sábado, 4 de novembro de 2023

Murar o medo

Murar o Medo O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas.

Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos.

Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura e do meu território. O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte, vislumbravam-se mais muros do que estradas.

Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há, neste mundo, mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional. Os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo.

Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis e Carl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência. O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo, cometeram-se as mais indizíveis barbaridades.

Em nome da segurança mundial, foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história. A mais grave dessa longa herança de intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A Guerra Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo: a Oriente e a Ocidente e, por que se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação. Precisamos de intervenção com legitimidade divina.

O que era ideologia passou a ser crença. O que era política, tornou-se religião. O que era religião, passou a ser estratégia de poder.

Para fabricar armas, é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos, é imperioso sustentar fantasmas.

A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas, precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais, precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.

Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”. Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade, imprevisível.

Vivemos como cidadãos, e como espécie, em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa. Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas, como por exemplo, estas: por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento? Por que motivo se gastou, apenas no ano passado, um trilhão e meio de dólares em armamento militar? Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi? Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça? Se queremos resolver e não apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes.

Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra.

Essa arma chama-se fome. Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome.

O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda uma outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi — ou será — vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que, sobre uma grande parte do nosso planeta, pesa uma condenação antecipada pelo fato simples de serem mulheres.

A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção.

Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não há hoje, no mundo um muro, que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente. Citarei Eduardo Galiano acerca disto, que é o medo global, e dizer:

“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras.

E, se calhar, acrescento agora eu: há quem tenha medo que o medo acabe. Muito obrigado.

Discurso proferido por Mia Couto, na Conferência de Estoril, em 2011.










sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Logo vou te encontrar

Logo vou te encontrar.

Mas a dúvida vai além de saber com que roupa eu vou.

Qual o sorriso que escolho?

Preciso escolher que palavras vão estar na minha boca além da cor do batom?

Qual a cor da minha voz quando eu for dizer teu nome?

A única coisa que já me escolheu

Foi o brilho dos meus olhos.

Esse já está em mim..

Mas o que mais me admira é escolher com qual coração eu vou.

Posso levar meu coração partido e te pedir: conserta.

Posso levar meu coração cheio de abismos e te pedir: salva-me.

Pensei em levar meu coração criança e te pedir: ensina-me.

Mas trago meu coração vazio e te convido.. entra.

Ana Claudia Quintana Arantes

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Para ser grande, sê inteiro

Para ser grande, sê inteiro: nada
      Teu exagera ou exclui. 
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és 
      No mínimo que fazes. 
Assim em cada lago a lua toda 
      Brilha, porque alta vive.

14 - 2 - 1933 

 

REIS, Ricardo, Poesia

Estás só. Ninguém o sabe

Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada esperes que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.

6-4-1933
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Auto retrato

No retrato que me faço
– traço a traço –
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore…

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança…
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão…

e, desta lida, em que busco
– pouco a pouco –
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança

Mário Quintana 

sexta-feira, 3 de março de 2023

Quero ser uma obra de arte

"Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares
frescos e das luzes francas - onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza."

Bernardo Soares. O livro do desassossego.

O amor passou

Quanto a mim... 
O amor passou. 
Peço que não faça como a gente vulgar, 
Que não me volte a cara quando passe por si, 
Nem tenha de mim uma recordação 
Em que entre o rancor. 
Fiquemos, um perante o outro, 
Como dois conhecidos desde a infância, 
Que se amaram um pouco quando meninos, 
E, embora na vida adulta 
Sigam outras afeições, conservam sempre, 
Num escaninho da alma, 
A memória profunda do seu amor antigo e inútil.

Álvaro de Campos


domingo, 26 de fevereiro de 2023

Não: devagar

Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.
Devagar...

Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...

Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
TaIvez a impressão dos momentos seja muito próxima...

Talvez isso tudo...

Álvaro de Campos

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

MARIA: Amo como o amor ama.



                MARIA:

Amo como o amor ama.

Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.

Que queres que te diga mais que te amo,

Se o que quero dizer-te é que te amo?

Não procures no meu coração...

Quando te falo, dói-me que respondas

Ao que te digo e não ao meu amor.

Quando há amor a gente não conversa:

Ama-se, e fala-se para se sentir.

Posso ouvir-te dizer-me que tu me amas,

Sem que mo digas, se eu sentir que me amas.

Mas tu dizes palavras com sentido,

E esqueces-te de mim; mesmo que fales

Só de mim, não te lembras que eu te amo.

Ah, não perguntes nada, antes me fala

De tal maneira, que, se eu fora surda,

Te ouvisse toda com o coração.

Se te vejo não sei quem sou; eu amo.

Se me faltas, (...)

Mas tu fazes, amor, por me faltares

Mesmo estando comigo, pois perguntas

Quando deves amar-me. Se não amas,

Mostra-te indiferente, ou não me queiras,

Mas tu és como nunca ninguém foi,

Pois procuras o amor pra não amar,

E, se me buscas, é como se eu só fosse

O Alguém pra te falar de quem tu amas.

Diz-me porque é que o amor te faz ser triste?

Canso-te? Posso eu cansar-te se amas?

Ninguém no mundo amou como tu amas.

Sinto que me amas, mas que a nada amas,

E não sei compreender isto que sinto.

Dize-me qualquer palavra mais sentida

Que essas palavras que, como se as perderas,

                                                               buscas

E encontras cinzas.

Quando te vi, amei-te já muito antes.

Tornei a achar-te quando te encontrei.

Nasci pra ti antes de haver o mundo.

Não há coisa feliz ou hora alegre

Que eu tenha tido pela vida fora,

Que não o fosse porque te previa,

Porque dormias nela tu futuro,

E com essas alegrias e esse prazer

Eu viria depois a amar-te. Quando,

Criança, eu, se brincava a ter marido,

Me faltava crescer e o não sentia,

O que me satisfazia eras já tu,

E eu soube-o só depois, quando te vi,

E tive para mim melhor sentido,

E o meu passado foi como uma estrada

Iluminada pela frente, quando

O carro com lanternas vira a curva

Do caminho e já a noite é toda humana.

Tens um segredo? Dize-mo, que eu sei tudo

De ti, quando m'o digas com a alma.

Em palavras estranhas que m'o fales,

Eu compreenderei só porque te amo.

Se o teu segredo é triste, eu saberei

Chorar contigo até que o esqueças todo.

Se o não podes dizer, dize que me amas,

E eu sentirei sem qu'rer o teu segredo.

Quando eu era pequena, sinto que eu

Amava-te já hoje, mas de longe,

Como as coisas se podem ver de longe,

E ser-se feliz só por se pensar

Em chegar onde ainda se não chega.

Amor, diz qualquer coisa que eu te sinta!

                FAUSTO:

Compreendo-te tanto que não sinto.

Oh coração exterior ao meu!

Fatalidade filha do destino

E das leis que há no fundo deste mundo!

Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto

De o sentir...?

                MARIA:

Para que queres compreender

Se dizes qu'rer sentir?

s.d.
Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Não tenho pressa

Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua.

Ninguém anda mais depressa do que as pernas que tem.

Se onde quero estar é longe, não estou lá num momento.

Sim: existo dentro do meu corpo.

Não trago o sol nem a lua na algibeira.

Não quero conquistar mundos porque dormi mal,

Nem almoçar o mundo por causa do estômago.

Indiferente?

Não: filho da terra, que se der um salto, está em falso,

Um momento no ar que não é para nós,

E só contente quando os pés lhe batem outra vez na terra,

Traz! na realidade que não falta!

Não tenho pressa. Pressa de quê?

Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.

Ter pressa é crer que a gente passe adiante das pernas,

Ou que, dando um pulo, salte por cima da sombra.

Não; não tenho pressa.

Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega -

Nem um centímetro mais longe.

Toco só aonde toco, não aonde penso.

Só me posso sentar aonde estou.

E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,

Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,

E somos vadios do nosso corpo.

E estamos sempre fora dele porque estamos aqui.



Alberto Caeiro 

sábado, 18 de fevereiro de 2023

NÃO SE MATE

 

Carlos, sossegue, o amor 
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo 
e segunda-feira ninguém sabe 
o que será. 

Inútil você resistir 
ou mesmo suicidar-se. 
Não se mate, oh não se mate, 
reserve-se todo para 
as bodas que ninguém sabe 
quando virão, 
se é que virão. 

O amor, Carlos, você telúrico, 
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
la dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe 
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico, vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro 
e as luzes todas se apagam. 
O amor no escuro, não, no claro, 
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá. 

Carlos Drummond de Andrade, ANTOLOGIA POÉTICA, ed. Dom Quixote

Fiquei doido, fiquei tonto…


Fiquei doido, fiquei tonto...
Meus beijos foram sem conto,
Apertei-a contra mim,
Aconcheguei-a em meus braços,
Embriaguei-me de abraços...
Fiquei tonto e foi assim...
Sua boca sabe a flores,
Bonequinha, meus amores,
Minha boneca que tem
Bracinhos para enlaçar-me,
E tantos beijos p'ra dar-me
Quantos eu lhe dou também.
Ah que tontura e que fogo!
Se estou perto dela, é logo
Uma pressa em meu olhar,
Uma música em minha alma,
Perdida de toda a calma,
E eu sem a querer achar.
Dá-me beijos, dá-me tantos
Que, enleado nos teus encantos,
Preso nos abraços teus,
Eu não sinta a própria vida,
Nem minha alma, ave perdida
No azul-amor dos teus céus.
Não descanso, não projecto
Nada certo, sempre inquieto
Quando te não beijo, amor,
Por te beijar, e se beijo
Por não me encher o desejo
Nem o meu beijo melhor.

Fernando Pessoa

s.d.

- 35.Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

O homem sorumbático não tão melancólico

O homem que se dizia sorumbático acordou pensando na mulher. Acordou pensando ter sentido o seu cheiro inesquecível, de ter ouvido sua respiração ofegante e vislumbrando suas curvas sobre a cama onde estava.

Ao abrir os olhos, entendeu que o que sentia era um misto de saudades e de desejo. De desejo misturado a lembrança do prazer dos lábios da mulher, do seu toque, de sua risada gratuita e de tesão abundante.

O homem sorriu tentando rascunhar o que sentia em uma folha de papel. Sorriu porque percebeu que o que vinha à mente era um amontoado de clichês absorvidos ao longo de sua vida, como as frases das músicas que ele dizia nas horas de intimidade e prazer, que sempre faziam a mulher sorrir.

Mas o que o homem queria dizer, escrever, naquele momento, se tivesse a habilidade e a competência dos poetas que tanto lia, era que conhecer a mulher havia permitido a ele se aventurar em experiências da vida menos melancólicas, mais prazerosas, abençoado pelo deus Baco e por Eros.

Ao se levantar para o trabalho diário, sem conseguir concluir o que rascunhara, o homem abriu a janela e sorriu novamente,  concluindo que não era necessário explicar, delimitar, conceituar o que sentia. Preferiu aceitar a contigência da existência e a sua capacidade de aproximar os improváveis.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

É FÁCIL TROCAR AS PALAVRAS


É fácil trocar as palavras
Dificil é interpretar os silêncios!
É fácil caminhar lado a lado,
Difícil é saber como se encontrar!
É fácil beijar o rosto,
Difícil é chegar ao coração!

É fácil apertar as mãos,
Difícil é reter o calor!

É fácil sentir o amor,
Difícil é conter sua torrente!

Como é por dentro outra pessoa?
Quem é que o saberá sonhar?

A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;

As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,

Com a suposição
De qualquer semelhança no fundo.”

Fernando Pessoa

Deve chamar-se tristeza

Deve chamar-se tristeza
Isto que não sei que seja
Que me inquieta sem surpresa,
Saudade que não deseja.

Sim, tristeza — mas aquela
Que nasce de conhecer
Que ao longe está uma estrela
E ao perto está não a ter.

Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
De entre as mãos ricas de pó.

*

19-8-1930

Fernando Pessoa

In Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990).

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Eu nunca fiz senão sonhar.

L. do D.

Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para dentro de mim pude esquecer-me na visão do seu movimento.

Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho longínquo. Nas minhas próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumam — quase na distância das minhas paisagens sonhadas, tinham uma doçura de sonho em relação às outras partes de paisagem — uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar.

A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda, e só na minha morte me abandonará. Não alinho hoje nas minhas gavetas carros de linha e peões de xadrez — com um bispo ou um cavalo acaso sobressaindo — mas tenho pena de o não fazer... e alinho na minha imaginação, confortavelmente, como quem no Inverno se aquece a uma lareira, figuras que habitam, e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas.

Alguns passam dificuldades, outros têm uma vida boémia, pitoresca e humilde. Há outros que são caixeiros-viajantes. (Poder sonhar-me caixeiro-viajante foi sempre uma das minhas grandes ambições — irrealizada infelizmente!) Outros moram em aldeias e vilas lá para as fronteiras de um Portugal dentro de mim; vêm à cidade, onde por acaso os encontro e reconheço, abrindo-lhes os braços, numa atracção... E quando sonho isto, passeando no meu quarto, falando alto, gesticulando... quando sonho isto, e me visiono encontrando-os, todo eu me alegro, me realizo, me pulo, brilham-me os olhos, abro os braços e tenho uma felicidade enorme, real.

Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram! O que eu sinto quando penso no passado, que tive no tempo real, quando choro sobre o cadáver da vida da minha infância ida..., isso mesmo não atinge o fervor doloroso e trémulo com que choro sobre não serem reais as figuras humildes dos meus sonhos, as próprias figuras secundárias que me recordo de ter visto uma só vez, por acaso, na minha pseudovida, ao virar uma esquina da minha visionação, ao passar por um portão numa rua que subi e percorri por esse sonho fora.

A raiva de a saudade não poder reavivar e reerguer nunca é tão lacrimosa contra Deus, que criou impossibilidades, do que quando medito que os meus amigos de sonho, com quem passei tantos detalhes de uma vida suposta, com quem tantas conversas iluminadas, em cafés imaginários, tenho tido, não pertenceram, afinal, a nenhum espaço onde pudessem ser, realmente, independente da minha consciência deles!

Oh, o passado morto que eu trago comigo e nunca esteve senão comigo! As flores do jardim da pequena casa de campo e que nunca existiu senão em mim. As hortas, os pomares, o pinhal da quinta que foi só um meu sonho! As minhas vilegiaturas supostas, os meus passeios por um campo que nunca existiu! As árvores de à beira da estrada, os atalhos, as pedras, os camponeses que passam... tudo isto, que nunca passou de um sonho, está guardado em minha memória a fazer de dor e eu, que passei horas a sonhá-los, passo horas depois a recordar tê-los sonhado e é, na verdade, saudade que eu tenho, um passado que eu choro, uma vida real morta que fito, solene, no seu caixão.

Há também as paisagens e as vidas que não foram inteiramente interiores. Certos quadros1 sem subido relevo artístico, certas oleogravuras que havia em paredes com que convivi muitas horas — passam a realidade dentro de mim. Aqui a sensação era outra, mais pungente e triste. Ardia-me não poder estar ali, quer eles fossem reais ou não. Não ser eu, ao menos, uma figura a mais, desenhada ao pé daquele bosque ao luar que havia numa pequena gravura dum quarto onde dormi já não em pequeno! Não poder eu pensar que estava ali oculto, no bosque à beira do rio, por aquele luar eterno (embora mal desenhado), vendo o homem que passa num barco por baixo do debruçar-se de um salgueiro! Aqui o não poder sonhar inteiramente doía-me. As feições da minha saudade eram outras. Os gestos do meu desespero eram diferentes. A impossibilidade que me torturava era de outra ordem de angústia. Ah, não ter tudo isto um sentido em Deus, uma realização conforme o espírito de nossos desejos, não sei onde, por um tempo vertical, consubstanciado com a direcção das minhas saudades e dos meus devaneios! Não haver, pelo menos só para mim, um paraíso feito disto! Não poder eu encontrar os amigos que sonhei, passear pelas ruas que criei, acordar, entre o ruído dos galos e das galinhas e o rumorejar matutino da casa, na casa de campo em que eu me supus... e tudo isto mais perfeitamente arranjado por Deus, posto naquela perfeita ordem para existir, na precisa forma para eu o ter que nem os meus próprios sonhos atingem senão na falta de uma dimensão do espaço íntimo que entretém essas pobres realidades...

Ergo a cabeça de sobre o papel em que escrevo... É cedo ainda. Mal passa o meio-dia e é domingo. O mal da vida, a doença de ser consciente, entra com o meu próprio corpo e perturba-me. Não haver ilhas para os inconfortáveis, alamedas vetustas, inencontráveis de antes, para os isolados no sonhar! Ter de viver e, por pouco que seja, de agir; ter de roçar pelo facto de haver outra gente, real também, na vida! Ter de estar aqui escrevendo isto, por me ser preciso à alma fazê-lo, e, mesmo isto, não poder sonhá-lo apenas, exprimi-lo sem palavras, sem consciência mesmo, por uma construção de mim próprio em música e esbatimento, de modo que me subissem as lágrimas aos olhos só de me sentir expressar-me, e eu fluísse, como um rio encantado, por lentos declives de mim próprio, cada vez mais para o inconsciente e o Distante, sem sentido nenhum excepto Deus.

s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

A Minha Vida é um Barco Abandonado

A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado?

Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.

Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.

Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.

Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'

Fecho, cansado

Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.
Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.

Bernardo Soares, in Livro do Desassossego.


Tenho Tanto Sentimento


Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"