segunda-feira, 29 de junho de 2015

ninguém, nem mesmo a chuva,tem mãos tão pequenas

nalgum lugar em que eu nunca estive,alegremente além
de qualquer experiência,teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos,nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente,misteriosamente)a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado,eu e
minha vida nos fecharemos belamente,de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade:cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre;só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva,tem mãos tão pequenas

e. e. cummings

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Alberto Caeiro

Falas de civilização, e de não dever ser, 
Ou de não dever ser assim. 
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos, 
Com as cousas humanas postas desta maneira. 
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos. 
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor. 
Escuto sem te ouvir. 
Para que te quereria eu ouvir? 
Ouvindo-te nada ficaria sabendo. 
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo. 
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres. 
Ai de ti e de todos que levam a vida 
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

Alberto Caeiro

sexta-feira, 12 de junho de 2015

A Verdade Dividida

A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Toda esperança é decepcionada


“Decepção: desilusão. É a mesma coisa, e o gosto mesmo da verdade. O amor decepciona. A arte decepciona. A filosofia decepciona. Pelo menos decepcionam primeiro e por muito tempo – até o dia em que os amamos pelo que são, pelo que são realmente, pelo que são apesar de tudo, e já não pelo que se tinha sonhado ou esperado deles. Trabalho do luto: trabalho da desilusão. Não se trata de acreditar; trata-se de conhecer e amar. Um escritor que ainda acredita na literatura, que poderá ele ensinar-nos de importante sobre ela ou sobre a vida? E um filósofo, se acredita na filosofia? Um músico, se acredita na música? Um pintor, se acredita na pintura? E como amar verdadeiramente, enquanto se acredita no amor, enquanto se faz dele uma religião, um absoluto, um sonho? Toda esperança é decepcionada sempre, mesmo quando é satisfeita; é no que a satisfação tantas vezes é melosa, como um desejo insosso assim que é saciado… Muitos, constatando que a vida não corresponde às suas esperanças, vão então acusar a vida, censurá-la absurdamente por ser o que ela é (como ela seria outra coisa?), enfim enterrar-se vivos no rancor ou no ressentimento… Prefiro o alegre amargor do amor, do sofrimento, da desilusão, do combate, vitórias e derrotas, da resistência, da lucidez, da vida em ato e em verdade. Prefiro a realidade, e a dureza da realidade. Se a vida não corresponde às nossas esperanças, não é forçosamente a vida que está errada: pode ser que sejam nossas esperanças que nos enganam, desde o início (desde a nostalgia primeira que as alimenta), e que a vida só possa desde então nos desenganar… Gosto azedo da decepção, do qual nada cura senão o desespero, se for possível, a sapidez muito acre e muito salutar do desespero. Toda esperança é decepcionada, sempre; só existe felicidade inesperada.”

André Comte-Sponville em Bom Dia, Angústia

sábado, 6 de junho de 2015

OS OLHOS DOS POBRES

Ah! Você quer saber por que eu a odeio hoje. Será, certamente, menos fácil para você compreender do que para mim, explicar; porque você é, creio, o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar.

Tínhamos passado juntos um longo dia que me parecera curto. Nós nos tínhamos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns a um e ao outro e que nossas duas almas não seriam mais do que uma só — um sonho que nada tem de original, uma vez que, afinal, é um sonho sonhado por todos os homens, mas nunca realizado por nenhum.

À noite, já um pouco fatigada, você quis sentar-se em frente a um café novo, na esquina de um bulevar também novo, ainda cheio de cascalhos, mas já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café brilhava. Mesmo as simples tochas de gás revelavam todo o ardor de uma estréia e iluminavam, com todas as suas forças, as paredes de uma brancura ofuscante, exibindo a seqüência de espelhos, o ouro das molduras e dos frisos, mostrando pagens rechonchudos arrastados por cães nas coleiras, senhoras rindo com os falcões pousados em seus punhos, ninfas e deusas trazendo frutas em suas cabeças, patês e caças diversas, as Hebes e Ganimedes apresentando, com os braços estendidos, a pequena ânfora com creme bávaro ou o obelisco bicolor de sorvetes coloridos; enfim, toda a história e a mitologia postas a serviço da glutonaria.

Bem em frente de nós, na calçada, estava plantado um homem de bem, de uns quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, tendo numa das mãos um menino e sobre o outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele cumpria o papel de uma babá e trazia seus filhos para tomar o ar da noite. Todos em farrapos. Esses três rostos estavam extremamente sérios e seus seis olhos contemplavam fixamente o novo café com igual admiração, mas, naturalmente, com as nuances devidas às idades.

Os olhos do pai diziam: “Que beleza! Que beleza! Dir-se-ia que todo o ouro do pobre mundo fora posto nessas paredes.”

Os olhos do menino: “Que beleza! Que beleza! Mas é uma casa onde só podem entrar pessoas que não são como nós!” Quanto aos olhos do menor, eles estavam fascinados demais para exprimirem outra coisa senão uma alegria estúpida e profunda.

Os cancioneiros dizem que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. A canção tinha razão nesta noite relativamente a mim. Não somente eu estava enternecido por esta família de olhos, como me sentia envergonhado por nossos copos e nossas garrafas, maiores que nossa sede.

Virei meus olhos para os seus, querido amor, para ler neles o “meu pensamento”; mergulhei em seus olhos tão belos e tão bizarramente doces, nos seus olhos verdes, habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: “Não suporto essa gente com seus olhos arregalados como as portas das cocheiras! Será que você poderia pedir ao maîttre do café para afastá-los daqui?”

É tão difícil o entendimento, meu caro anjo, e tão incomunicável é o pensamento mesmo entre as pessoas que se amam.

Charles Baudelaire,  in Pequenos Poemas em prosa.

OS PROJETOS


Sozinho, passeando em um grande parque, ele dizia para si mesmo: “Como ela ficaria bela em seu vestido real, complicado e faustoso, descendo, através da atmosfera de uma bela tarde, os degraus de mármore de um palácio diante de grandes gramados e laguinhos! Porque ela tem, naturalmente, o ar de uma princesa.” Passando, mais tarde, por uma rua, ele parou diante de uma loja de gravuras e encontrando numa pasta uma estampa representando uma paisagem tropical. se disse: “Não! Não é num palácio que eu desejaria possuir sua querida vida. Nós não estaríamos em casa. Porque em suas paredes incrustadas de ouro não haveria lugar para pendurar o seu retrato; naquelas solenes galerias não existiriam recantos para nossa intimidade. Decididamente, é lá que é preciso ficar para cultivar o sonho de minha vida.”

E, analisando com os olhos todos os detalhes da gravura, ele continuou, mentalmente: “À beira-mar, uma bela cabana de madeira, cercada por todas essas árvores bizarras e luminosas das quais me esqueço os nomes..., na atmosfera um odor inebriante, indefinível.., na cabana, um perfume de rosas e almíscar, Mais longe, atrás de nosso pequeno domínio, as pontas de mastros dos botes oscilando com as ondas.,, em volta de nós, além do quarto iluminado por uma luz rósea tamisada pelas cortinas, decoradas com esteiras frescas e flores capitosas com algumas cadeiras de rococ6 português, de uma madeira pesada, tenebrosa (onde ela repousaria, calmamente, refrescando-se e fumando um tabaco levemente opiáceo); além do terraço, a gritaria de pássaros embriagados pelas luzes e a tagarelagem das negrinhas.., e à noite, para servir de acompanhamento a meus sonhos, o canto lamentoso de árvores musicais, de melancólicas casuarinas. Sim, na verdade, é bem este cenário lá que eu procurava. Que faria eu com um palácio?”

E, mais adiante, como ele seguisse por uma grande avenida, vislumbrou um albergue asseado onde, de uma janela alegrada por cortinas indianas multicores, penduravam-se duas cabeças sorridentes. E, logo a seguir: “É preciso”, disse para si, “que meu pensamento seja um grande vagabundo para ir procurar tão longe o que está perto de mim. O prazer e a felicidade estão no primeiro albergue encontrado, no albergue do acaso, tão fecundo e voluptuoso. Uma lareira, faianças vistosas, um jantar passável, um vinho rude e um leito muito largo com lençóis um pouco ásperos, mas frescos; o que há de melhor?”
E voltando para casa sozinho àquela hora onde os conselhos da sabedoria não são mais abafados pelo burburinho da vida exterior, ele se disse: “Tive hoje, em sonho, três domicílios onde encontrei prazeres iguais. Por que obrigar meu corpo a mudar de lugar se minha alma viaja tão rapidamente? De que serve a execução de projetos, posto que o projeto, em si, é já um gozo suficiente?"

Charles Baudelaire,  in Pequenos Poemas em prosa e verso.

Solidão - Charles Baudelaire


Um jornalista filantropo disse-me que a solidão é má para o homem, e, em apoio a sua tese, cita, como todos os incrédulos, as palavras dos Padres da Igreja.

Eu sei que o Demônio freqüenta prazerosamente os lugares áridos e que o Espírito do assassínio e da lubricidade inflama-se maravilhosamente na solidão. Mas é possível que esta solidão não seja perigosa senão para almas ociosas e divagantes que povoam suas paixões e suas quimeras.

É certo que um tagarela, cujo supremo prazer consiste em falar do alto de um púlpito ou de uma tribuna, se arriscaria a tornar-se um louco furioso na ilha de Robinson. Eu não exijo de meu jornalista as corajosas virtudes de Crusoé, mas peço que ele não acuse os amantes da solidão e do mistério.

Há, em nossas raças faladoras, indivíduos que aceitariam com menos repugnância o suplício supremo se lhes fosse permitido fazer do alto do cadafalso uma copiosa arenga, sem medo de que os tambores de Santerre lhes cortassem intempestivamente a palavra.

Não me apiedo deles, porque adivinho que suas efusões oratórias procuram volúpias iguais àquelas que outros tiram do silêncio e do recolhimento; mas eu os desprezo.

Desejo, sobretudo, que meu maldito jornalista deixe que eu me divirta a meu modo. “O senhor nunca aprova”, disse me ele, com um tom anasalado muito apóstolico, “a necessidade de compartilhar suas alegrias?” Vejam vocês o sutil invejoso! Ele sabe que desdenho as alegrias dele e vem se insinuando nas minhas, o horroroso estraga-festas. “Essa grande infelicidade de não poder estar só!...”, disse em algum lugar La Bruyère, como para envergonhar a todos os que correm para se perderem na multidão, temendo, sem dúvida, não poder suportar-se a si mesmos.

“Quase todos os nossos males nos vêm de não termos sabido ficar em nossos quartos”, disse um outro sábio, Pascal, creio, lembrando assim na sua cela de recolhimento todos estes enlouquecidos que procuram a felicidade no movimento e numa prostituição que eu poderia chamar de fraternária, se quisesse falar na bela língua do meu século.

Charles  Baudelaire, in Pequenos Poemas em prosa.