sábado, 22 de junho de 2019

Assim na terra como embaixo da terra.

"Quem derramar o sangue do homem, pelo homem o seu sangue será derramado; porque Deus fez o homem conforme a sua imagem." Esse versículo da Biblia permanecia pregado na porta do seu armário no quartel. Todos sabiam que era um homem de fé e de sangue. Acreditava que se Deus fez o homem conforme a sua imagem, então a justiça de Deus deveria ser feita por intermédio do homem, ja que todo ser humano é a manifestação de Deus na Terra.
Quando um homem mata um homem, ele mata a imagem de Deus; e, assim, a imagem de Deus torna-se assassina e assassinada ao mesmo tempo. Era comum cair em longos silencios depois de matar. Por um lado, justiça havia sido
feita; por outro, um pouco de Deus estava morto.(...)

O confinamento de homens assemelha-se a um curral de animais O gado é abatido para se transformar em alimentos; os homens, por sua vez, são abatidos para deixarem  de existir. Não é um lugar de recuperação ou coisa que o
valha, é um curral para se amontoarem os indesejados, muito semelhante aos espaços destinados às montanhas  de lixo, que ninguém quer lembrar que existem, ver ou  sentir seus odores.

Ana Paula Maia. "Assim na terra como embaixo da terra. "

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Os Três Mal Amados

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

João Cabral de Melo Neto




quarta-feira, 5 de junho de 2019

Vozes

Vozes, vozes, vozes...
Falatório sem sentido.
Incapacidade de intervenção nesse caos...
Recorte do grande circo que tem sido a experiência humana. 

A Náusea se aproxima. Sucumbo-me à sua força.