sábado, 30 de novembro de 2019

A "feiúra" que "embeleza".

Pecola está em algum lugar naquela casinha marrom para onde ela e a mãe se mudaram, nos limites da cidade, e onde, de vez em quando, ainda dá para vê-la. Os gestos de passarinho se reduziram a um mero catar e colher entre os aros de pneus e os girassóis, entre as garrafas de coca-cola e a serralha brava, entre todo o lixo e a beleza do mundo – que é o que ela própria era. Todo o nosso lixo,  que jogamos em cima dela e que ela absorveu. E toda a nossa beleza, que foi primeiro dela e que ela deu a nós. Todos nós— todos os que a conheceram – nos sentíamos tao higiênicos depois de nos limparmos nela. Éramos tão bonitos quando montávamos na sua feiura. A simplicidade dela nos condecorava, sua culpa nos santificava, sua dor nos fazia reluzir de
saúde, seu acanhamento nos fazia pensar que tínhamos senso de humor. Sua dificuldade de expressão nos fazia acreditar que éramos eloquentes. Sua pobreza nos mantinha generosos. Até seus devaneios usamos - para silenciar nossos próprios pesadelos. E ela nos deixou fazer isso e, portanto, merece nosso desprezo. Nela, afiamos o nosso ego, com a fragilidade dela reforçamos nosso caráter, e bocejávamos na fantasia de nossa força.

E era fantasia, pois não éramos fortes, apenas agressivos; não éramos livres, meramente autorizados; não éramos compassivos, éramos polidos; não bons, mas bem-comportados. Cortejávamos a morte a fim de nos chamarmos de corajosos, e escondíamo-nos da vida como ladrões. Substituímos intelecto por boa gramática;  mudávamos os hábitos para simular maturidade; rearranjávamos mentiras e as chamávamos de verdade, vendo no padrão novo de uma ideia antiga a Revelação e a Palavra.

Ela, porém, avançou para a loucura, uma loucura que a protegeu de nós simplesmente porque, no fim, nos entediou.

Toni Morrison. O olho mais azul, pag. 205

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Estética opressora

         "Fazia muito tempo que ela tinha abandonado a ideia de fugir para ver imagens novas, rostos novos, como Sammy fizera tantas vezes. Ele nunca a levava e nunca pensava na fuga com antecedência, portanto nunca a planejava. E, de todo jeito, não teria dado certo. Enquanto ela tivesse a aparência que tinha, enquanto fosse feia, teria que ficar com aquelas pessoas. Por algum motivo ela lhes pertencia. Passava longas horas sentada diante do espelho, tentando descobrir o segredo da feiura, a feiura que a fazia ignorada ou desprezada na escola, tanto pelos professores quanto pelos colegas. Era a única pessoa da classe sentava sozinha numa carteira dupla. A primeira letra do seu sobrenome sempre a obrigava a sentar na frente. Mas e Marie Apollinaire? Marie ficava na sua frente, mas dividia a carteira com Luke Angelino.Os professores sempre a tinham tratado daquele jeito. Tentavam não olhar para ela, e só a chamavam quando todos tinham que  dar uma resposta. Ela também sabia que, quando uma das meninas da escola queria ofender de verdade um menino ou quando queria obter uma reação imediata dele, podia dizer "Bobby gosta da Pecola Breedlove! Bobby gosta da Pecola Breedlove!" e nunca deixava de provocar gargalhadas de quem ouvisse e raiva fingida do acusado.
             Tinha ocorrido a Pecola, havia algum tempo, que, se os seus olhos, aqueles olhos que retinham as imagens e conheciam as cenas, fossem diferentes, ou seja, bonitos, ela seria diferente. Tinha bons dentes, e o nariz, pelo menos, não era grande e chato como o de algumas garotas que eram consideradas tão bonitinhas. Se tivesse outra aparência, se fosse bonita, talvez Cholly fosse diferente, e a sra. Breedlove também. Talvez eles dissessem: ‘Ora, vejam que olhos bonitos os da Pecola. Não devemos fazer coisas ruins na frente desses olhos bonitos."

Toni Morrison. O olho mais azul, pag. 49.

A feiúra



Os Breedlove não moravam na parte da frente de uma loja por estarem passando por dificuldades temporárias, adaptando-se aos cortes na fábrica. Moravam ali por serem pobres e negros, e ali permaneciam porque se achavam feios. Embora sua pobreza fosse tradicional e embrutecedora, não era exclusiva. Mas sua feiura era exclusiva. Ninguém teria conseguido convencê-los de que não eram implacável e agressivamente feios. Com exceção do pai, Cholly, cuja feiura (resultado de desespero, dissipação e violência dirigida a ninharias e a pessoas fracas) era o comportamento, o resto da família - a sra. Breedlove, Sammy Breedlove e Pecola Breedlove - usava a feiura, vestia-a, por assim dizer, embora ela não lhe pertencesse. Os olhos, pequenos e muito juntos, sob uma testa estreita. O contorno do couro cabeludo baixo, irregular, que parecia ainda mais irregular pelo contraste com as sobrancelhas retas e densas que quase se juntavam. Nariz afilado mas arqueado com narinas insolentes. Tinham maçãs do rosto altas e orelhas de abano. Lábios bem-feitos que chamavam a atenção não para si, mas para o resto do rosto. A gente olhava para eles e ficava se perguntando por que eram tão feios; olhava com atenção e não conseguia encontrar a fonte. Depois percebia que ela vinha da convicção, da convicção deles. Era como se algum misterioso patrão onisciente tivesse dado a cada um deles uma capa de feiura para usar e eles a tivessem aceitado sem fazer perguntas. O patrão dissera: "Vocês são feios". Eles tinham olhado ao redor e não viram nada para contradizer a afirmação; na verdade, viram sua confirmação em cada cartaz de rua, cada filme, cada olhar. "Sim", disseram. "O senhor tem razão." E tomaram a feiura nas mãos, cobriram-se com ela como se fosse um manto e saíram pelo mundo. Cada um lidando com ela do seu jeito. A sra. Breedlove lidava com a sua da maneira como um ator lida com um recurso cênico: para acomposição da personagem, para dar apoio ao papel que ela frequentemente imaginava fosse o seu - o de mártir. Sammy usava a dele como uma arma para causar dor aos outros. Adaptou seu comportamento a ela, escolhia os companheiros com base nela: pessoas que podiam ficar fascinadas, até intimidadas com ela. E Pecola. Pecola escondia-se por trás da sua. Oculta, velada, eclipsada muito raramente espiando por trás do véu, e mesmo assim só para ansiar pelo retorno da máscara.

Toni Morrison. O olho mais azul, pag. 43.