Pecola está em algum lugar naquela casinha marrom para onde ela e a mãe se mudaram, nos limites da cidade, e onde, de vez em quando, ainda dá para vê-la. Os gestos de passarinho se reduziram a um mero catar e colher entre os aros de pneus e os girassóis, entre as garrafas de coca-cola e a serralha brava, entre todo o lixo e a beleza do mundo – que é o que ela própria era. Todo o nosso lixo, que jogamos em cima dela e que ela absorveu. E toda a nossa beleza, que foi primeiro dela e que ela deu a nós. Todos nós— todos os que a conheceram – nos sentíamos tao higiênicos depois de nos limparmos nela. Éramos tão bonitos quando montávamos na sua feiura. A simplicidade dela nos condecorava, sua culpa nos santificava, sua dor nos fazia reluzir de
saúde, seu acanhamento nos fazia pensar que tínhamos senso de humor. Sua dificuldade de expressão nos fazia acreditar que éramos eloquentes. Sua pobreza nos mantinha generosos. Até seus devaneios usamos - para silenciar nossos próprios pesadelos. E ela nos deixou fazer isso e, portanto, merece nosso desprezo. Nela, afiamos o nosso ego, com a fragilidade dela reforçamos nosso caráter, e bocejávamos na fantasia de nossa força.
E era fantasia, pois não éramos fortes, apenas agressivos; não éramos livres, meramente autorizados; não éramos compassivos, éramos polidos; não bons, mas bem-comportados. Cortejávamos a morte a fim de nos chamarmos de corajosos, e escondíamo-nos da vida como ladrões. Substituímos intelecto por boa gramática; mudávamos os hábitos para simular maturidade; rearranjávamos mentiras e as chamávamos de verdade, vendo no padrão novo de uma ideia antiga a Revelação e a Palavra.
Ela, porém, avançou para a loucura, uma loucura que a protegeu de nós simplesmente porque, no fim, nos entediou.
Toni Morrison. O olho mais azul, pag. 205