sábado, 31 de março de 2018

Na noite terrível

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,  
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,  
Relembro, velando em modorra incômoda,  
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.  
Relembro, e uma angústia  
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.  
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!  
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.  
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.  
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,  
Na ilusão do espaço e do tempo,  
Na falsidade do decorrer. 

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;  
O que só agora vejo que deveria ter feito, 
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —  
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,  
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver ... 

Se em certa altura  
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;  
Se em certo momento  
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;  
Se em certa conversa  
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —  
Se tudo isso tivesse sido assim,  
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro  
Seria insensivelmente levado a ser outro também. 

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,  
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;  
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;  
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,  
Claras, inevitáveis, naturais,  
A conversa fechada concludentemente,  
A matéria toda resolvida...  
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói. 

O que falhei deveras não tem sperança nenhuma  
Em sistema metafísico nenhum.  
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,  
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?  
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.  
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos, 

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca  
Como uma verdade de que não partilho,  
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim.

Álvaro de Campos, 11-5-1928

APOSTILA


Aproveitar o tempo!  

Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?  Aproveitar o tempo!  

Nenhum dia sem linha...  

O trabalho honesto e superior...  
O trabalho à Virgílio, à Mílton...  
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!  
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!


Aproveitar o tempo!  
Tirar da alma os bocados precisos - nem mais nem menos -  
Para com eles juntar os cubos ajustados  
Que fazem gravuras certas na história  
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...  
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,  
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,  
E a vontade em carambola difícil. 
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos -  
Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.


Verbalismo... 
Sim, verbalismo... 
Aproveitar o tempo! 
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça... 
Não ter um acto indefinido nem factício...


Não ter um movimento desconforme com propósitos... 
Boas maneiras da alma... 
Elegância de persistir...


Aproveitar o tempo!  
Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.  
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.  
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.  
Aproveitar o tempo!  
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.  
Aproveitei-os ou não?  
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!


(Passageira que viajas tantas vezes no mesmo compartimento comigo  
No comboio suburbano,  
Chegaste a interessar-te por mim?  
Aproveitei o tempo olhando para ti? 
Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante? 
Qual foi o entendimento que não chegámos a ter?  
Qual foi a vida que houve nisto?


Que foi isto a vida?)


 


Aproveitar o tempo!  
Ah, deixem-me não aproveitar nada!  
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...  
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,  
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,  
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,  
O pião do garoto, que vai a parar, 


E estremece, no mesmo movimento que o da terra,  
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,  
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.

Álvaro de Campos, (11-4-1928)

quarta-feira, 21 de março de 2018

Igual-Desigual


Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são
iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as acções, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa
                                                              
Ninguém é igual a ninguém.
Todo o ser humano é um estranho
ímpar.

Carlos Drummond de Andrade, in 'A Paixão Medida'

quarta-feira, 14 de março de 2018

Passagem das horas

Passo adiante, nada se me figura; sou estrangeiro.
As mulheres que chegam às portas depressa
Viram apenas que eu passei.
Estou sempre do lado de lá da esquina dos que me querem ver,
Inatingível a metas e encrustamentos.

Ó tarde, que reminiscências!
Ontem ainda, criança que se debruçava no poço,
Eu via com alegria meu rosto para lá da água longínqua.
Hoje, homem, vejo meu rosto na água funda do mundo,
Mas se rio é só porque fui outrora
A criança que viu com alegria seu rosto no fundo do poço.

Sinto-os a todos substância da minha pele.
Toco no meu braço e eles estão ali.
Os mortos - eles nunca me deixam!
Nem as pessoas mortas, nem os lugares do passado, nem os dias.
E às vezes entre o ruído das máquinas da fábrica
Toca-me levemente uma saudade no braço
E eu viro-me...  e eis no quintal da minha casa antiga
A criança que fui ignorando ao sol quem eu haveria de ser.

Álvaro de Campos

domingo, 4 de março de 2018

Madrigal Melancólico


O QUE EU ADORO em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.

A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento.
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.

Bandeira, Manuel, "Madrigal Melancólico"

sábado, 3 de março de 2018

Ode ao mar


As viagens, os viajantes — tantas espécies deles!

Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente!

Tanto destino diverso que se pode dar à vida,

Ë vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!

Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas

E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente.

A fraternidade afinal não é uma ideia revolucionária.

É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo,

E passa a achar graça ao que tem que tolerar,

E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou!

(...)

A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano.

Pobre gente! pobre gente toda a gente!


Álvaro de Campos