domingo, 30 de julho de 2017

Sobre mentir a si mesmo

(...) Sobretudo, não minta ao senhor mesmo. Aquele que mente a si mesmo e escuta a sua própria mentira vai ao ponto de não mais distinguir verdade, nem em si, nem em torno de si; perde pois o respeito de si e dos outros. Não respeitando ninguém, deixa de amar; e para se ocupar, e para se distrair, na ausência de amor, entrega-se às paixões e aos gozos grosseiros; chega até a bestialidade em seus vícios, e tudo isso provém da mentira continua a si mesmo e aos outros. Aquele que mente a si mesmo pode ser o primeiro a ofender-se. É, por vezes, bastante agradável ofender a si mesmo, não é verdade? Um indivíduo sabe que ninguém o ofendeu, mas ele mesmo, mas que ele mesmo forjou uma ofensa e mente para embelezar, enegrecendo de propósito o quadro, que se ligou a uma palavra e fez dum montículo uma montanha — e ele próprio sabe, portanto é o primeiro a ofender-se, até o prazer, até experimentar uma grande satisfação, e por isso mesmo chega ao verdadeiro ódio.

— Fiódor Dostoiévski, in Os Irmãos Karamazov (discurso do Stáriets) - pág 527. Ed. Nova Aguilar.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Ismália

Quando Ismália enlouqueceu
Pôs-se na torre a sonhar
Viu uma lua no céu
Viu outra lua no mar


No sonho em que se perdeu
Banhou-se toda em luar
Queria subir ao céu
Queria descer ao mar


E num desvario seu
Na torre pôs-se a cantar
Estava perto do céu
Estava longe do mar


E como um anjo pendeu
As asas para voar
Queria a lua do céu
Queria a lua do mar


As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par
Sua alma subiu ao
Seu corpo desceu ao mar.

Alphonsus Guimarães

Guerra

Os homens de guerra são o flagelo do mundo. Lutamos contra a natureza e a ignorância, contra obstáculos de toda espécie, para tornar menos dura a nossa mísera vida. Existem homens, benfeitores, cientistas, que consomem sua existência a trabalhar, a procurar o que pode ajudar, o que pode socorrer, o que pode servir de alívio a seus irmãos. Continuamente imersos em sua útil tarefa, acumulam descobertas, ampliam os horizontes da mente humana, enriquecem o património da Ciência, dedicam à sua pátria, a cada dia, bem-estar, abundância, força.

Vem a guerra. Em seis meses, os generais destruíram vinte anos de esforços, paciência e génio.

Guy de Maupassant, citado por Liev Tolstoi em "O reino de Deus está em vós".

quarta-feira, 26 de julho de 2017

O Enterrado Vivo

de Carlos Drummond de Andrade


É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.
É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.
É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.
É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.
Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência


segunda-feira, 24 de julho de 2017

Angústia

Nada está adquirido nunca, nada está prometido nunca, senão a morte. Por isso só se pode escapar à angústia aceitando isso mesmo que ela percebe, que ela recusa e que a transtorna. O quê? A fragilidade de viver, a certeza de morrer, o fracasso ou o pavor do amor, a solidão, a vacuidade, a eterna impermanência de tudo... Essa é a vida mesma, e não há outra. Solitária sempre. Mortal sempre. Pungente sempre. E tão frágil, tão fraca, tão exposta!

André Comte-Sponville, em Bom dia, Angústia.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

EU TE AMO

O que eu tenho pra te falar
não é de comer,
mas devora a carne

não é de beber,
mas é de embriagar
não se deve ouvir
nem se calar

nem sorrir
nem gargalhar

não é sobre o fogo
mas queima como o inferno
não se diz com a boca
se diz com a pele

não é sobre a morte
nem sobre a vida
é sobre a eternidade

não é proibido nem permitido
não é calor nem neve
não é beijo partido
nem carícia de leve

não é sobre o vento
redemoinhos
coisas de duvidar

não é infinito
ora dura um século
ora dura uma eternidade

mas se diz apenas em um segundo:
eu te amo.

sergio vaz

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Moinho do tempo

Pé de meia sempre vazio.
Vazios os armários
Seus mistérios desmentidos.


Fechaduras arrebentadas, arrancadas.
Velhas gavetas de antigas
mesas de austeras salas vazias.
Os lavrados que guardavam,
vendidos, empenhados,
sem retorno.
As velhas gavetas
guardam sempre um refugo de coisas
que se agarram às casas velhas e acabam mesmo nos monturos.
As velhas gavetas
têm um cheiro nojento de barata.


As arcas desmanteladas.
Os baús amassados.
Os abastos resumidos.
A fornalha apagada.
Economizado o pau de lenha.
Pelos cantos as aranhas
diligentes, pacientes, emaranham teias.
E a casa grande se apagando,
caindo lance a lance, seus muros de taipa.
E um gato miau, fedendo pelos cantos.


E a gente se apegava aos santos,
tão distantes…


Rezava. Rezava, pedia, prometia…
O tempo foi passando,
os santos, cansados, enfastiados
economizando os milagres do passado.
No fim os compradores de antiguidades
acabaram mesmo levando os oratórios
e os santos, que fossem de madeira,
dando lugar à TV, ao Rádio RCAVictor de sete faixas.


A gente era moça do passado.
Namorava de longe, vigiada.
Aconselhada. Doutrinada dos mais velhos,
em autoridade, experiência, alto saber.
“Moça para casar não precisa namorar,
o que for seu virá”.
Ai, meu Deus! e como custava chegar…
Virá! Virá!… Virá, virá… quando?
E o tempo passando e o moinho dos anos moendo,
e a roda-da-vida rodando… Virá-virá!
A gente ali, na estaca, amarrada, consumida
de Maria Borralheira, sem madrinha-fada,
sem sapatinho perdido,
sem arauto de príncipe-rei, a procurar
pelos reinos da cidade de Goiás
o pezinho faceiro do sapatinho de cristal,
caído na correria da volta.


A igreja, refúgio e confessionário antigo.
O frade, velho e cansado. Frei Germano, piedoso,
exortando paciente e severo. “Minha filha, a virgindade
é um estado agradável aos olhos de Deus. Olha as santas virgens,
Santa Terezinha de Jesus, Santa Clara, Santa Cecília,
Santa Maria Mãe de Jesus. Deus dá uma proteção especial às virgens.
Reza três ave-marias e uma salve rainha a Nossa Senhora e vai comungar”.


A gente saía confortada, ouvia a missa,
cumpria a penitência e comungava humildemente, ajoelhada,
véu na cabeça em modéstia reforçada.


Depois, depois, a solidão de solteira, o sonho honesto de um noivo,
o desejo de filhos,
presença de homem, casa da gente mesma, dona ser. Um lar.
Estado de casada.


A pobreza em toda volta, a luta obscura
de todas as mulheres goianas. No pilão, no tacho,
fundindo velas de sebo, no ferro de brasas de engomar.
Aceso sempre o forno de barro.
As quitandas de salvação, carreando pelos taboleiros
os abençoados vinténs, tão valedores, indispensáveis.
Eram as costuras trabalhadas,
os desfiados, os crivos pacientes.
A reforma do velho, o aproveitamento dos retalhos.
Os bordados caprichados, os remendos instituídos,
os cerzidos pacientes…
Tudo economizado, aproveitado.
Tudo ajudava a pobreza daquela classe média, coagida, forçada
a manter as aparências de decência, compostura, preconceito,
sustentáculos da pobreza disfarçada.
Classe média do após treze (13) de maio.
Geração ponte, eu fui, posso contar.


O poço d’água, a maravilhosa servidão da casa.
Toda a família na dependência do poço, da corda, do balde.
A água lá no fundo, cisterna, também chamada.
Um dia, dia incerto e já previsto o desastre, o transtorno.
Todos atingidos, impressionados, participantes,
da porta da rua ao fundo do quintal. Arrebentou a corda do poço…
gasta e cansada, exausta da sua resistência.
Corda vigente, corda de arrocho, corda de enforcar,
lá se foi com seu pedaço, agarrada ao balde, descansar
no fundo profundo do poço.


A casa toda assanhada, informa: arrebentou a corda do poço.
Vamos tentar a retirada de salvação geral.
Todos participantes, impressionados, coniventes na salvação
do balde, o resto da corda.
A vizinha de lado comparece por cima do muro, oferece seu balde,
dá palpites, solidária.


Uma longa vara, um gancho na ponta a vasculhar
o fundo escuro, em passeio lento e paciente. Assistência,
a torcida geral. Afinal, ponta e gancho enlaçam o que desceu
e sobem triunfante. Faz-se a emenda com perícia,
gente antiga, afeita a essa e outras emergências.
Cada qual aos seus interesses e, volta a casa
a rotina da vida do passado.


Tanta pobreza a contornar.
Tanto sonho irrealizado, tanto abandono.
Tanta água de sonho puxado do poço da imaginação…


Valiam as velhas, seus adágios de sustentação:
Conter e reprimir as jovens, dar-lhes esperanças,
ensinar-lhes a paciência, a vontade de Deus.
E a gente a querer abrir uma brecha naquela muralha
parda de pobreza e limitação.


Hoje sobrará para todos mil cruzeiros.
Me faltando sempre o vintém da infância. Bem por isso
mandei fazer um broche de um vintém de cobre
e preguei no meu vestido do lado do coração.


Sentir a presença daquele vintém
pobre da minha infância, tão procurado, tão escasso!…
Sentir a metade daquela bolacha que repartia comigo
o carinho da minha bisavó, na sua pobreza mansa.
Estender de novo minhas pequenas mãos de criança
para as quitandas, broinhas, brevidades
e biscoitos que me dava tia Nhorita,
ela, se findando numa velhice tão bonita
como outra igual não vi.
Seu sorriso de Mona Lisa,
seu mistério de Gioconda.
Ter nos meus braços aquela boneca de loiça vinda de Paris,
de chapeuzinho, enfeite, sua flor minúscula, azul, lá da França.
Sapatinhos e meias, loira, olhos azuis e que dormia…
e que nunca foi minha.
Eu vivia aquela boneca, sonhava e ela sempre ali, inacessível,
na estática da vitrine envidraçada da loja de “Seu” Cincinato.


Voltar à infância… Voltar ao paraíso perdido
de uma infância pobre que pedia tão pouco!
Menino Jesus, sorridente no oratório.
Uma bolinha azul nas mãos poderosas sustentando o mundo.
Ele, tão pequenino e frágil.
Tantos santinhos pobres me protegendo,
tantas velhas me ensinando as regras da vida…
Eu era cega, ceguinha, peticega, sem nada ver.
Mouca, surda,
surdinha, sem nada ouvir…
Chegar hoje a essa evocação dolorida e rude…


Meu vintém de cobre! Arrebentar todas as amarras
e contenções represadas.
Meu vintém! está comigo nestas páginas de escrever.


– Cora Coralina, no livro “Vintém de Cobre”. São Paulo: Global Editora, 2012.


segunda-feira, 10 de julho de 2017

Porque era ele, porque era eu


Entregar-se à relação com um amigo é observar-se num espelho pouco generoso
Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo, 28 Agosto 2016
João deitou a cabeça no peito de Jesus. Era a confiança absoluta no Mestre durante a última ceia. Poucas horas depois, o gesto era retribuído e magnificado: Jesus entregou-lhe a guarda da pessoa mais importante. “Filho, eis aí tua mãe”. A cena sob a Cruz mostra algo sublime: a amizade tornara João parte da família. 
Amizades surgem entre pessoas que se admiram. A estreita relação entre os filósofos Montaigne e Étienne de la Boétie resulta numa das mais belas frases já escritas sobre este tipo de afeto. Nos seus ensaios, o nobre tenta explicar por que amava La Boétie. Só consegue dizer que a causa central era “porque era ele, porque era eu”. O autor dos Ensaios reconhece que, na especificidade absoluta do outro, está a chave da fusão elevada a que chamamos amizade. 
A cabeça pendente de João e a afirmação de Montaigne mostram que a amizade encontra um campo além da razão: algo entre a fraternidade adotada e a entrega ao mistério da afinidade afetiva. Fraternidade adotada porque o amigo torna-se um irmão por desejo recíproco. O mistério da afinidade afetiva porque, diante do amigo, torno-me, de fato, quem sou. Não existe uma racionalidade que abarque isso. A amizade é uma epifania lenta. 
Há pedras no caminho. Amigos também possuem egos e as circunstâncias, por vezes, sufocam tudo. Desde que se conheceram na Paris ocupada, Sartre e Camus perceberam uma atração afetiva imediata. Já admiravam a obra um do outro. Dois homens diferentes: Sartre, burguês e bem formado; Camus de família pobre e nascido na Argélia. Também havia o fato de que o parisiense se esforçava muito para agradar às mulheres, mas era feio como uma cólica. Camus era bonito, mas sem a lábia retórica do autor de A Náusea. Havia uma admiração recíproca e uma concorrência entre ambos. Sartre apoiou a URSS mais do que Camus gostaria e as conversas foram ficando ácidas. Numa carta endereçada à revista que Sartre dirigia (Les Temps Modernes), ocorreu o afastamento definitivo. Sartre respondeu no mesmo número com um texto muito duro, duvidando até da capacidade de compreensão filosófica do ex-amigo. A trágica morte de Camus impediu uma reaproximação. Sartre escreveu um lindo obituário. A morte vencera o ego. 
Vaidades e disputas afastam amigos. Alguns afirmam que ex-amigos, de fato, nunca foram amigos de verdade. 
Ocorrera algo similar no Brasil. Oswald de Andrade jogou sobre Mário de Andrade duas palavras que evisceravam os pontos mais dolorosos do autor de Macunaíma: chamou-o de “boneca de pixe”. Atacando Mário como mulato e homossexual, Oswald causou uma ferida que nunca cicatrizou. Amigos se aproximam do coração e, quando isto resulta em estocada, ela quase sempre é fatal. Amigos baixam a guarda uns para os outros e este setor não defendido, ao ser flechado, magoa como poucas coisas. 
Talvez a amizade seja sempre um desafio. Entregar-se à relação com um amigo é observar-se num espelho pouco generoso. Os amigos nos conhecem e, para eles, as cenografias sociais são inúteis. Sim, nossos amigos nos amam, e nos conhecem, e nunca saberemos se nos amam por nos conhecer ou apesar de nos conhecer. Mas a entrega à amizade intensa é uma entrega a uma jornada de intimidade e apoio. 
O olhar do amigo não tem a doçura absoluta do materno e escapa do tom acre e ressentido do inimigo. Assim, longe do mel estrutural e do fel defensivo, é um olhar de sinceridade. Para ter um amigo, preciso de condições específicas. Eu identificaria três fundamentais. 
A primeira é a capacidade de se observar e continuar em frente. Uma conversa genuína com um amigo é uma dissecação anatômica da minha alma. Nem todos conseguem isso. Não é fácil atender ao preceito socrático: conhece a ti mesmo. Na minha experiência, conhecer aos outros é infinitamente mais fácil do que conhecer a si. Se os filósofos já garantiram que homens maus não possuem amigos, mas apenas cúmplices, eu acrescentaria que pessoas superficiais possuem apenas colegas e conhecidos, mesmo que os denominem amigos. 
A segunda é o tempo. Não se criam amigos de um dia para o outro. Amigos demandam história, repertório de casos, vivências em conjunto. Amigos precisam viajar juntos. Assim, os afetos integram as vidas das respectivas famílias. Amigos acompanham nossos sucessos e fracassos amorosos, choram e riem com nossa biografia. Quem adicionei ontem na minha rede social é um fantasma, um fóton, jamais um amigo. Amigos precisam de cultivo constante. Todo amigo é, dialeticamente, um frágil bonsai e frondoso carvalho.
A terceira é o controle do próprio orgulho. A mais espaçosa dama da alma é a vaidade. Quando ela preenche o ambiente, sobram poucos assentos livres. Pessoas vaidosas são frágeis e temem a entrega da amizade. O amor é privilégio de maduros, dizia Carlos Drummond. Talvez a amizade também o seja. Talvez não seja apenas para maduros, mas, com certeza, é um privilégio. Encerro com o conselho sábio dado por um tolo. Polônio prescreve ao filho Laertes (peça Hamlet): “Os amigos que tens por verdadeiros, agarra-os a tu’alma em fios de aço; mas não procures distração ou festa com qualquer camarada sem critério”. O cortesão infeliz sintetiza tudo o que tentei escrever aqui. Já falou com seu amigo hoje? Um bom domingo a todos vocês! 


Fé, Cetismo e alegria

"O fato de um crente ser mais feliz que um cético não quer dizer muito mais que o fato de um homem bêbado ser mais feliz que um sóbrio".

George Bernard Shaw

terça-feira, 4 de julho de 2017

Não tenhas nada nas mãos

Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,

Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo ultimo,

Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.

Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?

Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?

Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra

Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada?

Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.

Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.

19-6-1914
Ricardo Reis

Ricardo Reis

Não só vinho, mas nele o olvido, deito
Na taça: serei ledo, porque a dita
É ignara. Quem, lembrando
Ou prevendo, sorrira?
Dos brutos, não a vida, senão a alma,
No impalpável destino
Que não 'spera nem lembra.
Com mão mortal elevo à mortal boca
Em frágil taça o passageiro vinho,
Baços os olhos feitos
Para deixar de ver.

Ricardo Reis, 13-6-1926

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Travessia

Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.

João Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas.

Deus

 Como não  ter Deus?! Com Deus existindo tudo dá esperança: sempre um milagre é possí­vel, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar, é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor.


João Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas. 




domingo, 2 de julho de 2017

O Crime de Existir


É um fato deveras notável e realmente digno de atenção, que o objeto de toda a alta poesia seja a representação do lado medonho da natureza humana, a dor sem nome, os tormentos dos homens, o triunfo da maldade, o domínio irônico do acaso, a queda irremediável do justo e do inocente: é este um sinal notável da constituição do mundo e da existência... Não vemos nós na tragédia os entes mais nobres, após longos combates e prolongados sofrimentos, renunciarem para sempre aos desígnios que até ali perseguiam com violência, ou desviarem-se de todos os gozos da vida voluntariamente e com prazer: como o príncipe de Calderon; Gretchen no Fausto, Hamlet a quem o fiel Horácio seguiria da melhor vontade, mas que lhe promete ficar e viver ainda algum tempo num mundo tão cruel, tão cheio de dores, para contar o destino de Hamlet e purificar-lhe a memória; assim também Joana d'Arc, e a noiva de Messine: todos morrem purificados pelos sofrimentos, isto é, depois de se extinguir neles a vontade de viver...

O verdadeiro sentido da tragédia é essa observação profunda, que as faltas expiadas pelo herói não são as deles, mas as faltas hereditárias, isto é, o próprio crime de existir:

Pois, o delito maior
É o de o homem ter nascido.

— Arthur Schopenhauer, in As Dores do Mundo.

sábado, 1 de julho de 2017

Saudades

Saudade
Saudade de tudo!...
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...

Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...

Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo...
.
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.