terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O trem como metáfora da vida

"Durante quatro estações, em todas as manhãs, o trem deslizava em frente de nossa casa. Nascia na cidade de um avô, que escrevia nas paredes, e morria na cidade de outro avô, com seu olho de vidro. Sempre suspeitei o nascer como entrar num trem andando. Só que,o mundo, eu não sabia de onde vinha nem para onde ia. E, no meu vagão, não escolhi os companheiros para a viagem. Eram todos estranhos, severos, amargos, impostos. Também entrei sem comprar o bilhete de viagem. Minha bagagem, pequena, cabia debaixo do banco -da segunda classe - sem incomodar. Contrabandeava poucos pertences: uma grande dor que doía o corpo inteiro e a vontade de encontrar um remédio capaz de remediar o incômodo. Até hoje o mundo ainda não atracou. Vou sem escolher o destino. O trem estancava na minha cidade, trocava de carga e reabastecia-se . O mundo só nos permite uma baldeação definitiva."

Bartolomeu Campos de Queirós,  In, Vermelho  Amargo

Vermelho Amargo

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Livro do desassossego

"As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais.

O meu mundo imaginário foi sempre o único mundo verdadeiro para mim. Nunca tive amores tão reais, tão cheios de verve, de sangue e de vida como os que tive com figuras que eu próprio criei. Que loucos! Tenho saudades deles porque, como os outros, passam..."

Bernardo Soares

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Álvaro de Campos

Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
Seja

A mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas...
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio de individualidade para quem repara...
O arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Busca encontrar-se e fundir-se
Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores...

Deita-me as mancheias,
Por cima da alma,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,
Exceto a própria sombra dos parques
Entrando-me na alma,
Através do pranto.
Dá-me rosas, rosas,
E lirios também...

Minha dor é velha
Como um frasco de essência cheio de pó.
Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves,
E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega.
Chego às janelas
Dos palácios arruinados
E cismo de dentro para fora
Para me consolar do presente.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa,
Sobrar-me-á sempre de que desejar,
Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que eu penso,
E muito embora o que eu te peça
Te pareça que não quer dizer nada,
Minha pobre criança tísica,
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também.

Álvaro de Campos

sábado, 13 de dezembro de 2014

Presente/Futuro

Não devemos crer que o futuro leva consigo um bem tal que apaga completamente nossa ânsia de felicidade.  O futuro é feito da mesma substância do presente.

Simone Weil

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O horror sórdido do que, a sós consigo


Faz as malas para Parte Nenhuma!
Embarca para a universalidade negativa de tudo
Com um grande embandeiramento de navios fingidos
Dos navios pequenos, multicolores, da infância!
Faz as malas para o Grande Abandono!
E não esqueças, entre as escovas e a tesoura,
A distância polícroma do que se não pode obter.

Faz as malas definitivamente!
Quem és tu aqui, onde existes gregário e inútil —
E quanto mais útil mais inútil —
E quanto mais verdadeiro mais falso —
Quem és tu aqui? quem és tu aqui? quem és tu aqui?
Embarca, sem malas mesmo, para ti mesmo diverso!
Que te é a terra habitada senão o que não é contigo?

2-5-1933

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Interrogação

Quando pararei de amar com intensidade
Quando deixarei de me prender aos seres e coisas?

Quando me livrarei de mim?
Do que sou, do que quero e do que penso?

Quando deixarei de prantear?

No dia em que deixar de ser eu,
No dia em que eu perder a consciencia
do mundo que idealizei . . .
Neste dia. . .

Eu sorrirei sem saber do sorriso.

Solano Trindade 1970

domingo, 9 de novembro de 2014

Brevidade da vida e a busca por experiências

"O mundo moderno oferece-nos um número infinito de possibilidades de vida e de vivências,  mas nossa vida é breve (...). O temor inconsciente de perder algo ou de ficar atrás acelera consideravelmente o 'curso' da nossa vida (...).
Contudo, somente quem vive devagar adquire alguma experiência da vida. Somente quem assimila o que experimenta fez uma experiência.  Somente quem come devagar pode comer com prazer.
Não é necessário correr atrás de todas as possibilidades.  Uma realidade vale mais do que mil possibilidades."

Jurgen Moltmann, In,  No fim, o início. 

Deve ainda haver vida dentro da vida

"Não é possível que isso tenha sido tudo,
esse pouco de domingo e de choro de criança,
tudo isso deve levar a algum lugar.
Não é possivel que isso tenha sido tudo, 
alguma coisa ainda deve acontecer:
não, deve ainda haver vida dentro da vida."
Wolf Biermann

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Todas as cartas de amor são Ridículas

    Todas as cartas de amor são
    Ridículas.
    Não seriam cartas de amor se não fossem
    Ridículas.

    Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
    Como as outras,
    Ridículas.

    As cartas de amor, se há amor,
    Têm de ser
    Ridículas.

    Mas, afinal,
    Só as criaturas que nunca escreveram
    Cartas de amor
    É que são
    Ridículas.

    Quem me dera no tempo em que escrevia
    Sem dar por isso
    Cartas de amor
    Ridículas.

    A verdade é que hoje
    As minhas memórias
    Dessas cartas de amor
    É que são
    Ridículas.

    (Todas as palavras esdrúxulas,
    Como os sentimentos esdrúxulos,
    São naturalmente
    Ridículas.)

    Álvaro de Campos, 21-10-1935

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Sou um evadido.

Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.
Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.

Fernando Pessoa

domingo, 14 de setembro de 2014


Recado a quem já se sentiu só

RECADO A QUEM JÁ SE SENTIU SÓ



Uma hora, lá pelas tantas do dia, da noite, da vida, você vai sentir solidão. Acontece com toda gente. Do bebê mais intocado, chorando um instante de falta da mãe, ao velho mais rescaldado remoendo seus mortos, contando suas saudades em fila indiana, todos haveremos de nos sentir sós.
O casal na manhã de seu amor havia pouco sonhava uma cerimônia de casamento, escolhia convidados, mobiliava a casa imaginária, batizava seus filhos que ainda virão. Agora, ainda no caminho de suas primeiras esquinas de mãos juntas, um e outro também se sentem ridiculamente sós, cada um em seu canto de sofá, repassando em silêncio suas dúvidas e angústias irreveláveis.
Na família povoada de crianças, o cachorro de estimação é adorado por todos, tem a saúde cuidada por veterinários com doutorado, é banhado e penteado às terças por equipes especializadas e acolhido no coração de seus donos com alegria diária. Ainda assim, ele também se encolhe em seu canto nas horas quietas e envelhece no escuro sua existência de bicho só.
Depois das vozes e da música, dos risos e das juras de amor verbalizadas nas ondas de satisfação e ternura honesta de um dia alegre, quando restar mais nada além do som da geladeira na noite silenciosa, você há de se sentir só.
Olhando a pessoa amada que dorme ao seu lado, assistindo ao seu virar para lá e cá, as mãos aquecidas entre os travesseiros, os olhos sonhando sob a fidelidade muda das pálpebras, você também vai sentir solidão.
Na visão do campo de futebol de várzea deserto, que há pouco exalava na vizinhança um perfume de grama pisoteada pela alegria dos atletas de ocasião, um vizinho curioso e contemplativo, assistindo à vida pela janela, vai notar a si mesmo em profundo instante de solidão patética.
No cuidado com que a esposa limpa, lixa e pinta as próprias unhas, o marido calado também vai se sentir sozinho. E ela, cuidando de si mesma, amadurecendo sua inseguranças, amenizando seus medos no exercício de se fazer mais bela, também vai se saber criatura solitária.
É que solidão também se sente em casal, grupo, multidão. Quem é só também se percebe assim em família, time de futebol, casa cheia. Solidão é sentimento que repousa dentro da gente e acorda quando quer, pisando de salto duro pela casa, batendo as portas, arrastando a cômoda de madrugada, fazendo barulho.
Você está lá, cercado de gente, tomado de amor, envolvido em conversa animada e pronto. Um vazio estala num canto escondido aí dentro, um medo congela no peito, uma tristeza aparece do nada, como visita que não se espera. E você se torna triste como o terreno baldio entre dois prédios construídos há pouco, habitados por famílias novas, solteiros, estudantes famintos e suas festas. Você é agora nada senão um espaço vazio, esquecido, povoado de pedras e ilhas de mato crescendo lento, em que os incautos e insensíveis vêm despejar velhos sofás à noite e os bem resolvidos descartam seus entulhos e dão as costas.
Sentir solidão é escutar a chuva durante a noite, remoer a cólica que piora em momento insuspeitado. É precisar de um telefone sem sinal, encontrar fotografias revelando saudades, ouvir o silêncio que estoura os tímpanos e aperta o peito. O silêncio da espera dos próximos sons, dos risos vindouros, da conversa seguinte, das visitas novas.
Mas deixe estar. O instante de ser só é condição de quem está vivo. A toda gente da terra e do céu, o vento sopra de manhã, no topo das árvores que acordam com o dia, seu recado firme e urgente: todo mundo há de se sentir só.
E assim, solitários, cada um de nós e todos os nossos seremos como a pedra num sapato vazio: uma pura, honesta e simples manifestação de espera. A esperança da companhia que sempre volta. Aquela que assiste ao seu sono, que lhe dói e cura, que lhe falta e completa.
Porque há sempre um olhar carinhoso à sua busca, mirando ansioso a sua chegada com a alegria dos que acreditam, o frescor das histórias que começam e a ternura poderosa dos gestos simples de amor. O amor que nos acolhe, nos desperta e nos leva adiante, no movimento pleno e grandioso da vida.

Fonte: Revista Bula

domingo, 24 de agosto de 2014

A Modéstia

A Modéstia 

Quem fez da modéstia uma virtude esperava que todos passassem a falar de si próprios como se fossem idiotas.
O que é a modéstia senão uma humildade hipócrita, através da qual um homem pede perdão por ter as qualidades e os méritos que os outros não têm?

— Arthur Schopenhauer, in "Parerga e Paralipomena". 


Florbela

"Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...

E não sou nada!..."

Florbela Espanca

às vezes lembro-me de ti

às vezes lembro-me de ti
e nem sequer me sinto só, ou triste, ou mísero
de amor.
és presença, mas espectro aos meus abraços
que há muito recolhi, como velas dobradas num mar
de ociosos ventos.
e pouco importa que tenhas ido com a maré de um
tempo sem memória.
contudo, a tua sombra permanece. nela crescem algas
e criaturas marinhas fincam-se-lhe para lhe dar forma.
não é saudade que sinto. talvez um estranho capricho!
é,
talvez,
a vontade súbita de me lembrar de ti!

(Luís R Santos)

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Novo dia?


São seis horas da manhã e o despertador acorda o homem. Esse abre os olhos para a claridade da manha. Levanta-se preguiçosamente e toma banho. Ao sentir a água cair sobre seu corpo, percebe que há algo diferente nesse novo dia.O homem se veste, toma seu rápido café e sai para o trabalho.

Ao chegar à rua, caminhando para o ponto de ônibus, tenta descobrir o que está diferente nesse dia. Olha as pessoas ao seu redor e parecem todas normais. Lá vai o seu vizinho do 302 para a faculdade com os livros nas mãos tagalerando com uma moça, que parecia ansiosa para fugir dele.  Do outro lado da rua ele vê a senhora  do 702, séria e compenetrada em seus pensamentos e se lembra dos boatos de que ela estaria traindo o seu marido. Mas o que ele tem a ver com a vida dela, se questiona. Tudo a sua volta parecia seguir o ritual diário, até mesmo o cachorro latindo ao longe era o de sempre. Mas ele sabia que havia algo novo nesse dia.

No ônibus a sensação de estranhamento o acompanhou. Chegou no escritório, bateu cartão, cumprimentou os colegas, sentou em sua mesa e ficou um bom tempo a observar o ambiente em que passava a maior parte do tempo de sua vida. De repente, aquele sentimento que havia algo diferente acontecendo o dominou completamente, e ele percebe que não conseguia ver sentido algum em nada do que ele estava fazendo e sempre havia feito.  Tudo  gerava um cansaço e a percepção de inutilidade da vida. Porque gastar tanto tempo e energia em ações sem sentido?  Por que passar os poucos anos de sua existência  envolvido em coisas que não traziam significado para sua vida?  Levantar todo dia cedo e realizar  o mesmo ritual vazio, de simplesmente se manter dentro da estrutura do sistema, de sobreviver...

“Vai ficar no mundo das nuvens até quando?” O homem assusta e percebe que é o seu chefe que lhe fala. “Não pagamos você para ficar pensando. Seu trabalho aqui é produzir, portanto, acorde e comece a trabalhar”. Produção...

O homem olha o chefe sem entender direito o que ele lhe diz. Pior. Não sabe se consegue lhe explicar o que se passa em sua mente.  Então ele era uma peça na engrenagem de produção?  Apenas uma pequena parte de manutenção do Grande Sistema. Não era um ser, era uma coisa.

Nesse momento, ele começa a compreender que a sensação diferente que ele estava sentindo desde a manhã era o desejo de ser humano em um mundo coisificante. Olha os papéis sobre a mesa e mira os olhos de seu superior hierárquico na empresa e decide buscar a libertação de seu estado desumanizador.

Levanta-se e diz ao chefe que vai embora. O chefe, assustado, pega no ombro do homem, como se tivesse tentando trazê-lo de volta à realidade. “O que você está dizendo? Como ir embora? Enlouqueceu de vez?”. “Não estou louco”, diz o homem. “Simplesmente desejo a vida”.  Queria explicar para aquela criatura estupefata à sua frente que entendia o seu susto diante de sua decisão. Ele estava abrindo mão de um bom emprego e de um salário razoável, da segurança e da perspectiva de uma carreira. Simplesmente respondeu: “Procurarei o sentido da vida”.

Ao chegar à rua, o homem respira fundo e olha à sua volta. Estava livre. Agora ele podia viver o que quisesse escolher, ir para onde desejasse, construir a história de seu jeito.  Olhou o céu, estava nublado. Havia chovido à pouco tempo. Caminha pelas calçadas da grande cidade. Um carro passa e se desvia de um cachorro que se aventurou pela rua. Ao se desviar do animal o motorista perde o controle e o veículo se choca no homem, jogando-o sobre um muro. O homem tem apenas uns segundos para tornar a olhar o céu e ver o sol se esforçando para sair entre as nuvens. Respirou pela última vez pensando que se até o astro rei era impedido de mostrar seu brilho, às vezes, a vida não o aceitava livre e autônomo. 

Márcio Ramos

domingo, 20 de julho de 2014

O Essencial é Saber Ver

O essencial é saber ver, mas isso, triste de nós que trazemos a alma vestida, isso exige um estudo profundo, aprendizagem de desaprender.

Eu prefiro despir-me do que aprendi, eu procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desembrulhar-me e ser eu.

Meus amigos?

Escolho os meus amigos não pela pele ou por outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero o meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim. Para isso, SÓ SENDO LOUCO. 
Quero-os santos, para que NÃO DUVIDEM DAS DIFERENÇAS e peçam perdão pelas injustiças. Escolho os meus amigos pela CARA LAVADA e pela ALMA EXPOSTA. Não quero só o ombro ou o colo, quero também a sua maior alegria. Amigo que não ri conosco não sabe sofrer conosco. Os meus amigos são todos assim: metade DISPARATE, metade SERIEDADE. Não quero risos previsíveis nem choros piedosos. 
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade a sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos, nem chatos. Quero-os METADE infância e outra metade velhice. Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois os vendo loucos e santos, tolos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a NORMALIDADE É UMA ILUSÃO IMBECIL E ESTÉRIL.


Oscar Wilde

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Soneto de Separação


De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto


De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama


De repente não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente


Fez-se do amigo próximo, distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente


Vinicius de Moraes

quinta-feira, 26 de junho de 2014

O pastor amoroso perdeu o cajado,

O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu. Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo;
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, estão presentes.
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco nos pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito.
10-7-1930
“O Pastor Amoroso”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. 

O Peso da Existência

O que ocupa todos os vivos e os conserva em contínua atividade, é a necessidade de assegurar a existência. Mas feito isto, não sabem que mais hão de fazer. Assim o segundo esforço dos homens é aliviar o peso da vida, torná-lo insensível, "matar o tempo", isto é, fugir do aborrecimento. Vemo-los, logo que se livram de toda a miséria material e moral, logo que sacudiram dos ombros todos os fardos, tomarem sobre eles mesmos o peso da existência, e considerarem como um ganho toda a hora que têm conseguido passar, ainda que no fundo ela seja tirada dessa existência, que se esforçam por prolongar com tanto zelo. O aborrecimento não é um mal para desdenhar: que desespero faz transparecer no rosto! Faz com que os homens, que se amam tão pouco uns aos outros, se procurem com todo o entusiasmo; é a origem do instinto social. O Estado considera-o como uma calamidade pública, e por prudência toma medidas para o combater. 
Este flagelo, que não é menor que o seu extremo oposto, a fome, pode impelir os homens a todos os desvarios; o povo precisa "panem et circenses". O rude sistema penitenciário de Filadélfia, fundado sobre o isolamento e a inatividade, faz do aborrecimento um instrumento de suplício tão terrível, que mais de um condenado tem recorrido ao suicídio para lhe fugir. Se a miséria é o aguilhão perpétuo para o povo, o tédio é o igualmente para os ricos. Na vida civil, o domingo representa o aborrecimento, e os seis dias da semana a miséria.
(Arthur Schopenhauer, in "As Dores do Mundo")

Oração ao Deus Desconhecido

Antes de prosseguir no meu caminho
E lançar o meu olhar para frente
Uma vez mais elevo, só, minhas mãos a Ti,
Na direção de quem eu fujo.
A Ti, das profundezas do meu coração,
Tenho dedicado altares festivos,
Para que em cada momento
Tua voz me possa chamar.
Sobre esses altares está gravada em fogo
Esta palavra: “ao Deus desconhecido”
Eu sou Teu, embora até o presente
Me tenha associado aos sacrílegos.
Eu sou Teu, não obstante os laços
Me puxarem para o abismo.
Mesmo querendo fugir
Sinto-me forçado a servir-Te.
Eu quero Te conhecer, ó Desconhecido!
Tu que me penetras a alma
E qual turbilhão invades minha vida.
Tu, o Incompreensível, meu Semelhante.
Quero Te conhecer e a Ti servir.

(Friedrich Wilhelm Nietzsche, in Basileia por volta de 1864 à 1865)

Fonte: Despojos de Uma Tragédia - Friedrich Wilhelm Nietzsche.

EU SOU AQUELE


Eu sou aquele que, estando sentado a uma janela,
a ouvir o Apóstolo das Gentes,
adormeci e caí do alto dela.
Nem sei mais se morri ou fui miraculado:

consultai os Textos, no lugar competente —
o que importa é que o Deus que eu tanto ansiava
como uma luz que se acendesse de repente,
era-me vestido com palavras e mais palavras

e cada palavra tinha o seu sentido...
Como as entenderia — eu tão pobre de espírito
como era simples de coração?

E pouco a pouco se fecharam os meus olhos...
e eu cada vez mais longe... no acalanto

de uma quase esquecida canção...

Mario Quintana, In, Apontamentos de História Sobrenatural.

Cuidado!

Cuidado!

Nós somos gestantes da alma...Cuidado!
É preciso muito, muito cuidado
Para que a alma possa nascer normal na outra vida.
Nesta, ela mal pode, ela quase não tem tempo de
ficar pronta!
Como é possível, com estes cuidados e mais cuidados
sem conta,
Ah, toda essa vergonha de sermos devorados
- meticulosamente - por milhões de ratos
durante sessenta, setenta, oitenta anos
Quando bem poderia surgir de súbito o nobre leão da morte
Na plenitude nossa
Como acontece com os heróis da Ilíada,
Mas os heróis só morrem - no País das Ilíada -
Belos e jovens...
Aqui, qualquer heroísmo se desmoraliza dia a dia
como a barba do Tempo arrancada, fio a fio, das folhinhas...
Como é possível, como é possível um alma triturada assim pelos relógios?
Como é possível nascer com um barulho destes?

Mario Quintana, In, Apontamentos de História Sobrenatural.

terça-feira, 17 de junho de 2014

A solidão amiga


A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão... O que mais você deseja é não estar em solidão...

Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa... Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A noite estava perdida.

Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, "parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis". A vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo de meditação: "Como se comporta a Sua Solidão?" Minha solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela tem vida.

Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a que mais amo: "Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você." Pare. Leia de novo. E pense. Você lamenta essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu jardim.

Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga... Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond acha que sim: "Por muito tempo achei que a ausência é falta./ E lastimava, ignorante, a falta./ Hoje não a lastimo./ Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim./ E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,/ que rio e danço e invento exclamações alegres,/ porque a ausência, essa ausência assimilada,/ ninguém a rouba mais de mim.!"

Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas! Vejo, frequentemente, pessoas que caminham por razões da saúde. Incapazes de caminhar sozinhas, vão aos pares, aos bandos. E vão falando, falando, sem ver o mundo maravilhoso que as cerca. Falam porque não suportariam caminhar sozinhas. E, por isso mesmo, perdem a maior alegria das caminhadas, que é a alegria de estar em comunhão com a natureza. Elas não vêem as árvores, nem as flores, nem as nuvens e nem sentem o vento. Que troca infeliz! Trocam as vozes do silêncio pelo falatório vulgar. Se estivessem a sós com a natureza, em silêncio, sua solidão tornaria possível que elas ouvissem o que a natureza tem a dizer. O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos. Sartre chegou ao ponto de dizer que "o inferno é o outro." Sobre isso, quem sabe, conversaremos outro dia... Mas, voltando a Nietzsche, eis o que ele escreveu sobre a sua solidão:

"Ó solidão! Solidão, meu lar!... Tua voz - ela me fala com ternura e felicidade!

Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas abertas.

Pois onde quer que estás, ali as coisas são abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes.

Ali as palavras e os tempos/poemas de todo o ser se abrem diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede para aprender de mim a falar."

E o Vinícius? Você se lembra do seu poema O operário em construção? Vivia o operário em meio a muita gente, trabalhando, falando. E enquanto ele trabalhava e falava ele nada via, nada compreendia. Mas aconteceu que, "certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela casa - garrafa, prato, facão - era ele que os fazia, ele, um humilde operário, um operário em construção (...) Ah! Homens de pensamento, não sabereis nunca o quando aquele humilde operário soube naquele momento! Naquela casa vazia que ele mesmo levantara, um mundo novo nascia de que nem sequer suspeitava. O operário emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de operário, e olhando bem para ela teve um segundo a impressão de que não havia no mundo coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão desse instante solitário que, tal sua construção, cresceu também o operário. (...) E o operário adquiriu uma nova dimensão: a dimensão da poesia."

Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o seguinte: "As obras de arte são de uma solidão infinita." É na solidão que elas são geradas. Foi na casa vazia, num momento solitário, que o operário viu o mundo pela primeira vez e se transformou em poeta.

E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente descrita por Drummond:

"...Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Distância, exílio e viagem transpareciam no seu sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira Cecília..."

Sim, lá estava ela delicadamente entre os outros, participando de um jogo de relações gregárias que a delicadeza a obrigava a jogar. Mas a verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar onde ela estava irremediavelmente sozinha.

O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kiekeggard, um solitário que me faz companhia até hoje, observou que o início da infelicidade humana se encontra na comparação. Experimentei isso em minha própria carne. Foi quando eu, menino caipira de uma cidadezinha do interior de Minas, me mudei para o Rio de Janeiro, que conheci a infelicidade. Comparei-me com eles: cariocas, espertos, bem falantes, ricos. Eu diferente, sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho feio que os outros se compraziam em bicar. Nunca fui convidado a ir à casa de qualquer um deles. Nunca convidei nenhum deles a ir à minha casa. Eu não me atreveria. Conheci, então, a solidão. A solidão de ser diferente. E sofri muito. E nem sequer me atrevi a compartilhar com meus pais esse meu sofrimento. Seria inútil. Eles não compreenderiam. E mesmo que compreendessem, eles nada podiam fazer. Assim, tive de sofrer a minha solidão duas vezes sozinho. Mas foi nela que se formou aquele que sou hoje. As caminhadas pelo deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar de mim mesmo. E aprendi a buscar as coisas que, para mim, solitário, faziam sentido. Como, por exemplo, a música clássica, a beleza que torna alegre a minha solidão...

A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.

Mas essa conversa não acabou: vou falar depois sobre os companheiros que fazem minha solidão feliz.
Rubem Alves

Agradecimento


Devo muito
aos que não amo.

O alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outrem.

A alegria de não ser eu
o lobo de suas ovelhas.

A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar.

Não espero por eles
andando da janela à porta.
Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo,
o que o amor nunca perdoria.

Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas.

As viagens com eles são sempre um sucesso,
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras.

E quando nos separam
sete colinas e rios
são solinas e rios
bem conhecidos dos mapas.

É mérito deles
eu viver em três dimensões,
num espaço sem lírica e sem retórica,
com um horizonte real porque móvel.

Eles próprios não veem
quanto carregam nas mãos vazias.

"Não lhes devo nada" -
diria o amor
sobre essa questão aberta.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

20 POEMAS DE AMOR E UMA CANÇÃO DESESPERADA

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Escrever, por exemplo: “A noite está estrelada
e tiritam, azuis, os astros à distância”.

O vento desta noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu a quis e por vezes ela também me quis.

Em noites como esta apertei-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela me quis e às vezes eu também a queria.
Como não ter amado seus grandes olhos fixos?

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa mais profunda sem ela.
E cai o verso na alma como o orvalho no trigo.

Que importa se não pôde o meu amor guardá-la?
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. À distância alguém canta. À distância.
Minha alma se exaspera por havê-la perdido.

Para tê-la mais perto meu olhar a procura.
Meu coração procura-a, ela não está comigo.

A mesma noite faz brancas as mesmas árvores.
Já não somos os mesmos que antes tínhamos sido.

Já não a quero, é certo, porém quanto a queria!
A minha voz no vento ia tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes de meus beijos.
Sua voz, seu corpo claro, seus olhos infinitos.

Já não a quero, é certo, porém talvez a queira.
Ah, é tão curto o amor, tão demorado o olvido.

Porque em noites como esta a apertei nos meus braços
minha alma se exaspera por havê-la perdido.

Mesmo que seja a última esta dor que me causa
e estes versos os últimos que eu lhe tenha escrito

20 POEMAS DE AMOR E UMA CANÇÃO DESESPERADA, Pablo Neruda

Das Três Metamorfoses

Vou falar das três metamorfoses do espírito: como o espírito se transforma em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança. Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o espírito forte e sólido, imbuído de respeito. A força desse espírito reclama por coisas pesadas e das mais pesadas. “Que coisa é pesada?” – pergunta o espírito transformado em besta de carga. E ajoelha-se como camelo e quer que a carga lhe seja bem colocada. “Qual é a coisa mais pesada, ó heróis?” – pergunta o espírito transformado em besta de carga – “para que eu a carregue e me rejubile com minha força? Não será rebaixarmo-nos para nosso orgulho padecer? Deixar brilhar nossa loucura para zombarmos de nossa sensatez? Ou será separarmo-nos de nossa causa quando ela celebra sua vitória? Escalar altas montanhas para tentar o tentador? Ou será sustentarmo-nos com bolotas e erva do conhecimento e padecer de fome na alma por causa da verdade? Ou será estar enfermo e despedir os consoladores e travar amizade com surdos que nunca ouvem o que queremos? Ou será submergirmo-nos em água lamacenta quando essa for a água da verdade e não afastarmos de nós as frias rãs e os quentes sapos? Ou será amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma que procura nos assustar?” O espírito transformado em besta de carga se sobrecarrega de todas as coisas por mais pesadas que sejam. Como o camelo, apenas carregado, corre em direção ao deserto, assim se apressa o espírito para o deserto. Na extrema solidão do deserto, ocorre a segunda metamorfose. O espírito se torna leão. Pretende conquistar sua liberdade e ser o rei de seu próprio deserto. Procura então seu último senhor. Quer ser seu inimigo e de seu último Deus. Para sair vencedor, quer lutar com o grande dragão. Qual é o grande dragão a que o espírito já não quer chamar senhor nem Deus? “Tu Deves”, assim se chama o grande dragão. Mas o espírito do leão diz: “Eu Quero”. “Tu Deves” esbarra-lhe o caminho, resplandecente de ouro, coberto de escamas. E em cada uma de suas escamas brilha em letras douradas: “Tu Deves!” Valores milenares brilham nessas escamas e o mais poderoso de todos os dragões assim fala: “Em mim brilha o valor de todas as coisas”. “Todos os valores já foram criados e eu sou todos os valores criados. Para o futuro não deve existir ‘Eu Quero’!” – Assim falou o dragão. Meus irmãos, que falta faz o leão no espírito? Não bastará a besta de carga que se resigna e respeita? Criar valores novos é coisa que o leão ainda não pode, mas criar a liberdade para criar novamente, isso pode fazer a força do leão. Para criar a própria liberdade e dizer um sagrado não, mesmo perante o dever, para isso, meus irmãos, é preciso o leão. Conquistar o direito de novos valores é a tarefa mais terrível para um espírito dócil e respeitoso. Para ele, na verdade, isto é uma rapina e coisa própria de um animal de rapina. Como seu bem mais sagrado, ele amava outrora o “Tu Deves”. Mesmo no que há de mais sagrado, deverá agora encontrar apenas ilusão e arbitrariedade, se quiser arrancar à custa de seu amor sua liberdade. É preciso ser leão para essa violência. Dizei-me, porém, irmão. Que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o leão que ataca se transforme em criança? A criança é inocência, esquecimento, um recomeço, um brinquedo, uma roda que gira por si própria, movimento primeiro, uma santa afirmação. Sim, para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso uma santa afirmação. O espírito quer agora sua própria vontade. Tendo perdido o próprio mundo, quer conquistar seu mundo. Três metamorfoses do espírito vos mencionei. Como o espírito se transforma em camelo, o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança. Assim falava Zaratustra. (Friedrich Wilhelm Nietzsche, in “Assim Falava Zaratustra”)

terça-feira, 10 de junho de 2014

Corda sobre o abismo

“O Homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem. Uma corda sobre o abismo.
Perigosa para percorrê-la, é perigoso ir por esse caminho, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
O que é grande no Homem é ele ser uma ponte e não uma meta. O que se pode amar no Homem é ele ser uma passagem e um declínio.

(Friedrich Wilhelm Nietzsche, in "Assim Falava Zaratustra")



Eu só poderia acreditar num Deus que soubesse dançar.

E eu, que estou de bem com a vida, creio que aqueles que mais entendem de felicidade são as borboletas e as bolhas de sabão e tudo o que entre os homens se lhes assemelhe.
Ver girar essas pequenas almas leves, loucas, graciosas e que se movem é o que arranca de Zaratustra lágrimas e canções.
Eu só poderia acreditar num Deus que soubesse dançar.

(Friedrich Wilhelm Nietzsche, in "Assim Falava Zaratustra")

O Homem Louco – a morte de Deus

Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós os matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós os matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles cometeram! – Conta-se também no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas , e em cada uma entoou o seu 'Réquiem aeternaum deo'. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?”.
(Friedrich Wilhelm Nietzsche, in "A Gaia Ciência")

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Deus e eu

Deus não me dá sossego.
É meu aguilhão.
Morde meu calcanhar como serpente, 
faz-se verbo, carne, caco de vidro,
pedra contra a qual sangra minha cabeça.
Eu não tenho descanso neste amor.
Eu não posso dormir sob a luz do seu olho que me fixa.
Quero de novo o ventre de minha mãe, sua mão espalmada contra o umbigo estufado,
me escondendo de Deus.

Adélia Prado

sábado, 31 de maio de 2014

O Tédio. O livro do desassossego.

Soneto de Homenagem

de Antero de Quental,

Se há nesta vida um Deus para os acasos,
Que pela humanidade o bem reparte
Que te dê da fortuna a melhor parte
Que venturas te dê, sem lei nem prazos.

Eu, de alegrias tenho os olhos rasos
de lágrimas, querida, ao vir brindar-te
Quando vejo que até para saudar-te,
As flores se debruçam sobre os vasos.

O meu brinde é sumário, curto e breve
Se o nome que se quer, quando se escreve
Move-se a pena com traços ideais.

Um anjo como tu, quando se brinda
Tem-se a missão cumprida e a festa finda
Quebra-se a taça e não se bebe mais