sábado, 9 de março de 2019

Sobre livros e a magia da leitura.

A biblioteca compreendia uma maioria de romances, mas muitos eram proibidos aos menores de 15 anos e guardados à parte. E o método puramente intuitivo dos dois meninos não era na verdade uma escolha entre os que sobravam. Mas o acaso não é a pior coisa em matéria de cultura, e, devorando aqui e ali, os dois glutões engoliam o melhor ao mesmo tempo que o pior, sem aliás se preocuparem em guardar nada, e não guardando realmente quase nada, a não ser uma estranha e poderosa emoção que, através das semanas, dos meses e dos anos, fazia nascer e crescer neles todo um universo de imagens e lembranças redutíveis à realidade em que viviam no dia a dia, mas certamente não menos presentes para esses meninos ardentes que viviam seus sonhos tão violentamente quanto suas vidas. O que esses livros continham, no fundo, pouco contava. O que importava era aquilo que sentiam primeiro entrar  ao na biblioteca, onde não viam as paredes de livros pretos, mas um espaço e  horizontes múltiplos que, assim que transpunham a porta, os tirava da vida restrita do bairro. Depois vinha o momento em que, munidoscada um com os dois livros a que tinham direito, apertando-os com o cotovelo contra o corpo, saíam pela avenida àquela hora já escuraesmagando com os pés as bolotas dos grandes plátanos e imaginando as delicias que iriam saborear com seus livros, comparando-as já com as da semana anterior, até que, chegando à rua principal, começassem a abri-los sob a luz precária do primeiro lampião para recolher uma frase (por ex. "ele era de um vigor pouco comum") que iria reforçar neles a alegre e ávida esperança.

Albert Camus. O primeiro homem