sábado, 26 de janeiro de 2019

Para isso fomos feitos

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Quem comanda a narração não e a voz: é o ouvido

"Kublai pergunta para Marco:

-Quando você retornar ao Poente, repetirá para a sua gente as mesmas histórias que conta para mim?
- Eu falo, falo- diz Marco , mas quem me ouve retém somente as palavras que deseja. Uma é a descrição do mundo a qual você empresta a sua bondosa atenção, outra é a que correrá os campanários de descarregadores e gondoleiros às margens do canal diante da minha casa no dia do meu retorno, outra ainda a que poderia ditar em idade avançada se fosse aprisionado por piratas genoveses e colocado aos ferros na mesma cela de um escriba de romances de aventuras. Quem comanda a narração não e a voz: é o ouvido."

Ítalo Calvino. As cidades invisíveis.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Onde está Deus

Onde está Deus, mesmo que não
exista? Quero rezar e chorar,
arrepender-me de crimes que não
cometi, gozar ser perdoado como uma
carícia não propriamente materna.
Um regaço para chorar, mas um
regaço enorme, sem forma, espaçoso
como uma noite de Verão, e contudo
próximo, quente, feminino, ao pé de
uma lareira qualquer... Poder ali
chorar coisas impensáveis, falências
que nem sei quais são, ternuras de
coisas inexistentes, e grandes dúvidas
arrepiadas de não sei que futuro...
Uma infância nova, uma ama
velha outra vez, e um leito pequeno
onde acabe por dormir, entre contos
que embalam, mal ouvidos, com uma
atenção que se torna morna, os perigos
que penetravam em jovens cabelos
louros como o trigo... E tudo isto muito
grande, muito eterno, definitivo para
sempre, da estatura única de Deus, lá
no fundo triste e sonolento da
realidade última das coisas...
Um colo ou um berço ou um
braço quente em torno ao meu
pescoço... Uma voz que canta baixo e
parece querer fazer-me chorar... O
ruído de lume na lareira... Um calor no
Inverno... Um extravio morno da
minha consciência... E depois sem som,
um sonho calmo num espaço enorme,
como a lua rodando entre estrelas...
Quando ponho de parte os meus
artifícios e arrumo a um canto, com um
cuidado cheio de carinho — com
vontade de lhes dar beijos — os meus
brinquedos, as palavras, as imagens, as
frases — fico tão pequeno e inofensivo,
tão só num quarto tão grande e tão
triste, tão profundamente triste! ...
Afinal eu quem sou, quando não
brinco? Um pobre órfão abandonado
nas ruas das sensações, tiritando de
frio às esquinas da Realidade, tendo
que dormir nos degraus da Tristeza e
comer o pão dado da Fantasia. De um
pai sei o nome; disseram -me que se
chamava Deus, mas o nome não me dá
ideia de nada. Às vezes, na noite,
quando me sinto só, chamo por ele e
choro, e faço-me uma ideia dele a
quem possa amar... Mas depois penso
que o não conheço, que talvez ele não
seja assim, que talvez não seja nunca
esse o pai da minha alma...
Quando acabará isto tudo, estas
ruas onde arrasto a minha miséria, e
estes degraus onde encolho o meu frio
e sinto as mãos da noite por entre os
meus farrapos? Se um dia Deus me
viesse buscar e me levasse para sua
casa e me desse calor e afeição... Às
vezes penso isto e choro com alegria a
pensar que o posso pensar... Mas o
vento arrasta-se pela rua fora e as
folhas caem no passeio... Ergo os olhos
e vejo as estrelas que não têm sentido
nenhum... E de tudo isto fico apenas
eu, uma pobre criança abandonada,
que nenhum Amor quis para seu filho
adoptivo, nem nenhuma Amizade para
seu companheiro de brinquedos.
Tenho frio de mais. Estou tão
cansado no meu abandono. Vai buscar,
O Vento, a minha Mãe. Leva-me na
Noite para a casa que não conheci...
Torna a dar-me ó Silêncio imenso, a
minha ama e o meu berço e a minha
canção com que dormia...
s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo
Soares.

sábado, 5 de janeiro de 2019

Sem pedras o arco não existe

Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
- Mas qual é a pedra que sustenta a ponte?- pergunta
Kublai Khan.
- A ponte não é sustentada por esta ou aquela
pedra - responde Marco -, mas pela curva do arco
que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo.
Depois acrescenta:
- Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
- Sem pedras o arco não existe.

As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

As cidades invisíveis. Vida on e offline?

Os antigos construiram Valdrada à beira de um lago com casas repletas de varandas sobrepostas e com ruas suspensas sobre a água desembocando em parapeitos balaustrados. Deste modo, o viajante ao chegar depara-se com duas cidades: uma perpendicular sobre o lago e a outra refletida de cabeça para baixo. Nada existe e nada acontece na primeira Valdrada sem que se repita na segunda, porque a cidade foi construida de tal modo que cada um de seus pontos fosse refletido por seu espelho, e a Valdrada na água contém não somente todas as acanaladuras e relevos das fachadas que se elevam sobre o lago mas também o interior das salas com os tetos e os pavimentos, a perspectiva dos corredores, os espelhos dos armários.

Os habitantes de Valdrada sabem que todos os seus atos são simultaneamente aquele ato e a sua imagem especular, que possui a especial dignidade das imagens, e essa consciência impede-os de abandonar-se ao acaso e ao esquecimento mesmo que por um único instante. Quando os amantes com os corpos nus rolam pele contra pele à procura da posição mais prazerosa ou quando os assassinos enfiam a faca nas veias escuras do pescoço e quanto mais a lâmina desliza entre os tendões mais o sangue escorre, o que importa não é tanto o acasalamento ou o degolamento mas o acasalamento e o degolamento de suas imagens límpidas e frias no espelho.

As vezes o espelho aumenta o valor das coisas, às vezes anula. Nem tudo o que parece valer acima do espelho resiste a si próprio refletido no espelho. As duas cidades gêmeas não são iguais, porque nada do que acontece em Valdrada é simétrico para cada face ou gesto, há uma face ou gesto correspondente invertido ponto por ponto no espelho. As duas Valdradas vivem uma para a outra, olhando-se nos olhos continuamente, mas sem se amar.

Ítalo Calvino. As cidades invisíveis.

As cidades invisíveis

Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem. Quando se veem, imaginam mil coisas a respeito umas das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as caricias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam.

Passa uma moça balançando uma sombrinha apoiada no ombro, e um pouco das ancas, também. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra toda a sua idade, com os olhos inquietos debaixo do véu e os lábios tremulantes. Passa um gigante tatuado; um homem jovem com os cabelos brancos uma anã; duas gêmeas vestidas de coral. Corre alguma coisa entre eles, uma troca de olhares como se fossem linhas que ligam uma figura à outra e desenham flechas, estrelas, triângulos, até esgotar num instante todas as combinações possiveis, e outras personagens entram em cena: um cego com um guepardo na coleira, uma cortesa com um leque de penas de avestruz, um efebo, uma mulher-canhão. Assim, entre aqueles que por acaso procuram abrigo da chuva sob o pórtico, ou aglomeram-se sob uma tenda do bazar, ou param para ouvir a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantar os olhos.

Existe uma contínua vibração luxuriosa em Cloé a mais casta das cidades. Se os homens  e as mulheres começassem a viver os seus sonhos efêmeros, todos os fantasmas se tornariam reais e começaria uma história de perseguições, de ficções, de desentendimentos, de choques, de opressões, e o carrossel das fantasias teria fim.

Ítalo Calvino. As cidades invisíveis.