segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Eu ouço música


Eu ouço música como quem apanha chuva: 
resignado
e triste
de saber que existe um mundo
do Outro Mundo...

Eu ouço música como quem está morto
e sente

um profundo desconforto
de me verem ainda neste mundo de cá...

Perdoai,
maestros,
meu estranho ar!

Eu ouço música como um anjo doente
que não pode voar.

Mário Quintana. "Apontamentos de história sobrenatural".

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O guardador de rebanhos - VIII


Fernando Pessoa

(Alberto Caeiro)



Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem


E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!


Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz


E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.


A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.


Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
..........................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.


A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.


A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.


Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.


Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade


Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.


Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
.................................................................................

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
....................................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?


08-03-1914


segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Quintana

"É preciso algo que nos preocupe
Para acabar com a monotonia.
Briga com a sogra, duvida
De tua vida, de Deus, de tudo,
Das próprias coisas que melhores julgas,
Porque, na verdade,
Não há nada mais chato na vida
Do que um cachorro sem pulgas..."

Mario Quintana - Velório sem defunto

DAS UTOPIAS


Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!


Mario Quintana - Espelho Mágico

sábado, 21 de dezembro de 2013

Régio

Saio de mim
para quem sou
e jamais chego ao destino.
No caminho do ser
meu gozo é me perder.
Meu coração só tem morada
onde se acende um outro peito.
Meu anjo está cego,
meu poeta está mudo,
meu guru ficou amnésico.
O poeta
sabia que não ia por ali.
Eu vou por onde não sei.
Meu aqui
é sempre além.
Mia Couto, no livro “Idades Cidades Divindades”


Chegada

Chegas,
sóbria e sombria,
e desocupas em mim
a tua própria sombra.
Agora és a minha própria voz:
nenhum silêncio nos pode calar.
Falas e acaba o tempo.
E eu escuto-te
apenas quando te lembro.
Mia Couto

Regresso

Voltar
a percorrer o inverso dos caminhos,
reencontrar a palavra sem endereço
e contra o peito insuficiente,
oferecer a lágrima que não nos defende.
Recolher as marcas da minha lonjura
os sinais passageiros da loucura
e adormecer pela derradeira vez
nos lençóis em que anoitecemos.
Reencontrar secretamente
o fugaz encanto,
o perfeito momento
em que a carne tocou a fonte
e o sangue
fora de mim,
procurou o seu coração primeiro.
Mia Couto,  In Raiz de Orvalho e outros poemas

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Memória de um amor que nunca foi

Bebedor de luas me embriago,
negro no fundo negro das vielas
e me dissolvo, sem passo, no abismo
onde o tempo naufraga sem lembrança.
Um rio sustenta a tua boca,
duas margens de água e carne,
duas feridas de um desejo que do corpo se perdeu.
Não fosse a tua boca
água nua esperando um barco
e morreria eu de amar,
e morrerias tu sem mar.
Mas do sempre que fomos
o que restou?
Silêncio aos pedaços,
palavras que em lágrima se soletram.
E são de aves
as folhas que tombam
e não há chão nem vento onde se deitem. 
Melhor dormir se o tempo se faz sem ti
e guardar-te em sonho
até tu mesmo seres noite. 
Desperto: todas as pedras secaram,
saudosas de carícia tua.
Todas as luas ficaram por nascer
sedentas dos olhos que são teus.
Depois volto a beber
o luminoso veneno em que escureço
e o dia regressa,
mendigo e magro,
buscando em mim
lembrança de um amor
que de tanto ser
não saberá nunca ter lembrança.
Mia Couto

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Hoje Tomei a Decisão de Ser Eu




Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser Eu, de viver à altura do meu mister, e, por isso, de desprezar a ideia do reclame, e plebeia sociabilizacão de mim, do Interseccionismo, reentrei de vez, de volta da minha viagem de impressões pelos outros, na posse plena do meu Génio e na divina consciência da minha Missão. Hoje só me quero tal qual meu carácter nato quer que eu seja; e meu Génio, com ele nascido, me impõe que eu não deixe de ser. 

Atitude por atitude, melhor a mais nobre, a mais alta e a mais calma. Pose por pose, a pose de ser o que sou. 

Nada de desafios à plebe, nada de girândolas para o riso ou a raiva dos inferiores. A superioridade não se mascara de palhaço; é de renúncia e de silêncio que se veste. 

O último rasto de influência dos outros no meu carácter cessou com isto. Reconheci — ao sentir que podia e ia dominar o desejo intenso e infantil de « lançar o Interseccionismo» — a tranquila posse de mim. 
Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci. 

Fernando Pessoa, 
'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação'

Fonte:
Palavras sentidas

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Porco-espinhos/homens



“Um grupo de porcos-espinhos num frio dia de inverno se aglomerou para, através do aquecimento recíproco, não morrer de frio. Contudo, logo começam a sentir os espinhos uns dos outros, o que os leva então a se afastarem novamente. Quando a necessidade de aquecimento os aproxima mais uma vez, repete-se aquele segundo infortúnio. Neste vai-e-vem em meio aos dois sofrimentos, seguem até encontrarem uma distância segura entre eles, na qual podem melhor suportá-los. Do mesmo modo os homens são impelidos uns aos outros pelas necessidades da sociedade, de cujo seio surgem o vazio e a monotonia. Entretanto, suas particularidades assaz desagradáveis e defeitos insuportáveis os afastam mais uma vez. A distância mediana ao fim encontrada, na qual podem se reunir, são a polidez e os bons costumes (...) Quem no entanto tem muito de seu calor interno prefere ficar longe da sociedade, para não ser incomodado e não causar incômodo.”

- Arthur Schopenhauer, Parerga und Paralipomena II

domingo, 15 de dezembro de 2013

OS DEGRAUS



Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...

Mario Quintana - Baú de Espantos

domingo, 1 de dezembro de 2013

UM DIA ACORDARÁS



Um dia acordarás num quarto novo
sem saber como fosse para lá
e as vestes que acharás ao pé do leito
de tão estranhas te farão pasmar,

a janela abrirás, devagarinho:
fará nevoeiro e tu nada verás...
Hás de tocar, a medo, a campainha
e, silenciosa, a porta se abrirá.

E um ser, que nunca viste, em um sorriso
triste, te abraçará com seu maior carinho
e há de dizer-te para o teu assombro:

— Não te assustes de mim, que sofro há tanto!
Quero chorar — apenas — no teu ombro
e devorar teus olhos, meu amor...

_____Mario Quintana - Nariz de Vidro