terça-feira, 31 de maio de 2016

O poder político

"O que eu quero dizer é o seguinte: é comum, pelo menos na sociedade européia, considerar que o poder está localizado nas mãos do governo e que ele é exercido por meio de certo numero de instituições especificas, como a administração pública, a policia, o exercito e o aparelho de Estado. Sabe-se que todas essas instituições são feitas para elaborar e transmitir certo numero de decisões em nome da nação ou do
Estado, para fazer que elas sejam aplicadas e para punir aqueles que não obedecem, Creio, porém, que o
poder político também é exercido por intermédio de certo número de instituições que, aparentemente, não
têm nada em comum com o poder político, como se fossem independentes dele, o que não e verdade.

Isso é sabido no que diz respeito à família, e sabemos que a universidade e, de maneira geral, todos os sistemas de
ensino, que aparentemente apenas difundem o conhecimento, são feitos para manter determinada classe social no poder e para excluir os instrumentos de poder de outra classe social. Instituições ligadas ao conhecimento, à previdência e a assistência, como medicina, também ajudam a sustentar o poder político. Isso
também é evidente, chegando a ser escandaloso, em certos casos relacionados a Psiquiatria.

Parece-me que a verdadeira tarefa política, em uma sociedade como a nossa, é criticar o funcionamento das instituições, que dão a impressão de ser neutras e independentes; criticá-las e atacá-las de tal maneira que a violência política,que sempre foi exercida de maneira obscura, por meio delas seja desmascarada, para que se possa combatê-las.

Essa critica e essa luta parece fundamental por diferentes razões: primeiramente, porque o poder político
tem raízes mais profundas do que se imagina; existem núcleos e pontos de apoio invisíveis e pouco
conhecidos; sua verdadeira resistência e solidez talvez se localizem onde ninguém espera encontrá-las.
Provavelmente não basta dizer que por trás dos governos e do aparelho de Estado existe uma classe dominante; é preciso revelar o local da ação, os espaços e as formas como essa dominação é exercida. Além disso, como essa dominação não é simplesmente a expressão em termos políticos de exploração econômica. Ela é seu instrumento e, em larga medida, a condição que a torna possível, a eliminação de uma é alcançada
por meio da compreensão exaustiva da outra. Bem se não conseguimos identificar esses pontos de apoio do
poder de classe, corremos o risco de permitir que eles continuem existindo e observar esse poder de classe se
reconstitui mesmo após um aparente processo revolucionário”.

Michael Foucault , in Natureza Humana,  Justiça  vs. Poder. Michael Foucault e Noam Chomsky. (pag,50-52).

sexta-feira, 13 de maio de 2016

MAGIA NEGRA

Magia negra era o Pelé jogando, Cartola compondo, Milton cantando. Magia negra é o poema de Castro Alves, o samba de Jovelina…

Magia negra é Djavan, Emicida, Mano Brow, Thalma de Mreitas, Simonal. Magia negra é Drogba, Fela kuti, Jam. Magia negra é dona Edith recitando no Sarau da Cooperifa. Carolina de Jesus é pura magia negra. Garrincha tinhas duas pernas mágicas e negras. James Brow. Milton Santos é pura magia.

Não posso ouvir a palavra magia negra que me transformo num dragão.

Michael Jackson e Jordan é magia negra. Cafu, Milton Gonçalves, Dona Ivone Lara, Jeferson De, Robinho, Daiane dos Santos é magia negra.

Fabiana Cozza, Machado de Assis, James Baldwin, Alice Walker, Nelson Mandela, Tupac, isso é o que chamo de magia negra.

Magia negra é Malcon X, Martin Luther King, Mussum, Zumbi, João Antônio, Candeia e Paulinho da Viola. Usain Bolt, Elza Soares, Sarah Vaughan, Billy Holliday e Nina Simone é magia mais do que negra.

Eu faço magia negra quando danço Fundo de Quintal e Bob Marley.

Cruz e Souza Zózimo, Spike Lee, tudo é magia negra neles. Umoja, Espírito de Zumbi, Afro Koteban…

É mestre Bimba, é Vai-Vai, é Mangueira todas as escolas transformando quartas-feira de cinza em alegria de primeira.

Magia negra é Sabotage, MV Bill, Anderson Silva.

Pepetela, Ondjaki, Ana Paula Tavares, João Mello… Magia negra.

Magia negra são os brancos que são solidários na luta contra o racismo.

Magia negra é o RAP, O Samba, o Blues, o Rock, Hip Hop de Africabambaataa.

Magia negra é magia que não acaba mais.

É isso e mais um monte de coisa que é magia negra.

O resto é feitiço racista.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

O arquiteto das cavernas

A teologia, a moral, a história e a experiência de cada dia nos ensinam que para alcançar o equilíbrio não há uma infinidade de segredos; há apenas um: submeter-se: "Aceitem o jugo", nos repetem, "e serão felizes; sejam algo, e estarão livres de suas penas." Realmente, tudo é ofício neste mundo: profissionais do tempo, funcionários da respiração, dignitários da esperança, um posto nos espera desde antes de nascer: nossas carreiras são preparadas nas entranhas de nossas mães. Membros de um universo oficial, devemos ocupar um lugar nele pelo mecanismo de um destino rígido, que só se relaxa a favor dos loucos; estes, pelo menos, não se veem obrigados a ter uma crença, a filiar-se a uma instituição, a sustentar uma ideia, a pretender uma empresa. Desde que a sociedade se constituiu, os que pretenderam subtrair-se a ela foram perseguidos ou achincalhados. Perdoa-se tudo, contanto que você tenha uma profissão, um subtítulo sob seu nome, um selo sobre seu nada. Ninguém tem a audácia de gritar: "Não quero fazer nada!"; se é mais indulgente com um assassino do que com um espírito liberado dos atos. Multiplicando as possibilidades de submeter-se, abdicando de sua liberdade, matando em si mesmo o vagabundo, foi assim que o homem refinou sua escravidão e submeteu-se aos fantasmas. Mesmo seus desprezos e rebeliões, só os cultivou para ser dominado por eles, servo que é de suas atitudes, de seus gestos e de seus humores. Saído das cavernas, guardou delas a superstição; era seu prisioneiro, tornou-se seu arquiteto. Perpetua sua condição primitiva com maior invenção e sutileza; mas, no fundo, aumentando ou diminuindo sua caricatura, plagia-se descaradamente. Charlatão movido por barbantes, suas contorções, suas caretas, ainda enganam.

Emil Cioran

À parte das coisas

É preciso uma considerável dose de inconsciência para entregar-se sem reservas a qualquer coisa. Os crentes, os apaixonados, os discípulos, só percebem uma face de suas deidades, de seus ídolos, de seus mestres. O entusiasta permanece inelutavelmente ingênuo. Há sentimento puro onde a mescla de graça e imbecilidade não se traia, e admiração devota sem eclipse da inteligência? Quem entrevê simultaneamente todos os aspectos de alguém ou de algo permanece para sempre indeciso entre o arrebatamento e o estupor. Disse que qualquer crença: que fausto do coração — e quanta ignomínia por baixo! É o infinito sonhado em um esgoto e que conserva, indeléveis, sua marca e seu fedor. Há um notário em cada santo, um quitandeiro em todo herói, um porteiro no mártir. No fundo dos suspiros esconde-se uma careta; aos sacrifícios e às orações misturam-se os vapores do bordel terrestre. Consideremos o amor: há expansão mais nobre, arrebatamento menos suspeito? Seus estremecimentos competem com a música, rivalizam com as lágrimas da solidão e do êxtase: é o sublime, mas um sublime inseparável das vias urinárias: transportes vizinhos à excreção, céu das glândulas, santidade súbita dos orifícios… Basta um momento de atenção para que essa embriaguez, abalada, nos lance nas imundícies da fisiologia, ou um instante de fadiga para constatar que tanto ardor só produz uma variedade de ranho. O estado de vigília altera o sabor de nossos arroubos e transforma quem os sofre em um visionário pisoteando pretextos inefáveis. Não se pode amar e conhecer ao mesmo tempo, sem que o amor padeça e expire sob o olhar do espírito. Investigue suas admirações, perscrute os beneficiários de seu culto e os que se aproveitam de seus abandonos: sob seus pensamentos mais desinteressados descobrirá o amor-próprio, o aguilhão da glória, a sede de domínio e de poder. Todos os pensadores são fracassados da ação que se vingam de seu fracasso por meio de conceitos. Nascidos aquém dos atos, os exaltam ou os menosprezam, conforme aspirem ao reconhecimento dos homens ou à outra forma de glória: seu ódio; elevam indevidamente suas próprias deficiências, suas próprias misérias à categoria de leis, sua futilidade ao nível de princípios.

O pensamento é uma mentira, como o amor e a fé. Pois as verdades são fraudes e as paixões, odores; e, no final das contas, a escolha está entre o que mente e o que fede.

Emil Cioran

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Educação étnico-racial: reflexões iniciais

Márcio Ramos

A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem um história tornar-se a única história  “

Chimamanda Adichie

A escola ainda é um dos locais fundamentais na formação do sujeito. Geralmente é no momento de chegada à escola que o mundo da criança se amplia e ela percebe o quão diferente as pessoas são, que ela que ela terá que lidar com essa realidade e estabelecer laços para se acomodar minimamente nesse novo mundo. A escola contribuirá para a formação dessa criança através de uma outra narrativa, diferente da que ela tinha acesso em seu grupo familiar e social.

É importante que essa narrativa que a escola constrói e transmite aos alunos que aqui chegam, dê conta da multiplicidade da experiência humana. Não se pode mais conceber uma educação que se baseie em uma interpretação única de mundo, ou que apenas reforce a visão das famílias sobre a realidade. A escola precisa ampliar o olhar de cada educando, dando-lhes asas, no dizer de Rubem Alves.

Neste contexto, uma educação étnico-racial é necessária. Principalmente em nosso país, formado por mais de 50 % de negros, marcado por mais de 300 anos de escravidão e que ainda não deu conta de resolver o grave problema do racismo e a inclusão social dos negros. Nos negamos a enfrentar a questão e adotamos o mito da democracia racial para manter uma aparência de paz social. Mas a necessidade da criação de uma lei que determina o ensino da história e cultura afro-brasileia nos mostra o quanto o problema ainda permanece.

Para se efetivar a implementação da Lei 10639 em sala de aula, algumas reflexões são necessárias. Penso que existem duas ações necessárias e complementares neste processo. A primeira linha de ação diz respeito ao nosso conhecimento sobre a África e sua relação com o Brasil e a discussão da temática com nossos alunos. O outro aspecto diz respeito à forma como lidamos com nossos alunos negros em sala de aula e como incentivarmos o respeito à diversidade e o combate ao racismo.

Sejamos realistas, o nosso conhecimento sobre os povos não europeus é muito precário. Os povos do “Oriente” e africanos aparecem em nossa cosmovisão como exóticos,estranhos, os “outros”. A maior parte das informações que temos tem origem nos programas de TV e de filmes, que caricaturizam a história e a cultura desses povos. É necessário um grande esforço para desnaturalizarmos essa visão, para conseguirmos ir além dessa narrativa hegemônica a que estamos submetidos.

O primeiro erro é pensar a África como um país. Sim, muitas vezes nos referimos à África como um país, esquecendo que o continente africano é formado por mais de 50 países, que são distintos entre si, tanto do ponto de vista geográfico, como político, econômico e cultural. Essas diferenças se dão pelo tamanho do continente e por sua história. Precisamos discutir com nossos alunos sobre essa diversidade e não tratar toda a África como algo uniforme. É necessário combatermos a visão midiática de que a África é uma região só de guerras civis, epidemias e pobreza. Apesar das dificuldades enfrentadas pela maior parte do continente, essa não é a realidade de todos os países africanos. Países como Seicheles e Maurícia possuem IDH maior do que o Brasil. Grande parte dos países conquistaram sua independência a pouco mais de 50 anos, estão se constituindo enquanto Nação e logicamente enfrentam dificuldades nesse processo.

Precisamos mostrar a nossos alunos que todos nós temos uma origem africana. Os primeiros homens viveram na África e lá se desenvolveram grandes civilizações, como o Egito Antigo. Muitas vezes falamos do Egito como se ele não fosse africano, e o cinema e novelas reforçam essa visão ao retratar os egípcios como brancos. Perceber as contribuições técnicas e culturais é importante para resignificarmos a imagem e o papel do negro na história. Os professores podem mostrar a técnica altamente desenvolvida pelos africanos na construção das pirâmides, seus conhecimentos medicinais e metalúrgicos.

A obrigatoriedade legal de se estudar história e cultura africana, assim como a indígena, pode nos proporcionar a oportunidade de tratar esses povos em sua humanidade. Ou seja, às vezes sempre partimos da discussão sobre a escravidão e podemos reforçar a imagem dos negros como escravo. Quando discutimos sobre escravidão, negro parece ser sinônimo de escravo. Por isso é preciso um cuidado muito grande na seleção e análise de imagens e textos para o trabalho escolar. Temos que problematizar a experiência histórica desses seres humanos, seus desejos, suas lutas, sua resistência.

Discutir e tratar as religiões de origem africana como parte da herança cultural da humanidade é essencial. Mostrar como as religiões tradicionais africanas valorizam a ancestralidade como força definidora da identidade de cada um pode levar nossos alunos a valorizar a história e origem de seu grupo familiar e social, combatendo esse imediatismo contemporâneo. Às vezes temos dificuldades em discutir as religiões de matriz africana devido ao forte preconceito presente em nossa sociedade. Mas porque não dar o mesmo valor a essas manifestações culturais assim como dado a mitologia grega?

Um detalhe importante sobre as religiões existentes na África é que, ao lado das religiões tradicionais, temos a presença do islamismo, principalmente no norte do continente, assim como das religiões cristãs. Homogeneizar a experiencia religiosa africana é empobrecer nosso conhecimento sobre ela.

Da mesma forma que o conhecimento sobre a África e suas contribuições para a formação da sociedade brasileira são importantes para permitir a formação de identidade dos alunos, a forma como lidamos com as questões suscitadas nos conflitos do dia a dia na escola, também é definidora de uma boa educação étnico-racial. Não podemos jogar para debaixo do tapete situações de discriminação e racismo.

Não podemos apenas realizar comemorações esporádicas e especificas como o Dia da Consciência Negra e não enfrentar nossa dificuldade em lidar com a questão racial. Não basta o tema estar no currículo oficial da escola, se no currículo oculto negamos a esse sujeito sua humanidade. Continuar o debate e construir ações para uma educação que respeite a diversidade e as várias narrativas existenciais  é o desafio que temos pela frente e toda a comunidade escolar precisa se apropriar desta importante discussão.