ainda que você não me conheça e minha língua não entenda,
Quero hoje te escrever, porque este velho mundo está dilacerado
E ainda que nunca te tenha visto, sinto-me muito igual a você
Ainda que sejamos moedas de valor, desvalorizadas por uma realidade miserável,
Somos nesta vida pétalas caídas de uma mesma flor.
Se de vez em quando é você a perdoar a si mesmo,
Se crê em outras religiões
Ou não encontrou ainda Deus e ainda assim o amaldiçoa
Às vezes com ferocidade, por ter perdido a confiança,
O seu sangue, no entanto, queima como o meu.
Ainda que te tenham convencido de que o amor
É a mais mentirosa das verdades,
Se é ainda prisioneiro de um erro que lhe fez apenas mal,
Bom Natal,
Desconhecido irmão distante
Desejo-lhe um bom Natal
Daqui do meu ceuzinho italiano
Não odeie quem quer roubar o seu futuro
Retribua com o bem o mal
Bom Natal
Ainda que a guerra esteja no ar
E todo o mundo se circunde de fronteiras sem liberdade;
Ainda que aos pobres nada reste se não fome e ardis,
Restos dos países ricos, migalhas de generosidade,
Uma mensagem chega ainda das pessoas que todo dia
Ajudam os que não conseguem;
Pela vida que renasce num estábulo,
Por um coração universal,
Bom Natal,
Desarmado irmão distante
Desejo-lhe um bom Natal
E a luz de um campo de trigo.
Não faça isso, não jogue fora este punhado de sonho
E, ainda que você desligue ou mude de canal,
Bom Natal
Ainda que sem um trabalho e sem dignidade,
Ainda que você esteja entupido de felicidade,
Se nesta noite, como que de presente,
Você se encontra só num leito de hospital,
Bom Natal
A um século que morre,
Bom Natal
Meu irmão, não desista jamais;
Corra você também atrás daquela estrela
A vida é uma grande mãe que te embala
Com seu hálito imortal e um oceano de amor
Mesmo sem árvore e presentes para abrir
Mesmo sem toda essa festa artificial
Fosse, como os outros dias,
O dia mais banal,
Bom Natal.
Marco Masini, 1999

Ideais

Os outros meninos, um queria ser médico, outro pirata, outro engenheiro ou advogado, ou general. Eu queria ser um pajem medieval... 
Mas isso não é nada. Pois hoje eu queria ser uma coisa mais louca: eu queria ser eu mesmo!

Mario Quintana

Fernando Pessoa

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade como a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva…

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica…
Assim é e assim seja…

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

A Opinião Alheia

Na realidade, o valor e a preocupação constante que atribuímos à opinião alheia ultrapassam, em regra, quase todo o objectivo ponderado, de modo que ela pode ser vista como uma espécie
de mania generalizada ou, antes, inata.


Em tudo o que fazemos ou deixamos de fazer, levamos em consideração a opinião alheia quase antes de qualquer outra coisa, e se fizermos uma análise precisa veremos que dessa preocupação nasce praticamente a metade de todas as aflições e de todos os temores sentidos por nós. Pois a opinião alheia é a origem de todo o nosso amor próprio - muitas vezes magoado por ter uma sensibilidade doentia -, de todas as nossas vaidades e pretensões, bem como de nosso fausto e de nossa presunção.

Arthur Schopenhauer, in 'A Arte de Insultar'

RECORDO AINDA

Mario Quintana

Recordo ainda... e nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...
Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...
Estrada afora após segui... Mas, aí,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:
Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai!...
Que envelheceu, um dia, de repente!..

segunda-feira, 19 de maio de 2014

A ave sai do ovo...

" A ave sai do ovo. O ovo é o mundo.Quem quiser nascer
tem que destruir um mundo; destruir no sentido de romper
com o passado e as tradições já mortas, de desvincular-
se do meio excessivamente cômodo e seguro da infância
para a conseqüente dolorosa busca da própria razão do
existir: ser é ousar ser."
Herman Hesse, In Demian

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Haver

Vinicius de Moraes

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe. 

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza 
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história. 

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa 
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa 
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade 
De aceitá-la tal como é, e essa visão 
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.
15/04/1962

A poesia acima foi extraída do livro "Jardim Noturno - Poemas Inéditos", Companhia das Letras - São Paulo, 1993, pág. 17.

domingo, 4 de maio de 2014

Enigmas

Me tendes perguntado que fia o crustáceo entre
as suas patas de ouro e vos respondo: O mar o sabe.
Me dizeis o que espera a ascídia em seu sino transparente?
Que espera? Eu vos digo, espera como vós, o tempo.
Me perguntais a quem alcança o abraço da alga Macrocustis?
Indagai-o, indagai-o a certa hora, em certo mar que eu conheço.

Sem dúvida me perguntareis pelo marfim maldito
do narval, para que eu vos responda
de que modo o unicórnio marinho agoniza arpoado.
Me perguntais talvez pelas plumas alcionárias que tremem
nas puras origens da maré astral?
E sobre a construção  cristalina do pólipo tereis
embaralhado, sem dúvida
uma pergunta a mais, debulhando-a agora?
Quereis saber a elétrica matéria das puas do fundo?
A armada estalactita que caminha se quebrando?
O anzol do peixe pescador, a música estendida
na profundidade como um fio na água?

Eu quero dizer-vos que isto o sabe o mar,
que a vida em suas arcas
é vasta como a areia, inumerável e pura
e entre as uvas sanguinárias o tempo poliu
a dureza duma pétala, a luz da medusa
e debulhou o ramo de suas fibras corais
de uma cornucópia de nácar infinito.

Eu não sou mais do que a rede vazia que mostra
olhos humanos, mortos naquelas trevas,
dedos acostumados ao triângulo, medidas
de um tímido hemisfério de laranja.

Andei como vós escarvando
a estrela interminável,
e na minha rede, à noite, acordei nu,
única presa, peixe encerrado no vento.

Pablo Neruda

(de Canto Geral, parte XIV: O Grande Oceano)

Elogio ao amor

"Declarar o amor significa passar do evento-encontro para o começo de uma construção de verdade. É fixar o acaso do encontro na forma de um começo. E o que começa a partir daí não raro dura tanto tempo, é tão carregado de novidade e experiência de mundo, que, retrospectivamente, não parece nem um pouco contingente e casual, como no princípio, mas praticamente uma necessidade. Assim o acaso é fixado: a absoluta contingência do encontro com alguém que eu não conhecia passa a assumir os ares de um destino. A declaração de amor é a passagem do acaso para o destino, e é por isso que ela é tão perigosa, tão carregada de uma espécie de terrível nervosismo. A declaração de amor, aliás, não acontece necessariamente uma única vez. Ela pode ser longa, difusa, confusa, complicada, declarada e redeclarada, e fadada a ser redeclarada. É o momento em que o acaso se fixa.O momento em que dizemos: vou declarar ao outro o que aconteceu, o encontro, os episódios desse encontro. Vou declarar que aconteceu aqui, pelo menos para mim, algo que me compromete. É isto: eu te amo", do Elogio ao Amor , do Alain Badiou.

sábado, 3 de maio de 2014

A perfeição

" De que adianta a comida ser bem-feita, com carinho, no intuito de alimentar quem se ama?
— De nada, você usou salsinha e usar salsinha é pecado mortal contra mim.
— De que serve querer a vida saudável, o esporte, a endorfina pelo corpo?
— De nada, você não alcançou as marcas que acho dignas.
— De que vale o riso, a alegria, o humor que nos aproxima?
— De nada, você riu uma vez da coisa errada e vou te lembrar disso para sempre.
— De que serve a devoção, o cuidado, o interesse genuíno em construir uma relação?
— De nada, você não me adora prostrado no chão.
— De que vale buscar o caminho do meio, a consciência, a sabedoria, o aprendizado ao longo dos anos?
— De nada, se você não está pronto para ser perfeito agora.

e assim não aceitamos nada que não seja perfeito."

Tom Fernandes
http://tomfernandes.wordpress.com/2013/11/06/da-arte-da-perfeicao/

O tempo

" O tempo tem uma boca imensa. Com sua boca do tamanho da eternidade ele vai devorando tudo, sem piedade. O tempo não tem pena.Mastiga rios, árvores, crepúsculos. Tritura os dias, as noites, o sol, a lua, as estrelas. Ele é dono de tudo. Pacientemente ele engole todas as coisas, degustando nuvens, chuvas, terras, lavouras. Ele consome as histórias e saboreia os amores. Nada fica para depois do tempo. As madrugadas, os sonhos, as decisões, duram pouco na boca do tempo."

Bartolomeu Campos Queirós, in, Por parte de Pai.