terça-feira, 28 de maio de 2019

Morcegos e humanidade

Fui ganhando destreza na arte de capturar os grandes morcegos, esses vorazes comedores de fruta. Nos troncos
cimeiros se conservavam de cabeça para baixo, balanceando como pêndulos vivos, alertados mas sem receio aparente. Empoleirada nas alturas, contemplava-os
demoradamente antes de lhes lançar a rede. Nem sempre se distinguiam os vivos dos falecidos. As garras  prendiam-se aos ramos com tal afinco que, mesmo depois
de mortos, permaneciam suspensos e assim secavam até  não serem mais que uma engelhada sombra. Alguns de nós, humanos, temos esse mesmo destino: falecidos pó dentro, e apenas mantidos pela parecença com os vivos que já fomos.

Mia Couto. Mulheres de cinza.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

A cura para o fanatismo

Eu comecei dizendo que o fanatismo muitas vezes começa em casa. Deixe-me concluir dizendo que o antídoto também pode ser encontrado em casa, virtualmente na ponta dos dedos. Nenhum homem é uma ilha, disse John Donne, mas eu humildemente ouso acrescentar a isso: nenhum homem e nenhuma mulher é uma ilha, mas cada um de nós é uma península, metade ligada ao continente, metade voltada para o mar; metade ligada à família e amigos e cultura e tradições e país e nação e sexo e língua e muitos outros laços. E a outra metade quer ser deixada só e ficar voltada para o oceano. Creio que devíamos ter permissão para continuarmos a ser penínsulas. Todo sistema social e político que faz cada um de nós ser uma ilha darwiniana e o resto da humanidade um inimigo ou rival é um monstro. Mas, ao mesmo tempo, todo sistema social e político e ideológico que quer fazer de nós não mais do que uma molécula do continente também é uma monstruosidade. A condição de península é a própria condição humana. É isso que somos e é o que merecemos continuar sendo. Assim, em certo sentido, em toda casa, em toda família, em toda conexão humana, temos de fato um relacionamento entre um número de penínsulas, e é melhor que nos lembremos disso antes de tentar moldar um ao outro e modificar um ao outro e fazer o próximo ficar do nosso jeito quando ele ou ela, na verdade, estão precisando se voltar ao oceano por um momento. E isso vale para grupos sociais e culturas e civilizações e nações e, sim, israelenses e palestinos. Nenhum deles é uma ilha e nenhum deles pode se misturar completamente com o outro. Essas duas penínsulas deviam manter um relacionamento e, ao mesmo tempo, ser deixadas consigo mesmas. Sei que é uma mensagem incomum nesses dias de violência e de ira e de vingança e fundamentalismo e fanatismo e racismo, todos à solta no Oriente Médio e em toda parte. Um senso de humor, a capacidade de imaginar o outro, a competência de reconhecer a qualidade peninsular de cada um de nós poderá ser pelo menos uma defesa parcial contra o gene do fanatismo que existe em todos nós.

Amoz Oz. Como curar um fanático.

Fanatismo

A essência do fanatismo reside no desejo de forçar outras pessoas a mudar. A inclinação comum para fazer seu próximo melhorar, ou para corrigir sua esposa, ou para direcionar seu filho, ou para endireitar seu irmão, em vez de deixá-los serem como são. O fanático é a menos egoísta das criaturas. O fanático é um grande altruísta. Frequentemente o fanático está mais interessado em você do que nele mesmo. Ele quer salvar sua alma, quer te redimir, quer te livrar do pecado, do erro, de fumar, de sua fé ou de sua falta de fé, quer melhorar seus hábitos alimentares, ou te curar da bebida ou de sua preferência na hora de votar. O fanático se importa muito com você, ele está sempre pulando em seu pescoço porque te ama de verdade, ou então está em sua garganta caso demonstre ser irrecuperável. E seja qual for o caso, falando topograficamente, pular em seu pescoço e estar em sua garganta é quase o mesmo gesto. De um modo ou de outro, o fanático está mais interessado em você do que nele mesmo, pela muito simples razão de que o fanático tem muito pouco de “ele mesmo”, ou nenhum “ele mesmo”.

(...)
O fanatismo começa em casa. Inicia exatamente com o impulso muito comum de mudar um parente querido para o próprio bem dele, começa com o ímpeto de se sacrificar pelo bem de um querido e amado vizinho, começa com o impulso de dizer a um filho seu: “Você deve ser como eu e não como sua mãe” ou “Você deve ser como eu e não como seu pai” ou “Por favor, seja algo muito diferente de seus dois pais”. Ou, entre casais casados, “Você tem de mudar, você precisa enxergar as coisas como eu vejo ou esse casamento não vai funcionar”. Frequentemente começa com o impulso de viver sua vida calcada na vida de outra pessoa. De doar a si mesmo para facilitar a satisfação do próximo ou o bem-estar das próximas gerações. O autossacrifício muitas vezes envolve infligir terríveis sentimentos de culpa no beneficiário, e com isso manipular, até mesmo controlar ele ou ela. Se tivesse de escolher entre os dois estereótipos de mãe na famosa piada judaica — a mãe que diz a seu filho: “Termine o seu café da manhã ou eu te mato” ou a que diz: “Termine o seu café da manhã ou eu me mato” —, eu provavelmente escolheria o menor dos dois males. Isto é, em vez de não terminar meu café da manhã e morrer, não terminar meu café da manhã e ter sentimento de culpa pelo resto da minha vida.

Amoz Oz. Como curar um fanático.

A infantilização da humanidade

Talvez o pior aspecto da globalização seja a infantilização da humanidade: “o jardim de infância global”, cheio de brinquedos e gadgets, balas e pirulitos. Até a metade do século XIX, alguns anos a mais ou a menos — isso varia de um país a outro, de um continente a outro —, mas aproximadamente, a maioria das pessoas na maior parte do mundo tinha pelo menos três certezas fundamentais: onde eu vou passar minha vida, o que vou fazer para viver e o que vai acontecer comigo depois que eu morrer. Quase toda pessoa no mundo, há apenas 150 anos, se tanto, sabia que ia passar a vida exatamente onde tinha nascido ou em algum lugar próximo, talvez na aldeia vizinha. Todo mundo sabia que o que faria como meio de vida era o que seus pais tinham feito como meio de vida, ou algo muito semelhante. E todos sabiam que, caso se comportassem bem, seriam transformados para viver num mundo melhor depois de morrer. O século XX corroeu e muitas vezes destruiu essas e outras certezas. A perda dessas certezas elementares pode ter sido a causa do meio século mais pesadamente ideológico, seguido do meio século mais furiosamente egoísta, hedonista, orientado para gadgets. Nos movimentos ideológicos da primeira metade do século passado, o mantra costumava ser “amanhã será um dia melhor — façamos sacrifícios hoje”; vamos até mesmo impor sacrifícios a outras pessoas hoje, para que nossos filhos herdem um paraíso no futuro. Em algum momento em meados desse século, tal conceito foi substituído pelo conceito de felicidade instantânea, não somente o famoso direito de batalhar pela felicidade, mas a efetivamente difundida ilusão de que a felicidade está ali nas prateleiras e que tudo que se deve fazer é enriquecer o bastante para se permitir adquirir a felicidade usando sua carteira. A noção de “felizes para sempre”, a ilusão de uma felicidade duradoura é, na atualidade, um oximoro. Ou um platô ou um clímax. Felicidade que dura para sempre não é felicidade, assim como um orgasmo que dura para sempre não é nenhum orgasmo.

Amoz Oz. Como curar um fanático.

Traidor

A traição não é o contrário do amor,
é uma de suas muitas opções. O traidor, penso eu, é aquele que muda, na visão daqueles que não conseguem mudar e não vão mudar e odeiam a mudança e não conseguem conceber transformações, exceto pelo fato de que eles querem sempre mudar você. Em outras palavras, traidor, aos olhos do fanático, é qualquer um que passa por uma mudança. E essa é uma escolha difícil, entre se tornar um fanático ou um traidor. Em determinado sentido, não ser um fanático significa ser, em certa medida e de certa forma, um traidor aos olhos do fanático.

Amoz Oz. Como curar um fanático.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Os Indiferentes

Odeio os indiferentes. Como Friederich Hebbel acredito que "viver significa tomar partido". Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.

A indiferença é o peso morto da história. É a bala de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam freqüentemente os entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus guerreiros, porque engole nos seus sorvedouros de lama os assaltantes, os dizima e desencoraja e às vezes, os leva a desistir de gesta heróica.

A indiferença atua poderosamente na história. Atua passivamente, mas atua. É a fatalidade; e aquilo com que não se pode contar; é aquilo que confunde os programas, que destrói os planos mesmo os mais bem construídos; é a matéria bruta que se revolta contra a inteligência e a sufoca. O que acontece, o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heróico (de valor universal) pode gerar, não se fica a dever tanto à iniciativa dos poucos que atuam quanto à indiferença, ao absentismo dos outros que são muitos. O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça quanto porque a massa dos homens abdica da sua vontade, deixa fazer, deixa enrolar os nós que, depois, só a espada pode desfazer, deixa promulgar leis que depois só a revolta fará anular, deixa subir ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá derrubar. A fatalidade, que parece dominar a história, não é mais do que a aparência ilusória desta indiferença, deste absentismo. Há fatos que amadurecem na sombra, porque poucas mãos, sem qualquer controle a vigiá-las, tecem a teia da vida coletiva, e a massa não sabe, porque não se preocupa com isso. Os destinos de uma época são manipulados de acordo com visões limitadas e com fins imediatos, de acordo com ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens não se preocupa com isso. Mas os fatos que amadureceram vêm à superfície; o tecido feito na sombra chega ao seu fim, e então parece ser a fatalidade a arrastar tudo e todos, parece que a história não é mais do que um gigantesco fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, de que são todos vítimas, o que quis e o que não quis, quem sabia e quem não sabia, quem se mostrou ativo e quem foi indiferente. Estes então zangam-se, queriam eximir-se às conseqüências, quereriam que se visse que não deram o seu aval, que não são responsáveis. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos põem esta questão: se eu tivesse também cumprido o meu dever, se tivesse procurado fazer valer a minha vontade, o meu parecer, teria sucedido o que sucedeu? Mas nenhum ou poucos atribuem à sua indiferença, ao seu cepticismo, ao fato de não ter dado o seu braço e a sua atividade àqueles grupos de cidadãos que, precisamente para evitarem esse mal combatiam (com o propósito) de procurar o tal bem (que) pretendiam.

A maior parte deles, porém, perante fatos consumados prefere falar de insucessos ideais, de programas definitivamente desmoronados e de outras brincadeiras semelhantes. Recomeçam assim a falta de qualquer responsabilidade. E não por não verem claramente as coisas, e, por vezes, não serem capazes de perspectivar excelentes soluções para os problemas mais urgentes, ou para aqueles que, embora requerendo uma ampla preparação e tempo, são todavia igualmente urgentes. Mas essas soluções são belissimamente infecundas; mas esse contributo para a vida coletiva não é animado por qualquer luz moral; é produto da curiosidade intelectual, não do pungente sentido de uma responsabilidade histórica que quer que todos sejam ativos na vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de nenhum gênero.

Odeio os indiferentes também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Nessa cidade, a cadeia social não pesará sobre um número reduzido, qualquer coisa que aconteça nela não será devido ao acaso, à fatalidade, mas sim à inteligência dos cidadãos. Ninguém estará à janela a olhar enquanto um pequeno grupo se sacrifica, se imola no sacrifício. E não haverá quem esteja à janela emboscado, e que pretenda usufruir do pouco bem que a atividade de um pequeno grupo tenta realizar e afogue a sua desilusão vituperando o sacrificado, porque não conseguiu o seu intento.

Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes.

Antonio Gramsci


11 de Fevereiro de 1917


Primeira Edição: La Città Futura, 11-2-1917
Origem da presente Transcrição: Texto retirado do livro Convite à Leitura de Gramsci"
Tradução: Pedro Celso Uchôa Cavalcanti.
Transcrição de: Alexandre Linares para o Marxists Internet Archive
HTML de: Fernando A. S. Araújo
Direitos de Reprodução: Marxists Internet Archive(marxists.org), 2005. A cópia ou distribuição deste documento é livre e indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License

domingo, 5 de maio de 2019

O fascismo eterno

Para os fascistas, pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas.

Da declaração atribuída a Goebbels ("Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola")  ao frequente de expressoes como 'porcos intelectuais', "cabeças-ocas", "esnobes radicais", "As universidades são um ninho de  comunistas", a suspeita em relação ao mundo  intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de  abandono dos valores tradicionais

0 Ur-Fascismo provém da frustração
individual ou social. Isso explica por
das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias früstradas,  desvalorizadas por alguma crise economica ou  humilhação política, assustadas pela pressão  dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo,  em que os velhos "proletários" estão se transformando em pequena burguesia (...), o fascismo  encontrará nessa nova maioria o seu auditório .

Umberto Eco. O fascismo eterno.

sábado, 4 de maio de 2019

A maldade do mundo me deixou má?

A maldade do mundo me deixou má?

A falta de empatia dos outros desperta em mim o desprezo por todos .
Como não me encaixo em nenhum grupo, fomento a divisão,
Tento provocar rivalidades e fim de amores.
O não reconhecimento de minha beleza me indispoe com as que possuem a beleza padrão. Quero atingi-las, assim como destruir aqueles que reforçam o destaque dado a elas.

Por isso virtualmente me transformo em quem gostaria de ser.
Flerto com todos que não teria chance no mundo real.
Humilho as agraciadas com o estilo padronizado.
Espalho meu ódio e rancor em busca de paz interior.

Mas o que desejo é o sorriso, a  amizade e o carinho de todos.
O que eu queria era um mundo mais amigável.

Eu responderia  com tanta maldade se tivesse recebido bondade?

Márcio Ramos