segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Uma história radicalmente condensada da vida pós-industrial


Quando foram apresentados, ele fez uma piada, esperando ser apreciado. Ela riu extremamente forte, esperando ser apreciada. Depois, cada um voltou para casa sozinho em seu carro, olhando direto para a frente, com a mesma contração no rosto.

O homem que apresentou os dois não gostava muito de nenhum deles, embora agisse como se gostasse, ansioso como estava para conservar boas relações a todo momento. Nunca se sabe, afinal, não é mesmo não é mesmo não é mesmo.”

“Breves entrevistas com homens hediondos
David Foster Wallace

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Elogio da sombra

Jorge Luis Borges

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

FRAGMENTOS DE UM EVANGELHO APÓCRIFO


JORGE LUIS BORGES

3. Desventurado o pobre em espírito, porque debaixo da terra será o que agora é na terra.

4. Desventurado o que chora, porque já tem o hábito miserável do pranto.

5. ditosos os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glória.

6. Não basta ser o último para ser alguma vez o  primeiro.

7. Feliz o que não insiste em ter razão, porque ninguém a tem ou todos a têm.

8. Feliz o que perdoa aos outros e o que se perdoa a si mesmo.

9. Bem-aventurados os mansos, porque não condescendem com a discórdia.

10. Bem-aventurados os que não têm fome de justiça, porque sabem que nossa sorte, adversa ou piedosa, é obra do acaso, que é inescrutável.

11. Bem-aventurados os misericordiosos, porque sua felicidade está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prêmio.

12. Bem-aventurados os de limpo coração, porque vêem a Deus.

13. Bem-aventurados os que padecem perseguição por causa da justiça, porque lhes importa mais a justiça que seu destino humano.

14. Ninguém é o sal da terra; ninguém, em algum momento de sua vida, não o é.

15. Que a luz de uma lâmpada se acenda, embora nenhum homem a veja. Deus a verá.

16. Não há mandamento que não possa ser infringido,

e também os que digo e os que os profetas disseram.

17. O que matar pela causa da justiça, ou pela causa que ele crê justa, não tem culpa.

18. Os atos dos homens não merecem nem o fogo nem os céus.

19. Não odeies a teu inimigo, porque  se o fazer, és de algum modo seu escravo. Teu ódio nunca será melhor que tua paz.

20. Se te ofender tua mão direita, perdoa-a; és teu corpo e és tua alma e é árduo, ou impossível, fixar a fronteira que os divide…

24. Não exageres o culto da verdade; não há homem que ao fim de um dia não tenha mentido com razão muitas vezes.

25. Não jures, porque todo juramento é uma ênfase.

26.  Resiste ao mal, mas sem espanto e sem ira. A quem te ferir na face direita, podes oferecer-lhe a outra, sempre que não te mova o temor.

27. eu não falo de vingança e o único perdão.

28. Fazer o bem a teu inimigo pode ser obra de justiça e não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.

29. Fazer o bem a teu inimigo é o melhor modo de comprazer tua vaidade.

30. Não acumules ouro na terra, porque o ouro é pai do ócio, e este, da tristeza e do tédio.

31. Pensa que os outros são justos ou o serão, e se não é assim, não é teu o erro.

32. Deus é mais generoso que os homens e os medirá com outra medida.

33. Dá santo aos cães, deita tuas pérolas aos porcos; o que importa é dar.

34. Busca pelo agrado de buscar, não pelo de encontrar…

39. A porta é a que escolhe, não o homem.

40. Não julgues a árvore por seus frutos nem ao homem por suas obras; podem ser piores ou melhores.

41. Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso dever é edificar como se fora pedra a areia…

47. Feliz o pobre sem amargura ou o rico sem soberba.

48. Felizes os valentes, os que aceitam com ânimo semelhantes a derrota ou as palmas.

49. Felizes os que guardam na memória palavras de Virgílio ou de Cristo, porque estas darão luz a seus dias.

50. Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.

51. Felizes os felizes

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

( Carlos Drummond de Andrade )

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Pensar e agir: a difícil arte de se fazer humano

Fazer uma análise sobre o porquê de pensar e agir como penso e ajo me leva a compreensão de que sou um ser em processo de mutação. Muito da forma como percebo e me relaciono com o mundo é fruto de uma estrutura da qual não responde mais às minhas necessidades existenciais, e da qual tento me desvilhenciar.  Livrar-se de padrões de pensamento tão arraigado não é algo fácil, mas a cada dia me convenço mais dessa necessidade. Para isso, valorizo um pensar e agir que tenha a autonomia como alvo.

O pensar e agir são influenciados pelo meio em que vivemos. Portanto, se vivemos no Brasil, não podemos fugir muito da influencia da cultura ocidental e cristã. Além disso, em meu caso específico, a cultura religiosa teve um papel fundamental para minha compreensão de mundo, pois foram os primeiros óculos com os quais enxerguei a vida. Inicialmente esses óculos pareciam me mostrar um mundo possível de paz e harmonia, sendo unicamente necessária a obediência à divindade. Aos poucos, fui percebendo que esse estado de felicidade prometido pela fé era impossível de ser alcançado, pois as pessoas continuavam sofrendo e lamentando, tentando se conformar diante da dura realidade com a esperança de um paraíso vindouro. Isso me pareceu insuficiente para dar sentido à vida, mas durante longos anos meu pensar e agir foi pautado pelos princípios da fé.

O meu lugar social de pobre e negro também foram definidores de minha forma de estar no mundo. Perceber-se como pobre e carente foi algo que fiz muito cedo, pois a escassez dos bens valorizados socialmente me fazia sentir inferiorizado diante dos outros, e de início, incapaz de me relacionar com eles em pé de igualdade. A percepção étnica demorou um pouco mais, pois a negação de minha negritude durou até o Ensino Médio. Não aceitar tal identidade é uma maneira comum de não se identificar com um grupo marginalizado socialmente, viria depois descobrir. A “descoberta” de meu pertencimento a “raça” negra foi o primeiro salto em minha forma de pensar e agir, pois possibilitou o resgate da autoestima e da valorização de quem eu era diante do outro.

Todas as estruturas apontadas acima foram importantes para a formação do meu pensar e agir. Entretanto, penso que o fator fundamental para formação de meu pensamento foi a literatura. Foi através dela que conseguia desde a adolescência vislumbrar outras possibilidades de existência. Ela mostrou-me que o mundo não precisava ser somente branco e preto, mas que era possível colori-lo com as cores que desejássemos. Mesmo não tendo todos os lápis de cor no momento, havia a possibilidade de encontrá-los debaixo do sofá, ou quem sabe no terreiro de casa, e  tentarmos fazer uma aquarela da vida. 

Entendo hoje que a leitura e a experiência vivida possibilitou uma mudança paulatina em minha forma de pensar. De repente me descobri um ser estranho no mundo e até mesmo na forma como eu me relacionava com a realidade. Minhas ações não diziam respeito a quem eu era de fato, mas ao que as pessoas esperavam de mim. Estava aprisionado a uma imagem construída ao longo da vida, mas sentia necessidade ardente de existir, “tinha que respirar”, não cabia mais na estrutura. Parece-me que as mudanças no “ser” ocorrem de acordo com esse padrão: a transformação interior acaba implodindo a fachada.

Enfim, decidir viver a experiência de buscar pensar e agir de forma autônoma foi um processo que exigiu muita reflexão e conversas com pessoas especiais, que também buscam o real sentido de se estar vivo. O diálogo é necessário para que consigamos sair do pensamento massificado para um tipo de pensar e agir mais significativo, que leve em consideração quem de fato somos no mundo e como queremos interagir com essa realidade social que nos é colocada. Pensar fora da caixa é um processo penoso, agir em conformidade com esse pensar é mais ainda. Mas essa é a única justificativa presente para nossa busca de sermos humanos."


Márcio Ramos