XXII Dos nossos males
É sem razão, e é sem merecimento,
Que a gente a sorte maldiz:
Quanto a mim, sempre odiei o sofrimento,
Mas nunca soube ser feliz...
Mario Quintana - Espelho Mágico
XXII Dos nossos males
É sem razão, e é sem merecimento,
Que a gente a sorte maldiz:
Quanto a mim, sempre odiei o sofrimento,
Mas nunca soube ser feliz...
Mario Quintana - Espelho Mágico
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto ...
E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."
(*) Soneto XIII da obra Via-Láctea
Olavo Bilac
Li um dia, não sei onde,
Que em todos os namorados
Uns amam muito, e os outros
Contentam-se em ser amados.
Fico a cismar pensativa
Neste mistério encantado...
Diga prá mim: de nós dois
Quem ama e quem é amado?...
Florbela Espanca
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão
Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Carlos Drummond de Andrade
NESTA vida, em que sou meu sono,
Não sou meu dono,
Quem sou é quem me ignoro e vive
Através desta névoa que sou eu
Todas as vidas que eu outrora tive,
Numa só vida.
Mar sou; baixo marulho ao alto rujo,
Mas minha cor vem do meu alto céu,
E só me encontro quando de mim fujo.
Quem quando eu era infante me guiava
Senão a vera alma que em mim estava?
Atada pelos braços corporais,
Não podia ser mais.
Mas, certo, um gesto, olhar ou esquecimento
Também, aos olhos de quem bem olhasse
A Presença Real sob disfarce
Da minha alma presente sem intento.
Fernando Pessoa
"Vaidade, vaidade e vaidade em toda parte - até na beira do caixão e entre pessoas que se preparam para morrer em nome de uma convicção elevada. Vaidade! É de supor que seja um traço característico e uma enfermidade peculiar do nosso século. Por que não se ouvia falar desse horror entre os antigos, como se falava da varíola e da cólera? Por que será que em nosso século só existem três tipos de pessoas: as que de saída tomam a vaidade como um fato inevitável da existência e, portanto, como algo justo, e a ela se submetem espontaneamente; as que tomam a vaidade como uma condição infeliz, mas inexorável; e por último as que agem sob sua influência, de modo inconsciente e servil? Por que Homero e Shakespeare falavam de amor, de glória e de sofrimento, mas a literatura de nosso século é apenas de um interminável relato de 'Esnobismos' e 'Vaidades'?"
Liev Tolstói. Contos. "Sebastopol em maio".
Todos sabem que os males são aliviados quando os sofremos em comum. Os homens parecem considerar o tédio como um desses males e, por isso, se reúnem para se entediarem em conjunto. Assim como o amor à vida não é no fundo mais que o medo da morte, assim também o instinto social dos homens não é um sentimento direto. Logo, não se baseia no amor à sociedade, senão no medo da solidão, porque não é exatamente a agradável companhia dos demais aquilo que se busca, mas a fuga da aridez e desolação da solidão, assim como da monotonia das suas próprias consciências, que são desocupadas. Para escapar da solidão, suportamos até má companhia e toleramos o fardo e o sentimento de restrição que toda sociedade necessariamente implica. Se, por outro lado, surge um desgosto disso tudo e, como consequência, surge o hábito da solidão e uma preparação contra a primeira impressão que produz, de modo que não produz os efeitos que descrevemos acima, então se pode tranquilamente estar sempre só e sem suspirar pela sociedade. Isso precisamente porque não é uma necessidade direta e porque, por outro lado, já estaremos acostumados às benéficas virtudes da solidão.
No mesmo sentido, disse Saadi em o Gulistan: Desde então, abandonamos a sociedade e trilhamos o caminho do isolamento. Porque a segurança está na solidão.
— Arthur Schopenhauer, in Aforismos Para a Sabedoria de Vida.
"Nunca ninguém sabe se estou louco para rir ou para chorar...
Por isso o meu verso tem
esse quase imperceptível tremor...
A vida é triste, o mundo é louco!
Nem vale a pena matar-se por isso.
Nem por ninguém.
Por nenhum amor...
A vida continua, indiferente."
Mario Quintana
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
Ferreira Gullar
"Sabes que os peixes têm uma memória de segundos. Aqueles peixes bonitos que vês dentro dos aquários pequenos, sabes que têm uma memória de uns segundos, três segundos, assim. É por isso que não ficam loucos dentro daqueles aquários sem espaço, porque a cada três segundos estão como num lugar que nunca viram e podem explorar. Devíamos ser assim, a cada três segundos ficávamos impressionados com a mais pequena manifestação de vida, porque a mais ridícula coisa na primeira imagem seria uma explosão fulgurante da percepção de estar vivo. Compreendes. A cada três segundos experimentávamos a poderosa sensação de vivermos, sem importância para mais nada, apenas o assombro dessa constatação. O americo respondeu-me, seria uma pena que não se voltasse a lembrar de mim, senhor silva, não gosto dessa teoria dos peixes, porque assim não se lembraria de mim.”
valter hugo mãe, In a máquina de fazer espanhóis.
"deus é uma cobiça que temos dentro de nós. é um modo de querermos tudo, de não nos bastarmos com o que é garantido e já tão abundante. deus é uma inveja pelo que imaginamos. como se não fosse suficiente tanto quanto se nos põe diante durante a vida. queremos mais, queremos sempre mais, até o que não existe nem vai existir. e também inventamos deus porque temos de nos policiar uns aos outros, é verdade. é tão mais fácil gerir os vizinhos se compactuarmos com a hipótese de existir um indivíduo sem corpo que atravessa as casas e escuta tudo quanto dizemos e vê tudo quanto fazemos. é tão mais fácil se esta ideia for vendida a cada pessoa com a agravante de se lhe dizer que, um dia, quando morrer, esse mesmo sinistro ser virá ao seu encontro para o punir ou premiar pelo comportamento que houver tido em todo o tempo que gastou. e a comunidade respira mais de alívio por saber que assim estamos todos policiados da melhor maneira, temos um polícia dentro de nós, um que sendo só nosso também é dos outros e, a cada passo, pode debitar-nos ou acusar-nos e terminar o nosso percurso com facilidade. eu sei que a humanidade inventa deus porque não acredita nos homens e é fácil entender por quê. os homens acreditam em deus porque não são capazes de acreditar uns nos outros. e quanto mais assim for, quanto menos acreditarmos uns nos outros, mais solicitamos o policiamento, e se o policiamento divino entra em crise, porque as mentes se libertam e o jugo glutão da igreja já não funciona, é preciso que se solicite do estado esse policiamento. que medo o de voltarmos ao tempo de uma polícia para costumes e convicções. que medo se voltamos a temer os vizinhos e os vizinhos nos puderem entregar por ideias contrárias. que medo se nos entra outro filho da puta no poder, a censurar tudo quanto se diga e a mandar que pensemos como pensa e que façamos como diz que faz. que medo de tudo se em tudo quanto os homens fazem vai a vontade torpe de ultrapassar o outro, poder mais que o outro, convencer o outro de que fica bem no andar de baixo e depois subir, subir o mais sozinho possível, porque ganhar acompanhado não satisfaz ninguém. estamos a fazer tudo errado agora, sem valores, sem medo da igreja, sem um fascismo que nos regule o voluntarismo. estamos como que sozinhos da maneira errada. mais sozinhos do que nunca, a ver a coisa passar sem sabermos muito bem em quem confiar. e nisto, é verdade, pressupomos que todos são bons homens, mas a cabeça de alguns, se não a de todos, tem de estar a cozinhar muito do esquisito que para aí acontece e se sente. muito do esquisito que nos impede, mais e mais, de acreditar nos homens."
valter hugo mãe , in a máquina de fazer espanhóis.
"eu estou bem, dizia-lhe, estou bem. e ele queria saber se estar bem era andar de trombas. eu respondi que o tempo não era linear. preparem-se sofredores do mundo, o tempo não é linear. o tempo vicia-se em ciclos que obedecem a lógicas distintas e que se vão sucedendo uns aos outros repondo ao sofredor, e qualquer outro indivíduo, novamente num certo ponto de partida. é fácil de entender. quando queremos que o tempo nos faça fugir de alguma coisa, de um acontecimento, inicialmente contamos os dias, às vezes até as horas, e depois chegam as semanas triunfais e os largos meses e depois os didáticos anos. mas para chegarmos aí temos de sentir o tempo também de outro modo.
perdemos alguém e temos de superar o primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro verão, e o primeiro outono. e dentro disso, é preciso que superemos os nossos aniversários, tudo quanto dá direito a parabéns a você, as datas da relação, o natal, a mudança dos anos, até a época dos morangos, o magusto, as chuvas de molha-tolos, o primeiro passo de um neto, o regresso de um satélite à terra, a queda de mais um avião, as notícias sobre o brasil, enfim, tudo. e também é preciso superar a primeira saída de carro a sós. o primeiro telefonema que não pode ser feito para aquela pessoa. a primeira viagem que fazemos sem a sua companhia. os lençóis que mudamos pela primeira vez. as janelas que abrimos. a sopa que preparamos para comermos sem mais ninguém. o telejornal que já não comentamos. um livro que se lê em absoluto silêncio.
o tempo guarda cápsulas indestrutíveis porque nessa cápsula se injeta também a nitidez do quanto amávamos quem perdemos, a nitidez do seu rosto, que por vezes se perde mas ressurge sempre nessas alturas, até o timbre da sua voz, chamando o nosso nome ou, mais cruel ainda, dizendo que nos ama com um riso incrível pelo qual nos havíamos justificado em mil ocasiões no mundo."
valter hugo mãe, In a máquina de fazer espanhóis
aprendi tudo ao contrário depois. ser religioso é desenvolver uma mariquice no espírito. um medo pelo que não se vê, como ter medo do escuro porque o bicho-papão pode estar à espreita para nos puxar os cabelos. esperar por deus é como esperar pelo peter pan e querer que traga a fada sininho com a sua minissaia erótica tão desadequada à ingenuidade das crianças. o ser humano é só carne e osso e uma tremenda vontade de complicar as coisas. eu aprendi que aqueles crentes se esfolavam uns aos outros de tanto preconceito e estigmatização. e aprendi, no dia em que perdemos o nosso primeiro filho, que estávamos sozinhos no mundo. atirados para o fundo de um quarto sem qualquer ajuda. e eu ainda fui pedir ao padre que nos fizesse chegar a um hospital, que fosse rápido, porque as águas tinham rompido e a laura não se mexia. não temos carros neste bairro, dizia-lhe eu, é um bairro pobre, ninguém tem dessas máquinas. mas, como está, não há parteira que lhe pegue. está a sangrar, padre, a laura está a sangrar do nosso filho. e o homem disse umas quantas vezes que tudo estaria na vontade de deus e queria com isso afirmar que correria bem. era para que eu não me preocupasse. e depois foi lá ele com duas velhas e não se pensou em nenhum carro. o nosso filho já estava no colo da laura e ela estava sem sentidos, afastada pela dor de permanecer com os olhos abertos sobre o silêncio mortal do bebé.
Valter Hugo Mãe
"O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos de mil pais e de mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós."
Valter Hugo Mãe, O filho de mil homens
“Os filhos, pensava ele, são modos de estender o corpo e aquilo a que se vai chamando alma. São como continuarmos por onde já não estamos e estarmos, passarmos a estar verdadeiramente, porque ansiamos e sofremos mais pelos filhos do que por nós próprios, assim como nos reconfortam mais as alegrias deles do que a satisfação que diretamente auferimos. Por isso temos gula pelos filhos, uma gula do tamanho dos absurdos, sempre começada, sempre incontrolável. E queremos tudo dos filhos como se nunca nos bastassem, nunca nos cansassem porque, ainda que nos cansemos, estamos incondicionalmente dispostos a continuar, uma e outra vez até que seja o corpo extenuado a desistir, mas nunca o nosso ímpeto, nunca o nosso espírito. Até porque desistir de um filho seria como desistir de nós próprios. Cada filho somos nós no melhor que temos para dar. No melhor que temos para ser.”
Valter Hugo Mãe, O filho de mil homens
"Quando se conhece alguém, pensou o Crisóstomo, procuram-se as exuberâncias dos gestos, como para fazer exuberar o amor, mas o amor é uma pacificação com as nossas naturezas e deve conduzir ao sossego. O gesto exuberante é um gesto desesperado de quem não está em equilíbrio. Parecia agora saber tanto sobre o assunto, pensava, como se pudesse, ao acertar na mulher, saber por instinto tudo que estava certo ou errado."
Valter Hugo Mãe, O filho de mil homens.
"O Crisóstomo explicava que o amor era uma atitude. Uma predisposição natural para se ser a favor de outrem. É isso o amor. Uma predisposição natural para se favorecer alguém. Ser, sem sequer se pensar, por outra pessoa. Isso dava também para as variações estranhas do amor. O miúdo perguntava se havia quem amasse por crime, por maldade. Alguém amar por maldade, repetia. O pai achava que talvez não. A maldade tinha de ser o contrário de amar."
Valter Hugo Mãe, O filho de mil homens.
“Para entreter curiosidades, o velho Alfredo oferecia livros ao menino e convencia-o de que ler seria fundamental para a saúde. Ensinava-lhe que era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença, algo como um mal que pusesse os preguiçosos a morrer. Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente. O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito e dá-me preguiça. Então, o médico acrescentava: ah, fique pois sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemo-nos no seu seu funeral dentro de poucas semanas. O caixão fechava-se com um livro.”
Valter Hugo Mãe, In O filho de mil homens
Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.
É bom sentá-lo novamente ao lado
Com os olhos que contem o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.
Um bicho igual à mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com meu próprio engano.
O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...
Às vezes com alguém que amo, me encho de fúria, pelo medo de extravasar amor sem retorno;
Mas agora penso não haver amor sem retorno – o pagamento é certo, de um jeito ou de outro;
(Eu amei certa pessoa ardentemente, e meu amor não teve retorno;
No entanto, disso escrevi estas canções.)
Walt Whitman
Bendito seja o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu,
E nesse puro momento
Todo limpo e sensível
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao Homem verdadeiro e primitivo
Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.
Porque isso é natural — mais natural
Que adorar o ouro e Deus
E a arte e a moral...
Alberto Caeiro
- Se houvesse alguma possibilidade de trocar esta vida mesmo que fosse pela vida mais vulgar e miserável que existe, mas sem o perigo e sem o serviço militar, eu não hesitaria nem um minuto.
- Por que o senhor não se transfere para a Rússia? - perguntei.(...)
- É que me sinto ainda mais incapaz de voltar para a Rússia do que quando vim para cá. Outra tradição que existe na Rússia (...) é que basta vir ao Cáucaso para acumular condecorações. E todos esperam e exigem isso de nós; estou há dois anos aqui (...) e não ganhei nada. (...) na Rússia, como vou me apresentar aos olhos de meu asterote, do comerciante Koguelnikov, a quem vendo trigo, aos olhos de minha tia moscovita e de todos aqueles senhores, sem nenhuma condecoração depois de anos no Cáucaso? É verdade que não quero ter relação com esses senhores e que , é bem possível, eles também estejam muito pouco interessados em mim; mas o ser humano é feito de tal modo que eu não quero ter relação com eles, mas mesmo assim, por causa deles, destruo meus melhores anos, toda a felicidade de minha vida e vou arruinar todo o meu futuro.
Liev Tolstoi. " A derrubada da floresta". Contos completos. Editora Cosacnaify.
Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.
Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugiu como um furacão,
Turbou, partiu, abateu
Queimou sem razão nem dó -
Ah, que dor!
Magoado e só,
- Só - meu coração ardeu:
Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
- Esta pouca cinza fria.
Manuel Bandeira
(1886-1968)
"O que eu quero dizer é o seguinte: é comum, pelo menos na sociedade européia, considerar que o poder está localizado nas mãos do governo e que ele é exercido por meio de certo numero de instituições especificas, como a administração pública, a policia, o exercito e o aparelho de Estado. Sabe-se que todas essas instituições são feitas para elaborar e transmitir certo numero de decisões em nome da nação ou do
Estado, para fazer que elas sejam aplicadas e para punir aqueles que não obedecem, Creio, porém, que o
poder político também é exercido por intermédio de certo número de instituições que, aparentemente, não
têm nada em comum com o poder político, como se fossem independentes dele, o que não e verdade.
Isso é sabido no que diz respeito à família, e sabemos que a universidade e, de maneira geral, todos os sistemas de
ensino, que aparentemente apenas difundem o conhecimento, são feitos para manter determinada classe social no poder e para excluir os instrumentos de poder de outra classe social. Instituições ligadas ao conhecimento, à previdência e a assistência, como medicina, também ajudam a sustentar o poder político. Isso
também é evidente, chegando a ser escandaloso, em certos casos relacionados a Psiquiatria.
Parece-me que a verdadeira tarefa política, em uma sociedade como a nossa, é criticar o funcionamento das instituições, que dão a impressão de ser neutras e independentes; criticá-las e atacá-las de tal maneira que a violência política,que sempre foi exercida de maneira obscura, por meio delas seja desmascarada, para que se possa combatê-las.
Essa critica e essa luta parece fundamental por diferentes razões: primeiramente, porque o poder político
tem raízes mais profundas do que se imagina; existem núcleos e pontos de apoio invisíveis e pouco
conhecidos; sua verdadeira resistência e solidez talvez se localizem onde ninguém espera encontrá-las.
Provavelmente não basta dizer que por trás dos governos e do aparelho de Estado existe uma classe dominante; é preciso revelar o local da ação, os espaços e as formas como essa dominação é exercida. Além disso, como essa dominação não é simplesmente a expressão em termos políticos de exploração econômica. Ela é seu instrumento e, em larga medida, a condição que a torna possível, a eliminação de uma é alcançada
por meio da compreensão exaustiva da outra. Bem se não conseguimos identificar esses pontos de apoio do
poder de classe, corremos o risco de permitir que eles continuem existindo e observar esse poder de classe se
reconstitui mesmo após um aparente processo revolucionário”.
Michael Foucault , in Natureza Humana, Justiça vs. Poder. Michael Foucault e Noam Chomsky. (pag,50-52).
Magia negra era o Pelé jogando, Cartola compondo, Milton cantando. Magia negra é o poema de Castro Alves, o samba de Jovelina…
Magia negra é Djavan, Emicida, Mano Brow, Thalma de Mreitas, Simonal. Magia negra é Drogba, Fela kuti, Jam. Magia negra é dona Edith recitando no Sarau da Cooperifa. Carolina de Jesus é pura magia negra. Garrincha tinhas duas pernas mágicas e negras. James Brow. Milton Santos é pura magia.
Não posso ouvir a palavra magia negra que me transformo num dragão.
Michael Jackson e Jordan é magia negra. Cafu, Milton Gonçalves, Dona Ivone Lara, Jeferson De, Robinho, Daiane dos Santos é magia negra.
Fabiana Cozza, Machado de Assis, James Baldwin, Alice Walker, Nelson Mandela, Tupac, isso é o que chamo de magia negra.
Magia negra é Malcon X, Martin Luther King, Mussum, Zumbi, João Antônio, Candeia e Paulinho da Viola. Usain Bolt, Elza Soares, Sarah Vaughan, Billy Holliday e Nina Simone é magia mais do que negra.
Eu faço magia negra quando danço Fundo de Quintal e Bob Marley.
Cruz e Souza Zózimo, Spike Lee, tudo é magia negra neles. Umoja, Espírito de Zumbi, Afro Koteban…
É mestre Bimba, é Vai-Vai, é Mangueira todas as escolas transformando quartas-feira de cinza em alegria de primeira.
Magia negra é Sabotage, MV Bill, Anderson Silva.
Pepetela, Ondjaki, Ana Paula Tavares, João Mello… Magia negra.
Magia negra são os brancos que são solidários na luta contra o racismo.
Magia negra é o RAP, O Samba, o Blues, o Rock, Hip Hop de Africabambaataa.
Magia negra é magia que não acaba mais.
É isso e mais um monte de coisa que é magia negra.
O resto é feitiço racista.
A teologia, a moral, a história e a experiência de cada dia nos ensinam que para alcançar o equilíbrio não há uma infinidade de segredos; há apenas um: submeter-se: "Aceitem o jugo", nos repetem, "e serão felizes; sejam algo, e estarão livres de suas penas." Realmente, tudo é ofício neste mundo: profissionais do tempo, funcionários da respiração, dignitários da esperança, um posto nos espera desde antes de nascer: nossas carreiras são preparadas nas entranhas de nossas mães. Membros de um universo oficial, devemos ocupar um lugar nele pelo mecanismo de um destino rígido, que só se relaxa a favor dos loucos; estes, pelo menos, não se veem obrigados a ter uma crença, a filiar-se a uma instituição, a sustentar uma ideia, a pretender uma empresa. Desde que a sociedade se constituiu, os que pretenderam subtrair-se a ela foram perseguidos ou achincalhados. Perdoa-se tudo, contanto que você tenha uma profissão, um subtítulo sob seu nome, um selo sobre seu nada. Ninguém tem a audácia de gritar: "Não quero fazer nada!"; se é mais indulgente com um assassino do que com um espírito liberado dos atos. Multiplicando as possibilidades de submeter-se, abdicando de sua liberdade, matando em si mesmo o vagabundo, foi assim que o homem refinou sua escravidão e submeteu-se aos fantasmas. Mesmo seus desprezos e rebeliões, só os cultivou para ser dominado por eles, servo que é de suas atitudes, de seus gestos e de seus humores. Saído das cavernas, guardou delas a superstição; era seu prisioneiro, tornou-se seu arquiteto. Perpetua sua condição primitiva com maior invenção e sutileza; mas, no fundo, aumentando ou diminuindo sua caricatura, plagia-se descaradamente. Charlatão movido por barbantes, suas contorções, suas caretas, ainda enganam.
Emil Cioran
É preciso uma considerável dose de inconsciência para entregar-se sem reservas a qualquer coisa. Os crentes, os apaixonados, os discípulos, só percebem uma face de suas deidades, de seus ídolos, de seus mestres. O entusiasta permanece inelutavelmente ingênuo. Há sentimento puro onde a mescla de graça e imbecilidade não se traia, e admiração devota sem eclipse da inteligência? Quem entrevê simultaneamente todos os aspectos de alguém ou de algo permanece para sempre indeciso entre o arrebatamento e o estupor. Disse que qualquer crença: que fausto do coração — e quanta ignomínia por baixo! É o infinito sonhado em um esgoto e que conserva, indeléveis, sua marca e seu fedor. Há um notário em cada santo, um quitandeiro em todo herói, um porteiro no mártir. No fundo dos suspiros esconde-se uma careta; aos sacrifícios e às orações misturam-se os vapores do bordel terrestre. Consideremos o amor: há expansão mais nobre, arrebatamento menos suspeito? Seus estremecimentos competem com a música, rivalizam com as lágrimas da solidão e do êxtase: é o sublime, mas um sublime inseparável das vias urinárias: transportes vizinhos à excreção, céu das glândulas, santidade súbita dos orifícios… Basta um momento de atenção para que essa embriaguez, abalada, nos lance nas imundícies da fisiologia, ou um instante de fadiga para constatar que tanto ardor só produz uma variedade de ranho. O estado de vigília altera o sabor de nossos arroubos e transforma quem os sofre em um visionário pisoteando pretextos inefáveis. Não se pode amar e conhecer ao mesmo tempo, sem que o amor padeça e expire sob o olhar do espírito. Investigue suas admirações, perscrute os beneficiários de seu culto e os que se aproveitam de seus abandonos: sob seus pensamentos mais desinteressados descobrirá o amor-próprio, o aguilhão da glória, a sede de domínio e de poder. Todos os pensadores são fracassados da ação que se vingam de seu fracasso por meio de conceitos. Nascidos aquém dos atos, os exaltam ou os menosprezam, conforme aspirem ao reconhecimento dos homens ou à outra forma de glória: seu ódio; elevam indevidamente suas próprias deficiências, suas próprias misérias à categoria de leis, sua futilidade ao nível de princípios.
O pensamento é uma mentira, como o amor e a fé. Pois as verdades são fraudes e as paixões, odores; e, no final das contas, a escolha está entre o que mente e o que fede.
Emil Cioran
Márcio Ramos
A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem um história tornar-se a única história “
Chimamanda Adichie
A escola ainda é um dos locais fundamentais na formação do sujeito. Geralmente é no momento de chegada à escola que o mundo da criança se amplia e ela percebe o quão diferente as pessoas são, que ela que ela terá que lidar com essa realidade e estabelecer laços para se acomodar minimamente nesse novo mundo. A escola contribuirá para a formação dessa criança através de uma outra narrativa, diferente da que ela tinha acesso em seu grupo familiar e social.
É importante que essa narrativa que a escola constrói e transmite aos alunos que aqui chegam, dê conta da multiplicidade da experiência humana. Não se pode mais conceber uma educação que se baseie em uma interpretação única de mundo, ou que apenas reforce a visão das famílias sobre a realidade. A escola precisa ampliar o olhar de cada educando, dando-lhes asas, no dizer de Rubem Alves.
Neste contexto, uma educação étnico-racial é necessária. Principalmente em nosso país, formado por mais de 50 % de negros, marcado por mais de 300 anos de escravidão e que ainda não deu conta de resolver o grave problema do racismo e a inclusão social dos negros. Nos negamos a enfrentar a questão e adotamos o mito da democracia racial para manter uma aparência de paz social. Mas a necessidade da criação de uma lei que determina o ensino da história e cultura afro-brasileia nos mostra o quanto o problema ainda permanece.
Para se efetivar a implementação da Lei 10639 em sala de aula, algumas reflexões são necessárias. Penso que existem duas ações necessárias e complementares neste processo. A primeira linha de ação diz respeito ao nosso conhecimento sobre a África e sua relação com o Brasil e a discussão da temática com nossos alunos. O outro aspecto diz respeito à forma como lidamos com nossos alunos negros em sala de aula e como incentivarmos o respeito à diversidade e o combate ao racismo.
Sejamos realistas, o nosso conhecimento sobre os povos não europeus é muito precário. Os povos do “Oriente” e africanos aparecem em nossa cosmovisão como exóticos,estranhos, os “outros”. A maior parte das informações que temos tem origem nos programas de TV e de filmes, que caricaturizam a história e a cultura desses povos. É necessário um grande esforço para desnaturalizarmos essa visão, para conseguirmos ir além dessa narrativa hegemônica a que estamos submetidos.
O primeiro erro é pensar a África como um país. Sim, muitas vezes nos referimos à África como um país, esquecendo que o continente africano é formado por mais de 50 países, que são distintos entre si, tanto do ponto de vista geográfico, como político, econômico e cultural. Essas diferenças se dão pelo tamanho do continente e por sua história. Precisamos discutir com nossos alunos sobre essa diversidade e não tratar toda a África como algo uniforme. É necessário combatermos a visão midiática de que a África é uma região só de guerras civis, epidemias e pobreza. Apesar das dificuldades enfrentadas pela maior parte do continente, essa não é a realidade de todos os países africanos. Países como Seicheles e Maurícia possuem IDH maior do que o Brasil. Grande parte dos países conquistaram sua independência a pouco mais de 50 anos, estão se constituindo enquanto Nação e logicamente enfrentam dificuldades nesse processo.
Precisamos mostrar a nossos alunos que todos nós temos uma origem africana. Os primeiros homens viveram na África e lá se desenvolveram grandes civilizações, como o Egito Antigo. Muitas vezes falamos do Egito como se ele não fosse africano, e o cinema e novelas reforçam essa visão ao retratar os egípcios como brancos. Perceber as contribuições técnicas e culturais é importante para resignificarmos a imagem e o papel do negro na história. Os professores podem mostrar a técnica altamente desenvolvida pelos africanos na construção das pirâmides, seus conhecimentos medicinais e metalúrgicos.
A obrigatoriedade legal de se estudar história e cultura africana, assim como a indígena, pode nos proporcionar a oportunidade de tratar esses povos em sua humanidade. Ou seja, às vezes sempre partimos da discussão sobre a escravidão e podemos reforçar a imagem dos negros como escravo. Quando discutimos sobre escravidão, negro parece ser sinônimo de escravo. Por isso é preciso um cuidado muito grande na seleção e análise de imagens e textos para o trabalho escolar. Temos que problematizar a experiência histórica desses seres humanos, seus desejos, suas lutas, sua resistência.
Discutir e tratar as religiões de origem africana como parte da herança cultural da humanidade é essencial. Mostrar como as religiões tradicionais africanas valorizam a ancestralidade como força definidora da identidade de cada um pode levar nossos alunos a valorizar a história e origem de seu grupo familiar e social, combatendo esse imediatismo contemporâneo. Às vezes temos dificuldades em discutir as religiões de matriz africana devido ao forte preconceito presente em nossa sociedade. Mas porque não dar o mesmo valor a essas manifestações culturais assim como dado a mitologia grega?
Um detalhe importante sobre as religiões existentes na África é que, ao lado das religiões tradicionais, temos a presença do islamismo, principalmente no norte do continente, assim como das religiões cristãs. Homogeneizar a experiencia religiosa africana é empobrecer nosso conhecimento sobre ela.
Da mesma forma que o conhecimento sobre a África e suas contribuições para a formação da sociedade brasileira são importantes para permitir a formação de identidade dos alunos, a forma como lidamos com as questões suscitadas nos conflitos do dia a dia na escola, também é definidora de uma boa educação étnico-racial. Não podemos jogar para debaixo do tapete situações de discriminação e racismo.
Não podemos apenas realizar comemorações esporádicas e especificas como o Dia da Consciência Negra e não enfrentar nossa dificuldade em lidar com a questão racial. Não basta o tema estar no currículo oficial da escola, se no currículo oculto negamos a esse sujeito sua humanidade. Continuar o debate e construir ações para uma educação que respeite a diversidade e as várias narrativas existenciais é o desafio que temos pela frente e toda a comunidade escolar precisa se apropriar desta importante discussão.
Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!
Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!
Que sol! que céu azul! que dove n'alva
Acorda a natureza mais loucã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!
Sou daquelas almas que as mulheres dizem que amam, e nunca reconhecem quando encontram, daquelas que, se elas as reconhecessem, mesmo assim não as reconheceriam.
Sofro a delicadeza dos meus sentimentos com uma atenção desdenhosa.
Tenho todas as qualidades, pelas quais são admirados os poeta românticos, mesmo aquela falta dessas qualidades, pela qual se é realmente poeta romântico.
Encontro-me descrito (em parte) em vários romances como protagonista de vários enredos; mas o essencial da minha vida, como da minha alma, é não ser nunca protagonista.
Bernardo Soares, in O livro do desassossego.
Viver significa: crer e esperar, mentir e mentir-se. Por isso a imagem mais verídica que já se criou do homem continua sendo a do Cavaleiro da Triste Figura, esse cavaleiro que se encontra mesmo no sábio mais realizado. O episódio penoso em torno da cruz ou esse outro mais majestoso coroado pelo Nirvana participam da mesma irrealidade, ainda que se lhes tenha reconhecido uma qualidade simbólica que foi recusada depois às aventuras do pobre fidalgo. Nem todos os homens podem ter êxito: a fecundidade de suas mentiras varia... Tal engano triunfa: disso resulta uma religião, uma doutrina ou um mito - e uma multidão de fiéis; outro fracassa: não passa de uma divagação, de uma teoria ou uma ficção. Só as coisas inertes não acrescentam nada ao que são: uma pedra não mente: não interessa a ninguém - enquanto que a vida inventa sem cessar: a vida é o romance da matéria.
Pó apaixonado por fantasmas, tal é o homem: sua imagem absoluta, idealmente semelhante, encarnar-se-ia em um Dom Quixote visto por Ésquilo...
(Se na hierarquia das mentiras a vida ocupa o primeiro lugar, o amor lhe sucede imediatamente, mentira na mentira. Expressão de nossa posição híbrida, cerca-se de um aparato de beatitudes e de tormentos graças ao qual encontramos em outro um substituto de nós mesmos. Por qual embuste dois olhos nos apartam de nossa solidão? Há fracasso mais humilhante para o espírito? O amor adormece o conhecimento; o conhecimento desperto mata o amor. A irrealidade não pode triunfar indefinidamente, nem mesmo disfarçada com a aparência da mais estimulante mentira. E, de resto, quem teria uma ilusão tão firme para encontrar no outro o que busca em vão em si mesmo? E, no entanto, esse é o fundamento desta anomalia corrente e sobrenatural: resolver a dois - ou, antes, suspender - todos os enigmas: graças a uma impostura, esquecer esta ficção em que está mergulhada a vida: com uma dupla carícia preencher a vacuidade geral: e - paródia do êxtase - afogar-se, finalmente, no suor de um cúmplice qualquer...)
Emil Cioran, In Breviario da decomposição
Se as tardes de domingo fossem prolongadas durante meses, o que seria da humanidade, emancipada do suor, livre do peso da primeira maldição? A experiência valeria a pena. É mais do que provável que o crime se tornasse a única diversão, que a devassidão parecesse candura, o uivo melodia e o escárnio ternura. A sensação da imensidade do tempo faria de cada segundo um intolerável suplício, um pelotão de execução capital. Nos corações mais imbuídos de poesia se instalariam um canibalismo estragado e uma tristeza de hiena; os patíbulos e os carrascos extinguiriam-se de langor; as igrejas e os bordéis explodiriam de suspiros. O universo transformado em tarde de domingo... é a definição do tédio - e o fim do universo... Retire a maldição suspensa sobre a História e esta desaparece imediatamente, assim como a existência, na vacância absoluta, revela sua ficção. O trabalho construído do nada forja e consolida os mitos; embriaguez elementar, excita e cultiva a crença na "realidade"; mas a contemplação da pura existência, contemplação independente de gestos e de objetos, só assimila o que não é...
Os desocupados captam mais coisas e são mais profundos que os atarefados: nenhuma empresa limita seu horizonte; nascidos em um eterno domingo, olham e se olham olhar. A preguiça é um ceticismo fisiológico, a dúvida da carne. Em um mundo tomado pela ociosidade, seriam os únicos a não se tornar assassinos. Mas não fazem parte da humanidade e, como o suor não é o seu forte, vivem sem sofrer as conseqüências da Vida e do Pecado. Não fazendo o bem nem o mal, desdenham - espectadores da epilepsia humana - as semanas do tempo, os esforços que asfixiam a consciência. O que deveriam temer de uma prolongação ilimitada de certas tardes, senão o pesar de haver sustentado evidências grosseiramente elementares? Nesse caso, a exasperação no verdadeiro poderia induzi-los a imitar os outros e a comprazer-se na tentação aviltante das tarefas. Tal é o perigo que ameaça a preguiça - milagrosa sobrevivência do paraíso.
(A única função do amor é nos ajudar a suportar as tardes dominicais, cruéis e incomensuráveis, que nos ferem para o resto da semana - e para a eternidade.
Sem a sedução do espasmo ancestral, precisaríamos de mil olhos para prantos ocultos ou, senão, unhas para roer, unhas quilométricas... Como matar de outra maneira este tempo que já não flui? Nestes domingos intermináveis, a dor de ser manifesta-se plenamente. Às vezes conseguimos nos esquecer em alguma coisa; mas como nos esquecermos no próprio mundo? Esta impossibilidade é a definição da dor. Aquele que é atingido por ela não se curará nunca, mesmo que o universo mudasse completamente. Só seu coração deveria mudar, mas é imutável; também para ele, existir só tem um sentido: mergulhar no sofrimento - até que o exercício de uma cotidiana nirvanização eleve-o à percepção da irrealidade...)
Emil Cioran, Breviário de Decomposição
Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança. Mas por que deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com as mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, por que deitaram fora o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança a chorar, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a tristeza da criança o horror desprevenido do meu coração exausto. Doo-me com toda a estatura da vida sentida, e são minhas as mãos que torcem o canto do bibe, são minhas as bocas tortas das lágrimas verdadeiras, é minha a fraqueza, é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passa usam-me como luzes de fósforos riscados no estofo sensível do meu coração.
Bernardo Soares . O livro do desassossego.
Quando se chega ao limite do monólogo, aos confins da solidão, inventa-se — na falta de outro interlocutor — Deus, pretexto supremo de diálogo. Enquanto o nomeias, tua demência está bem disfarçada e… tudo te é permitido. O verdadeiro crente mal se distingue do louco; mas sua loucura é legal, admitida; acabaria em um asilo se suas aberrações estivessem livres de toda fé. Mas Deus as cobre, as torna legítimas. O orgulho de um conquistador empalidece comparado à ostentação do devoto que dirige-se ao Criador. Como se pode ser tão atrevido? E como poderia ser a modéstia uma virtude dos templos, quando uma velha decrépita, que imagina o Infinito a seu alcance, eleva-se pela oração a um nível de audácia ao qual nenhum tirano jamais aspirou?
Sacrificaria o império do mundo por um só momento em que minhas mãos juntas implorassem ao grande Responsável de nossos enigmas e de nossas banalidades. Entretanto, esse momento constitui a qualidade corrente — e como que o tempo oficial — de qualquer crente. Mas quem é verdadeiramente modesto repete a si mesmo: “Demasiado humilde para rezar, demasiado inerte para transpor o limiar de uma igreja, resigno-me à minha sombra e não quero uma capitulação de Deus ante minhas orações”. E aos que lhe propõem a imortalidade, responde: “Meu orgulho não é inesgotável: seus recursos são limitados. Pensam, em nome da fé, vencer seu eu; na realidade, desejam perpetuá-lo na eternidade, pois não lhes basta esta duração presente. Sua soberba excede em refinamento todas as ambições do século. Que sonho de glória, comparado ao seu, não se revela engano e vã ilusão? Sua fé é apenas um delírio de grandeza tolerado pela comunidade, porque utiliza caminhos camuflados; mas seu pó é sua única obsessão: gulosos do intemporal, perseguem o tempo que o dispersa. Só o além é bastante espaçoso para suas cobiças; a terra e seus instantes parecem demasiado frágeis. A megalomania dos conventos supera tudo o que jamais imaginaram as febres suntuosas dos palácios. Quem não admite sua nulidade é um doente mental. E o crente, entre todos, é o menos disposto a consentir. A vontade de durar, levada até tal ponto, apavora-me. Recuso-me à sedução malsã de um Eu indefinido. Quero chafurdar-me em minha mortalidade. Quero permanecer normal.”
(Senhor, dá-me a faculdade de jamais rezar, poupa-me a insanidade de toda adoração, afasta de mim essa tentação de amor que me entregaria para sempre a Ti. Que o vazio se estenda entre meu coração e o céu! Não desejo ver meus desertos povoados com Tua presença, minhas noites tiranizadas por Tua luz, minhas Sibérias fundidas sob Teu sol. Mais solitário do que Tu, quero minhas mãos puras, ao contrário das Tuas que sujaram-se para sempre ao modelar a terra e ao misturar-se nos assuntos do mundo. Só peço à Tua estúpida onipotência respeito para minha solidão e meus tormentos. Não tenho nada a fazer com Tuas palavras. Concede-me o milagre recolhido antes do primeiro instante, a paz que Tu não pudeste tolerar e que Te incitou a abrir uma brecha no nada para inaugurar esta feira dos tempos, e para condenar-me assim ao universo, à humilhação e à vergonha de existir.)
Emil Cioran, em Breviario da decomposição.
O tempo, que não existe, tudo destrói.
Tudo corrói
Tudo.
O tempo tudo anula,
Tudo engole,
Tudo apaga,
Tudo arrasa
Tudo.
Caem os Impérios, revelam-se os mistérios,
Povoam-se ermitérios e nascem vivas,
ressurretas,
as almas mudas, esquecidas, dos cemitérios.
O nada explode,
O tudo encolhe,
O algo foge.
O burro aprende.
O inevitável suspende o seu olhar
E retrocede.
O maior inimigo, rendido, cede.
O Tempo tudo constrói
sobre os membros mortos das suas vítimas.O Tempo, que não existe, insiste em ser,
e, não existindo, nele tudo insiste em converter.
Manuel Anastácio