segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

A biblioteca de babel

"Você, que me lê, tem certeza de entender minha linguagem?
A escrita metódica distrai-me da presente condição dos homens. A certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos fantasmagoriza. Conheço distritos em que os jovens se prostram diante dos livros e beijam com barbárie as páginas, mas não sabem decifrar uma única letra. As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações que inevitavelmente degeneram em bandoleirismo, dizimaram a população. Acredito ter mencionado os suicídios, cada ano mais freqüentes. Talvez me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que a espécie humana -  a única - está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta."

Jorge Luis Borges. Ficções. "A biblioteca de Babel."

sábado, 30 de novembro de 2019

A "feiúra" que "embeleza".

Pecola está em algum lugar naquela casinha marrom para onde ela e a mãe se mudaram, nos limites da cidade, e onde, de vez em quando, ainda dá para vê-la. Os gestos de passarinho se reduziram a um mero catar e colher entre os aros de pneus e os girassóis, entre as garrafas de coca-cola e a serralha brava, entre todo o lixo e a beleza do mundo – que é o que ela própria era. Todo o nosso lixo,  que jogamos em cima dela e que ela absorveu. E toda a nossa beleza, que foi primeiro dela e que ela deu a nós. Todos nós— todos os que a conheceram – nos sentíamos tao higiênicos depois de nos limparmos nela. Éramos tão bonitos quando montávamos na sua feiura. A simplicidade dela nos condecorava, sua culpa nos santificava, sua dor nos fazia reluzir de
saúde, seu acanhamento nos fazia pensar que tínhamos senso de humor. Sua dificuldade de expressão nos fazia acreditar que éramos eloquentes. Sua pobreza nos mantinha generosos. Até seus devaneios usamos - para silenciar nossos próprios pesadelos. E ela nos deixou fazer isso e, portanto, merece nosso desprezo. Nela, afiamos o nosso ego, com a fragilidade dela reforçamos nosso caráter, e bocejávamos na fantasia de nossa força.

E era fantasia, pois não éramos fortes, apenas agressivos; não éramos livres, meramente autorizados; não éramos compassivos, éramos polidos; não bons, mas bem-comportados. Cortejávamos a morte a fim de nos chamarmos de corajosos, e escondíamo-nos da vida como ladrões. Substituímos intelecto por boa gramática;  mudávamos os hábitos para simular maturidade; rearranjávamos mentiras e as chamávamos de verdade, vendo no padrão novo de uma ideia antiga a Revelação e a Palavra.

Ela, porém, avançou para a loucura, uma loucura que a protegeu de nós simplesmente porque, no fim, nos entediou.

Toni Morrison. O olho mais azul, pag. 205

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Estética opressora

         "Fazia muito tempo que ela tinha abandonado a ideia de fugir para ver imagens novas, rostos novos, como Sammy fizera tantas vezes. Ele nunca a levava e nunca pensava na fuga com antecedência, portanto nunca a planejava. E, de todo jeito, não teria dado certo. Enquanto ela tivesse a aparência que tinha, enquanto fosse feia, teria que ficar com aquelas pessoas. Por algum motivo ela lhes pertencia. Passava longas horas sentada diante do espelho, tentando descobrir o segredo da feiura, a feiura que a fazia ignorada ou desprezada na escola, tanto pelos professores quanto pelos colegas. Era a única pessoa da classe sentava sozinha numa carteira dupla. A primeira letra do seu sobrenome sempre a obrigava a sentar na frente. Mas e Marie Apollinaire? Marie ficava na sua frente, mas dividia a carteira com Luke Angelino.Os professores sempre a tinham tratado daquele jeito. Tentavam não olhar para ela, e só a chamavam quando todos tinham que  dar uma resposta. Ela também sabia que, quando uma das meninas da escola queria ofender de verdade um menino ou quando queria obter uma reação imediata dele, podia dizer "Bobby gosta da Pecola Breedlove! Bobby gosta da Pecola Breedlove!" e nunca deixava de provocar gargalhadas de quem ouvisse e raiva fingida do acusado.
             Tinha ocorrido a Pecola, havia algum tempo, que, se os seus olhos, aqueles olhos que retinham as imagens e conheciam as cenas, fossem diferentes, ou seja, bonitos, ela seria diferente. Tinha bons dentes, e o nariz, pelo menos, não era grande e chato como o de algumas garotas que eram consideradas tão bonitinhas. Se tivesse outra aparência, se fosse bonita, talvez Cholly fosse diferente, e a sra. Breedlove também. Talvez eles dissessem: ‘Ora, vejam que olhos bonitos os da Pecola. Não devemos fazer coisas ruins na frente desses olhos bonitos."

Toni Morrison. O olho mais azul, pag. 49.

A feiúra



Os Breedlove não moravam na parte da frente de uma loja por estarem passando por dificuldades temporárias, adaptando-se aos cortes na fábrica. Moravam ali por serem pobres e negros, e ali permaneciam porque se achavam feios. Embora sua pobreza fosse tradicional e embrutecedora, não era exclusiva. Mas sua feiura era exclusiva. Ninguém teria conseguido convencê-los de que não eram implacável e agressivamente feios. Com exceção do pai, Cholly, cuja feiura (resultado de desespero, dissipação e violência dirigida a ninharias e a pessoas fracas) era o comportamento, o resto da família - a sra. Breedlove, Sammy Breedlove e Pecola Breedlove - usava a feiura, vestia-a, por assim dizer, embora ela não lhe pertencesse. Os olhos, pequenos e muito juntos, sob uma testa estreita. O contorno do couro cabeludo baixo, irregular, que parecia ainda mais irregular pelo contraste com as sobrancelhas retas e densas que quase se juntavam. Nariz afilado mas arqueado com narinas insolentes. Tinham maçãs do rosto altas e orelhas de abano. Lábios bem-feitos que chamavam a atenção não para si, mas para o resto do rosto. A gente olhava para eles e ficava se perguntando por que eram tão feios; olhava com atenção e não conseguia encontrar a fonte. Depois percebia que ela vinha da convicção, da convicção deles. Era como se algum misterioso patrão onisciente tivesse dado a cada um deles uma capa de feiura para usar e eles a tivessem aceitado sem fazer perguntas. O patrão dissera: "Vocês são feios". Eles tinham olhado ao redor e não viram nada para contradizer a afirmação; na verdade, viram sua confirmação em cada cartaz de rua, cada filme, cada olhar. "Sim", disseram. "O senhor tem razão." E tomaram a feiura nas mãos, cobriram-se com ela como se fosse um manto e saíram pelo mundo. Cada um lidando com ela do seu jeito. A sra. Breedlove lidava com a sua da maneira como um ator lida com um recurso cênico: para acomposição da personagem, para dar apoio ao papel que ela frequentemente imaginava fosse o seu - o de mártir. Sammy usava a dele como uma arma para causar dor aos outros. Adaptou seu comportamento a ela, escolhia os companheiros com base nela: pessoas que podiam ficar fascinadas, até intimidadas com ela. E Pecola. Pecola escondia-se por trás da sua. Oculta, velada, eclipsada muito raramente espiando por trás do véu, e mesmo assim só para ansiar pelo retorno da máscara.

Toni Morrison. O olho mais azul, pag. 43.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

A sociedade do Cansaço. o sujeito de desempenho.

"O sujeito de desempenho pós-moderno
não está submisso a ninguém. Propriamente
falando, não é mais sujeito, uma vez que esse
conceito se caracteriza pela submissão (subject to, sujet à, sujeito a). Ele se positiva, liberta-se para um projeto. A mudança de sujeito para projeto, porém, não suprime as coações. Em lugar da coação estranha, surge a auto coação, que se apresenta como liberdade. Essa evolução está estreitamente ligada com as relações de produção capitalistas. A partir de um certo nível de produção, a autoexploração é essencialmente mais eficiente, muito mais produtiva que a exploração estranha, visto que caminha de mãos dadas com o sentimento da
liberdade. A sociedade de desempenho é uma
sociedade de autoexploração.
O sujeito de desempenho explora a si mesmo, até consumir-se completamente (burnout). Ele desenvolve nesse processo uma agressividade, que não raro se agudiza e desemboca num suicídio. O projeto se mostra como um projetil, que o sujeito de desempenho direciona contra si mesmo."

Sociedade do Cansaço. Byung-Chul Han.

Quando

Quando não adiantar ouvir Let it be
Quando os galos estiverem mudos
Quando as noites forem de trabalho
Quando tiveres decorado o terceiro capítulo do livro de Jó
Conte comigo.
Não entendo de viagens ou de automóveis
Porém sei o que sentes.

Erinilton Gomes

A sociedade do Cansaço. O que é política?

A salvação do belo é igualmente o resgate do
político. Hoje parece que a política vive ainda
apenas de decretos de urgência. Já não é livre Isto quer dizer: Hoje já não há política. Se ela já não admite nenhuma alternativa, acaba se aproximando de uma ditadura, da ditadura do capital. Os políticos, que hoje se degradam em capangas do sistema, que no melhor dos casos são hábeis administradores da economia doméstica ou contadores, não são mais políti cos no sentido aristotélico.

Agir no sentido enfático é o que perfaz a
vida do político (bios politikos). Ele não está
submisso ao veredito da necessidade e da utilidade. (...)O político enquanto homem livre precisa agir, ele deve produzir belos atos, belas formas de vida, para além daquilo que se faz necessário e útil à vida. Deve, por exemplo, modificar a sociedade, no sentido de possibilitar um incremento de justiça, um aumento de felicidade. Agir político significa fazer com que surja algo totalmente novo, ou o nascimento de uma situação social nova. O argumento muito conhecido, segundo o qual não há outra alternativa, nada mais significa que o fim da política. 

A sociedade do Cansaço. BYUNG-CHUL HAN


quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Sou triste

Sou triste
Mas tenho um sol particular
Nunca verá meu sorriso
Se não olhar bem de perto

As sementes crescem
O azul está na caixa de lápis
As estrelas nos inventam

Sou triste
Como um animal no zoológico
Como um poema não escrito
Mas tenho meu sol
Minha primavera
Minha explosão de cores
Meu exista a luz

Sou triste
Mas também posso ser jangada
E se você chegar perto
Posso te levar ao mar.

domingo, 1 de setembro de 2019

Utopias

Como posso acreditar / disse o fulano
que  o mundo ficou sem utopias
 
como posso acreditar
que a esperança é um esquecimento
ou que o prazer é uma tristeza
 
como posso acreditar / disse o fulano
que o universo é uma ruína
mesmo não sendo
ou que a morte é o silêncio
mesmo não sendo
 
como posso acreditar
que o horizonte é a fronteira
que o mar é ninguém
que a noite é nada
 
como posso acreditar / disse o fulano
que teu corpo / sicrana
não é algo mais do que apalpo
ou que teu amor
esse remoto amor que me destinas
não é a nudez dos teus olhos
a avareza das tuas mãos
 
como posso acreditar / sicrana austral
que és somente o que vejo
acaricio ou penetro
 
como posso acreditar / disse o fulano
que a utopia já não existe
se tu / sicrana doce
ousada / eterna
se tu / és minha utopia.
 
Mário Benedetti (1920-2009), poeta uruguaio, In: Antologia de Poemas de Amor.

sábado, 31 de agosto de 2019

Te quero – Mario Benedetti

Tuas mãos são minha carícia
Meus acordes cotidianos
Te quero porque tuas mãos
Trabalham pela justiça

Se te quero é porque tu és
Meu amor, meu cúmplice e tudo
E na rua lado a lado
Somos muito mais que dois

Teus olhos são meu conjuro
Contra a má jornada
Te quero por teu olhar
Que olha e semeia futuro

Tua boca que é tua e minha
Tua boca não se equivoca
Te quero porque tua boca
Sabe gritar rebeldia

Se te quero é porque tu és
Meu amor, meu cúmplice e tudo
E na rua lado a lado
Somos muito mais que dois

 


E por teu rosto sincero
E teu passo vagabundo
E teu pranto pelo mundo
Porque és povo te quero

E porque o amor não é auréola
Nem cândida moral
E porque somos casal
Que sabe que não está só

Te quero em meu paraíso
E dizer que em meu país
As pessoas vivem felizes
Embora não tenham permissão


Se te quero é porque tu és
Meu amor, meu cúmplice e tudo
E na rua lado a lado
Somos muito mais que dois.


Mário Benedetti

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Façamos um trato

Façamos um trato

Companheira
Você sabe
Que pode contar comigo,
Não até dois
Ou até dez,
Mas contar comigo.

Se alguma vez perceber
Que ao olhar nos meus olhos,
Não reconhece o meu amor,
Não duvide dele,
Lembre-se de que sempre
Pode contar comigo.

Se outras vezes
me encontrar impaciente,
Sem motivo,
Não pense que diminuiu o meu amor,
Ainda assim, pode contar comigo.

Mas façamos um trato,
Também quero contar com você.
É tão lindo saber que você existe
E quando digo isso,
Quero dizer contar
Seja até dois,
Seja até cinco.

Não para que venha logo em meu auxílio.
Mas para ter certeza,
Na medida certa,
Que você sabe,
Que pode contar comigo.

Mario Benedetti

terça-feira, 16 de julho de 2019

O grito

Tudo se resumia ferozmente em nunca dar um primeiro grito – um primeiro grito desencadeia todos os outros, o primeiro grito ao nascer desencadeia uma vida, se eu gritasse acordaria milhares de seres gritantes que iniciariam pelos telhados um coro de gritos e horror. Se eu gritasse desencadearia a existência – a existência de quê? a existência do mundo. Com reverência eu temia a existência do mundo para mim.

Clarice Lispector. A paixão segundo G.H

sábado, 22 de junho de 2019

Assim na terra como embaixo da terra.

"Quem derramar o sangue do homem, pelo homem o seu sangue será derramado; porque Deus fez o homem conforme a sua imagem." Esse versículo da Biblia permanecia pregado na porta do seu armário no quartel. Todos sabiam que era um homem de fé e de sangue. Acreditava que se Deus fez o homem conforme a sua imagem, então a justiça de Deus deveria ser feita por intermédio do homem, ja que todo ser humano é a manifestação de Deus na Terra.
Quando um homem mata um homem, ele mata a imagem de Deus; e, assim, a imagem de Deus torna-se assassina e assassinada ao mesmo tempo. Era comum cair em longos silencios depois de matar. Por um lado, justiça havia sido
feita; por outro, um pouco de Deus estava morto.(...)

O confinamento de homens assemelha-se a um curral de animais O gado é abatido para se transformar em alimentos; os homens, por sua vez, são abatidos para deixarem  de existir. Não é um lugar de recuperação ou coisa que o
valha, é um curral para se amontoarem os indesejados, muito semelhante aos espaços destinados às montanhas  de lixo, que ninguém quer lembrar que existem, ver ou  sentir seus odores.

Ana Paula Maia. "Assim na terra como embaixo da terra. "

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Os Três Mal Amados

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

João Cabral de Melo Neto




quarta-feira, 5 de junho de 2019

Vozes

Vozes, vozes, vozes...
Falatório sem sentido.
Incapacidade de intervenção nesse caos...
Recorte do grande circo que tem sido a experiência humana. 

A Náusea se aproxima. Sucumbo-me à sua força.

terça-feira, 28 de maio de 2019

Morcegos e humanidade

Fui ganhando destreza na arte de capturar os grandes morcegos, esses vorazes comedores de fruta. Nos troncos
cimeiros se conservavam de cabeça para baixo, balanceando como pêndulos vivos, alertados mas sem receio aparente. Empoleirada nas alturas, contemplava-os
demoradamente antes de lhes lançar a rede. Nem sempre se distinguiam os vivos dos falecidos. As garras  prendiam-se aos ramos com tal afinco que, mesmo depois
de mortos, permaneciam suspensos e assim secavam até  não serem mais que uma engelhada sombra. Alguns de nós, humanos, temos esse mesmo destino: falecidos pó dentro, e apenas mantidos pela parecença com os vivos que já fomos.

Mia Couto. Mulheres de cinza.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

A cura para o fanatismo

Eu comecei dizendo que o fanatismo muitas vezes começa em casa. Deixe-me concluir dizendo que o antídoto também pode ser encontrado em casa, virtualmente na ponta dos dedos. Nenhum homem é uma ilha, disse John Donne, mas eu humildemente ouso acrescentar a isso: nenhum homem e nenhuma mulher é uma ilha, mas cada um de nós é uma península, metade ligada ao continente, metade voltada para o mar; metade ligada à família e amigos e cultura e tradições e país e nação e sexo e língua e muitos outros laços. E a outra metade quer ser deixada só e ficar voltada para o oceano. Creio que devíamos ter permissão para continuarmos a ser penínsulas. Todo sistema social e político que faz cada um de nós ser uma ilha darwiniana e o resto da humanidade um inimigo ou rival é um monstro. Mas, ao mesmo tempo, todo sistema social e político e ideológico que quer fazer de nós não mais do que uma molécula do continente também é uma monstruosidade. A condição de península é a própria condição humana. É isso que somos e é o que merecemos continuar sendo. Assim, em certo sentido, em toda casa, em toda família, em toda conexão humana, temos de fato um relacionamento entre um número de penínsulas, e é melhor que nos lembremos disso antes de tentar moldar um ao outro e modificar um ao outro e fazer o próximo ficar do nosso jeito quando ele ou ela, na verdade, estão precisando se voltar ao oceano por um momento. E isso vale para grupos sociais e culturas e civilizações e nações e, sim, israelenses e palestinos. Nenhum deles é uma ilha e nenhum deles pode se misturar completamente com o outro. Essas duas penínsulas deviam manter um relacionamento e, ao mesmo tempo, ser deixadas consigo mesmas. Sei que é uma mensagem incomum nesses dias de violência e de ira e de vingança e fundamentalismo e fanatismo e racismo, todos à solta no Oriente Médio e em toda parte. Um senso de humor, a capacidade de imaginar o outro, a competência de reconhecer a qualidade peninsular de cada um de nós poderá ser pelo menos uma defesa parcial contra o gene do fanatismo que existe em todos nós.

Amoz Oz. Como curar um fanático.

Fanatismo

A essência do fanatismo reside no desejo de forçar outras pessoas a mudar. A inclinação comum para fazer seu próximo melhorar, ou para corrigir sua esposa, ou para direcionar seu filho, ou para endireitar seu irmão, em vez de deixá-los serem como são. O fanático é a menos egoísta das criaturas. O fanático é um grande altruísta. Frequentemente o fanático está mais interessado em você do que nele mesmo. Ele quer salvar sua alma, quer te redimir, quer te livrar do pecado, do erro, de fumar, de sua fé ou de sua falta de fé, quer melhorar seus hábitos alimentares, ou te curar da bebida ou de sua preferência na hora de votar. O fanático se importa muito com você, ele está sempre pulando em seu pescoço porque te ama de verdade, ou então está em sua garganta caso demonstre ser irrecuperável. E seja qual for o caso, falando topograficamente, pular em seu pescoço e estar em sua garganta é quase o mesmo gesto. De um modo ou de outro, o fanático está mais interessado em você do que nele mesmo, pela muito simples razão de que o fanático tem muito pouco de “ele mesmo”, ou nenhum “ele mesmo”.

(...)
O fanatismo começa em casa. Inicia exatamente com o impulso muito comum de mudar um parente querido para o próprio bem dele, começa com o ímpeto de se sacrificar pelo bem de um querido e amado vizinho, começa com o impulso de dizer a um filho seu: “Você deve ser como eu e não como sua mãe” ou “Você deve ser como eu e não como seu pai” ou “Por favor, seja algo muito diferente de seus dois pais”. Ou, entre casais casados, “Você tem de mudar, você precisa enxergar as coisas como eu vejo ou esse casamento não vai funcionar”. Frequentemente começa com o impulso de viver sua vida calcada na vida de outra pessoa. De doar a si mesmo para facilitar a satisfação do próximo ou o bem-estar das próximas gerações. O autossacrifício muitas vezes envolve infligir terríveis sentimentos de culpa no beneficiário, e com isso manipular, até mesmo controlar ele ou ela. Se tivesse de escolher entre os dois estereótipos de mãe na famosa piada judaica — a mãe que diz a seu filho: “Termine o seu café da manhã ou eu te mato” ou a que diz: “Termine o seu café da manhã ou eu me mato” —, eu provavelmente escolheria o menor dos dois males. Isto é, em vez de não terminar meu café da manhã e morrer, não terminar meu café da manhã e ter sentimento de culpa pelo resto da minha vida.

Amoz Oz. Como curar um fanático.

A infantilização da humanidade

Talvez o pior aspecto da globalização seja a infantilização da humanidade: “o jardim de infância global”, cheio de brinquedos e gadgets, balas e pirulitos. Até a metade do século XIX, alguns anos a mais ou a menos — isso varia de um país a outro, de um continente a outro —, mas aproximadamente, a maioria das pessoas na maior parte do mundo tinha pelo menos três certezas fundamentais: onde eu vou passar minha vida, o que vou fazer para viver e o que vai acontecer comigo depois que eu morrer. Quase toda pessoa no mundo, há apenas 150 anos, se tanto, sabia que ia passar a vida exatamente onde tinha nascido ou em algum lugar próximo, talvez na aldeia vizinha. Todo mundo sabia que o que faria como meio de vida era o que seus pais tinham feito como meio de vida, ou algo muito semelhante. E todos sabiam que, caso se comportassem bem, seriam transformados para viver num mundo melhor depois de morrer. O século XX corroeu e muitas vezes destruiu essas e outras certezas. A perda dessas certezas elementares pode ter sido a causa do meio século mais pesadamente ideológico, seguido do meio século mais furiosamente egoísta, hedonista, orientado para gadgets. Nos movimentos ideológicos da primeira metade do século passado, o mantra costumava ser “amanhã será um dia melhor — façamos sacrifícios hoje”; vamos até mesmo impor sacrifícios a outras pessoas hoje, para que nossos filhos herdem um paraíso no futuro. Em algum momento em meados desse século, tal conceito foi substituído pelo conceito de felicidade instantânea, não somente o famoso direito de batalhar pela felicidade, mas a efetivamente difundida ilusão de que a felicidade está ali nas prateleiras e que tudo que se deve fazer é enriquecer o bastante para se permitir adquirir a felicidade usando sua carteira. A noção de “felizes para sempre”, a ilusão de uma felicidade duradoura é, na atualidade, um oximoro. Ou um platô ou um clímax. Felicidade que dura para sempre não é felicidade, assim como um orgasmo que dura para sempre não é nenhum orgasmo.

Amoz Oz. Como curar um fanático.

Traidor

A traição não é o contrário do amor,
é uma de suas muitas opções. O traidor, penso eu, é aquele que muda, na visão daqueles que não conseguem mudar e não vão mudar e odeiam a mudança e não conseguem conceber transformações, exceto pelo fato de que eles querem sempre mudar você. Em outras palavras, traidor, aos olhos do fanático, é qualquer um que passa por uma mudança. E essa é uma escolha difícil, entre se tornar um fanático ou um traidor. Em determinado sentido, não ser um fanático significa ser, em certa medida e de certa forma, um traidor aos olhos do fanático.

Amoz Oz. Como curar um fanático.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Os Indiferentes

Odeio os indiferentes. Como Friederich Hebbel acredito que "viver significa tomar partido". Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.

A indiferença é o peso morto da história. É a bala de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam freqüentemente os entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus guerreiros, porque engole nos seus sorvedouros de lama os assaltantes, os dizima e desencoraja e às vezes, os leva a desistir de gesta heróica.

A indiferença atua poderosamente na história. Atua passivamente, mas atua. É a fatalidade; e aquilo com que não se pode contar; é aquilo que confunde os programas, que destrói os planos mesmo os mais bem construídos; é a matéria bruta que se revolta contra a inteligência e a sufoca. O que acontece, o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heróico (de valor universal) pode gerar, não se fica a dever tanto à iniciativa dos poucos que atuam quanto à indiferença, ao absentismo dos outros que são muitos. O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça quanto porque a massa dos homens abdica da sua vontade, deixa fazer, deixa enrolar os nós que, depois, só a espada pode desfazer, deixa promulgar leis que depois só a revolta fará anular, deixa subir ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá derrubar. A fatalidade, que parece dominar a história, não é mais do que a aparência ilusória desta indiferença, deste absentismo. Há fatos que amadurecem na sombra, porque poucas mãos, sem qualquer controle a vigiá-las, tecem a teia da vida coletiva, e a massa não sabe, porque não se preocupa com isso. Os destinos de uma época são manipulados de acordo com visões limitadas e com fins imediatos, de acordo com ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens não se preocupa com isso. Mas os fatos que amadureceram vêm à superfície; o tecido feito na sombra chega ao seu fim, e então parece ser a fatalidade a arrastar tudo e todos, parece que a história não é mais do que um gigantesco fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, de que são todos vítimas, o que quis e o que não quis, quem sabia e quem não sabia, quem se mostrou ativo e quem foi indiferente. Estes então zangam-se, queriam eximir-se às conseqüências, quereriam que se visse que não deram o seu aval, que não são responsáveis. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos põem esta questão: se eu tivesse também cumprido o meu dever, se tivesse procurado fazer valer a minha vontade, o meu parecer, teria sucedido o que sucedeu? Mas nenhum ou poucos atribuem à sua indiferença, ao seu cepticismo, ao fato de não ter dado o seu braço e a sua atividade àqueles grupos de cidadãos que, precisamente para evitarem esse mal combatiam (com o propósito) de procurar o tal bem (que) pretendiam.

A maior parte deles, porém, perante fatos consumados prefere falar de insucessos ideais, de programas definitivamente desmoronados e de outras brincadeiras semelhantes. Recomeçam assim a falta de qualquer responsabilidade. E não por não verem claramente as coisas, e, por vezes, não serem capazes de perspectivar excelentes soluções para os problemas mais urgentes, ou para aqueles que, embora requerendo uma ampla preparação e tempo, são todavia igualmente urgentes. Mas essas soluções são belissimamente infecundas; mas esse contributo para a vida coletiva não é animado por qualquer luz moral; é produto da curiosidade intelectual, não do pungente sentido de uma responsabilidade histórica que quer que todos sejam ativos na vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de nenhum gênero.

Odeio os indiferentes também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Nessa cidade, a cadeia social não pesará sobre um número reduzido, qualquer coisa que aconteça nela não será devido ao acaso, à fatalidade, mas sim à inteligência dos cidadãos. Ninguém estará à janela a olhar enquanto um pequeno grupo se sacrifica, se imola no sacrifício. E não haverá quem esteja à janela emboscado, e que pretenda usufruir do pouco bem que a atividade de um pequeno grupo tenta realizar e afogue a sua desilusão vituperando o sacrificado, porque não conseguiu o seu intento.

Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes.

Antonio Gramsci


11 de Fevereiro de 1917


Primeira Edição: La Città Futura, 11-2-1917
Origem da presente Transcrição: Texto retirado do livro Convite à Leitura de Gramsci"
Tradução: Pedro Celso Uchôa Cavalcanti.
Transcrição de: Alexandre Linares para o Marxists Internet Archive
HTML de: Fernando A. S. Araújo
Direitos de Reprodução: Marxists Internet Archive(marxists.org), 2005. A cópia ou distribuição deste documento é livre e indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License

domingo, 5 de maio de 2019

O fascismo eterno

Para os fascistas, pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas.

Da declaração atribuída a Goebbels ("Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola")  ao frequente de expressoes como 'porcos intelectuais', "cabeças-ocas", "esnobes radicais", "As universidades são um ninho de  comunistas", a suspeita em relação ao mundo  intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de  abandono dos valores tradicionais

0 Ur-Fascismo provém da frustração
individual ou social. Isso explica por
das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias früstradas,  desvalorizadas por alguma crise economica ou  humilhação política, assustadas pela pressão  dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo,  em que os velhos "proletários" estão se transformando em pequena burguesia (...), o fascismo  encontrará nessa nova maioria o seu auditório .

Umberto Eco. O fascismo eterno.

sábado, 4 de maio de 2019

A maldade do mundo me deixou má?

A maldade do mundo me deixou má?

A falta de empatia dos outros desperta em mim o desprezo por todos .
Como não me encaixo em nenhum grupo, fomento a divisão,
Tento provocar rivalidades e fim de amores.
O não reconhecimento de minha beleza me indispoe com as que possuem a beleza padrão. Quero atingi-las, assim como destruir aqueles que reforçam o destaque dado a elas.

Por isso virtualmente me transformo em quem gostaria de ser.
Flerto com todos que não teria chance no mundo real.
Humilho as agraciadas com o estilo padronizado.
Espalho meu ódio e rancor em busca de paz interior.

Mas o que desejo é o sorriso, a  amizade e o carinho de todos.
O que eu queria era um mundo mais amigável.

Eu responderia  com tanta maldade se tivesse recebido bondade?

Márcio Ramos

domingo, 21 de abril de 2019

Sobre provocar a dor

"Quase todos nós distinguimos, por experiência, o que é a dor. Quando ferimos os outros, sabemos que os machucamos. Mesmo que finjamos não saber.

Todos nós comemos da Árvore do Conhecimento, cujo nome completo em hebraico é ערו בוט תעדה ץע, Ets haDaat Tov veRá, a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Se eu tivesse de destilar os Dez Mandamentos em um só, ou o imperativo categórico de Kant em duas palavras, eu diria: “Não ferirás”. [Ou em três palavras: “Não infligirás dor”.]

Tenho mantido uma discussão amarga com um compatriota muito famoso e meu correligionário judeu, Jesus Cristo, que diz: “Perdoa-lhes: não sabem o que fazem”. Às vezes concordo com a primeira parte da sentença, a parte do perdão, mas rejeito energicamente a segunda parte, que implica que devamos ser todos, ou a maioria de nós, perdoados porque somos moralmente imbecis. Não somos. Sabemos o que significa a dor. Sabemos que é errado infligir dor. Toda e cada vez que infligimos dor aos outros, sabemos o que estamos fazendo. Ah, sabemos, sim. Mesmo uma criancinha inocente que puxa o rabo do cachorro sabe que está causando dor. A dor é o grande denominador comum de todas as coisas comuns. A dor é uma experiência democrática, até mesmo uma experiência igualitária. A dor não distingue entre o mais rico e o mais pobre, entre o mais poderoso e o mais submisso. Sempre que infligimos dor aos outros, não o fazemos a partir da ignorância, mas porque, ao que parece, deve haver algum gene malévolo em quase todos nós."

Amós Oz. Como curar um fanático.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Olhos d’água



Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada, custei reconhecer o quarto da nova casa em eu que estava morando e não conseguia me lembrar de como havia chegado até ali. E a insistente pergunta martelando, martelando. De que cor eram os olhos de minha mãe? Aquela indagação havia surgido há dias, há meses, posso dizer. Entre um afazer e outro, eu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha mãe. E o que a princípio tinha sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite se transformou em uma dolorosa pergunta carregada de um tom acusativo. Então eu não sabia de que cor eram os olhos de minha mãe?

Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo busquei dar conta de minhas próprias dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de minha mãe, aprendi a conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como também sabia reconhecer, em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias. Naquele momento, entretanto, me descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor seriam os seus olhos. Eu achava tudo muito estranho, pois me lembrava nitidamente de vários detalhes do corpo dela. Da unha encravada do dedo mindinho do pé esquerdo... da verruga que se perdia no meio uma cabeleira crespa e bela... Um dia, brincando de pentear boneca, alegria que a mãe nos dava quando, deixando por uns momentos o lava-lava, o passa-passa das roupagens alheias e se tornava uma grande boneca negra para as filhas, descobrimos uma bolinha escondida bem no couro cabeludo dela. Pensamos que fosse carrapato. A mãe cochilava e uma de minhas irmãs, aflita, querendo livrar a boneca-mãe daquele padecer, puxou rápido o bichinho. A mãe e nós rimos e rimos e rimos de nosso engano. A mãe riu tanto, das lágrimas escorrerem. Mas de que cor eram os olhos dela?

 Eu me lembrava também de algumas histórias da infância de minha mãe. Ela havia nascido em um lugar perdido no interior de Minas. Ali, as crianças andavam nuas até bem grandinhas. As meninas, assim que os seios começavam a brotar, ganhavam roupas antes dos meninos. Às vezes, as histórias da infância de minha mãe confundiam-se com as de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era justamente nesses dias de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas. Nessas ocasiões a brincadeira preferida era aquela em que a mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho de madeira. Felizes, colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que circundava o nosso barraco. As flores eram depois solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça para a Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só ria de uma maneira triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha mãe? Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a nossa fome se distraía.

Às vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se sentava na soleira da porta e, juntas, ficávamos contemplando as artes das nuvens no céu. Umas viravam carneirinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes adormecidos, e havia aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço, que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se esvaecessem também. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?

 Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados de prantos balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco desabasse sobre nós. E eu não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da chuva... Sei que tudo me causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então, por que eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?

 E naquela noite a pergunta continuava me atormentando. Havia anos que eu estava fora de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida para mim e para minha família: ela e minhas irmãs tinham ficado para trás. Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida, não só dela, mas de minhas tias e de todas as mulheres de minha família. E também, já naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas Senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?

 E foi então que, tomada pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam os olhos de minha mãe, naquele momento resolvi deixar tudo e, no dia seguinte, voltar à cidade em que nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no dela, para nunca mais esquecer a cor de seus olhos.

 Assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar cumprindo um ritual, em que a oferenda aos Orixás deveria ser descoberta da cor dos olhos de minha mãe. E quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?

 Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.

Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção. Senti as lágrimas delas se misturarem às minhas.

Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma se tornam o espelho para os olhos da outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente no meu rosto, me contemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho, como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como estivesse buscando e encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei quando, sussurrando, minha filha falou: — Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?

Conceição Evaristo

sábado, 9 de março de 2019

Sobre livros e a magia da leitura.

A biblioteca compreendia uma maioria de romances, mas muitos eram proibidos aos menores de 15 anos e guardados à parte. E o método puramente intuitivo dos dois meninos não era na verdade uma escolha entre os que sobravam. Mas o acaso não é a pior coisa em matéria de cultura, e, devorando aqui e ali, os dois glutões engoliam o melhor ao mesmo tempo que o pior, sem aliás se preocuparem em guardar nada, e não guardando realmente quase nada, a não ser uma estranha e poderosa emoção que, através das semanas, dos meses e dos anos, fazia nascer e crescer neles todo um universo de imagens e lembranças redutíveis à realidade em que viviam no dia a dia, mas certamente não menos presentes para esses meninos ardentes que viviam seus sonhos tão violentamente quanto suas vidas. O que esses livros continham, no fundo, pouco contava. O que importava era aquilo que sentiam primeiro entrar  ao na biblioteca, onde não viam as paredes de livros pretos, mas um espaço e  horizontes múltiplos que, assim que transpunham a porta, os tirava da vida restrita do bairro. Depois vinha o momento em que, munidoscada um com os dois livros a que tinham direito, apertando-os com o cotovelo contra o corpo, saíam pela avenida àquela hora já escuraesmagando com os pés as bolotas dos grandes plátanos e imaginando as delicias que iriam saborear com seus livros, comparando-as já com as da semana anterior, até que, chegando à rua principal, começassem a abri-los sob a luz precária do primeiro lampião para recolher uma frase (por ex. "ele era de um vigor pouco comum") que iria reforçar neles a alegre e ávida esperança.

Albert Camus. O primeiro homem

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

A experiência

Ela dizia sim, mas talvez fosse não, era preciso voltar no tempo através de uma memória que mergulhara em trevas, nada era certo. A memória dos pobres já é por natureza menos alimentada que a dos ricos, tem menos pontos de referência no espaço, considerando que eles raramente saem do lugar onde vivem, e tem também menos
pontos de referência no tempo de uma vida uniforme e sem cor. E claro que existe a memória do coração, que dizem ser a mais segura, mas o coração se desgasta com as dificuldades e o trabalho, esquece mais depressa sob  o peso do cansaço. Só os ricos podem reencontrar o tempo perdido. Para os pobres, o tempo marca apenas os vagos vestigios do caminho da morte. E além disso, para poder suportar, nao convém se lembrar muito, é preciso ficar muito perto de cada dia, de cada hora, como fazia sua mãe.

Albert Camus. O primeiro homem

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Era silencioso o amor

Era silencioso o amor. Podia-se adivinhá-lo no cuida do da mãe enxaguando as roupas nas águas de anil. Era silencioso, mas via-se o amor entre seus dedos cortando a couve, desfolhando repolhos, cristalizando figos, bordando flores de canela sobre o arroz-doce nas tigelas.

Lia-se o amor no corpo forte do pai, em seu prazer pelo trabalho, em sua mansidão para com os longos domingos. Era silencioso, mas escutava-se o amor murmurando -
noite adentro - no quarto do casal. A casa, sem forro, deixava vazar esse murmurio com o aroma de fumo e canela, que invadia lençóis e dúvidas, para depois filtrar-se por entre telhas

Experimentava-se o amor quando, assentados ao calor da cozinha, pai e mãe falavam de distâncias, dos avós, das origens, dos namoros, dos casamentos.

E, quando o sono chegava, para cada menino em cada tempo, era o amor que carregava cada filho nos braços para a cama, ajeitando o cobertor sob o queixo.

Bartolomeu Campos de Queirós. Indez

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Vida e sonhos

"Havia, na minha rua, uma casa pequena e branca. Durante dias, lá não vivia ninguém. Mas, se a lua era cheia, a janela se abria como um livro. Um homem, com rosto de anjo, vestido de luar, debruçava na jane
la e pensava, em sossego, sobre a cidade. Mais calado que o silêncio, o homem olhava e mais nos olhava. Todos da cidade tinham cuidado para não quebrar o seu silêncio. Ninguém soprava uma palavra.

Cochichavam que ele esperava os habitantes
dormir. Na noite alta, ele saía para visitar o sono de cada um. Entrava mansinho, mais leve que o gato, doce como o sereno, suave como o perfume, e virava um sonho diferente para cada uma das pessoas. Naquela noite, todos dormiriam com um breve sorriso na boca.

O prefeito sonhava em ser governador; o padre, em ser bispo; a professora, em ser diretora; o deputado, em ser senador; o soldado, em ser tenente; a solteira, em ser casada; o pedreiro, em ser engenheiro; a
criança, em ser grande; o sem-teto, em ter casa. Todos queriam outra coisa. E para tudo precisava tempo. No dia seguinte, todos acordam como eram antes e com vontade de continuar sonhando.

Mas na cidade vivia um menino. O pai era forte. A mãe, doce. Sua casa ficava perto de um riacho cercado de pedras. Eram três irmãos. O menino tinhaainda um cachorro e uma bola azul.

Quando o senhor dos sonhos entrava em seu sono, o menino sonhava sempre com o que já possuía: um pai, uma mãe, dois irmãos, um cachorro e uma bola, um riacho com pedras cercando a casa. O menino não precisava de tempo, sua vida era um sonho.

O senhor do luar voltava para a casa antiga e fechava o livro da janela. Todo desconheciam quando seria sua próxima visita para sonhar de novo. Mas o homem sabia que naquela cidade morava um menino inteiramente feliz, por saber que viver é um sonho."

Bartolomeu Campos de Queirós. Tempo de vôo.

sábado, 26 de janeiro de 2019

Para isso fomos feitos

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Quem comanda a narração não e a voz: é o ouvido

"Kublai pergunta para Marco:

-Quando você retornar ao Poente, repetirá para a sua gente as mesmas histórias que conta para mim?
- Eu falo, falo- diz Marco , mas quem me ouve retém somente as palavras que deseja. Uma é a descrição do mundo a qual você empresta a sua bondosa atenção, outra é a que correrá os campanários de descarregadores e gondoleiros às margens do canal diante da minha casa no dia do meu retorno, outra ainda a que poderia ditar em idade avançada se fosse aprisionado por piratas genoveses e colocado aos ferros na mesma cela de um escriba de romances de aventuras. Quem comanda a narração não e a voz: é o ouvido."

Ítalo Calvino. As cidades invisíveis.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Onde está Deus

Onde está Deus, mesmo que não
exista? Quero rezar e chorar,
arrepender-me de crimes que não
cometi, gozar ser perdoado como uma
carícia não propriamente materna.
Um regaço para chorar, mas um
regaço enorme, sem forma, espaçoso
como uma noite de Verão, e contudo
próximo, quente, feminino, ao pé de
uma lareira qualquer... Poder ali
chorar coisas impensáveis, falências
que nem sei quais são, ternuras de
coisas inexistentes, e grandes dúvidas
arrepiadas de não sei que futuro...
Uma infância nova, uma ama
velha outra vez, e um leito pequeno
onde acabe por dormir, entre contos
que embalam, mal ouvidos, com uma
atenção que se torna morna, os perigos
que penetravam em jovens cabelos
louros como o trigo... E tudo isto muito
grande, muito eterno, definitivo para
sempre, da estatura única de Deus, lá
no fundo triste e sonolento da
realidade última das coisas...
Um colo ou um berço ou um
braço quente em torno ao meu
pescoço... Uma voz que canta baixo e
parece querer fazer-me chorar... O
ruído de lume na lareira... Um calor no
Inverno... Um extravio morno da
minha consciência... E depois sem som,
um sonho calmo num espaço enorme,
como a lua rodando entre estrelas...
Quando ponho de parte os meus
artifícios e arrumo a um canto, com um
cuidado cheio de carinho — com
vontade de lhes dar beijos — os meus
brinquedos, as palavras, as imagens, as
frases — fico tão pequeno e inofensivo,
tão só num quarto tão grande e tão
triste, tão profundamente triste! ...
Afinal eu quem sou, quando não
brinco? Um pobre órfão abandonado
nas ruas das sensações, tiritando de
frio às esquinas da Realidade, tendo
que dormir nos degraus da Tristeza e
comer o pão dado da Fantasia. De um
pai sei o nome; disseram -me que se
chamava Deus, mas o nome não me dá
ideia de nada. Às vezes, na noite,
quando me sinto só, chamo por ele e
choro, e faço-me uma ideia dele a
quem possa amar... Mas depois penso
que o não conheço, que talvez ele não
seja assim, que talvez não seja nunca
esse o pai da minha alma...
Quando acabará isto tudo, estas
ruas onde arrasto a minha miséria, e
estes degraus onde encolho o meu frio
e sinto as mãos da noite por entre os
meus farrapos? Se um dia Deus me
viesse buscar e me levasse para sua
casa e me desse calor e afeição... Às
vezes penso isto e choro com alegria a
pensar que o posso pensar... Mas o
vento arrasta-se pela rua fora e as
folhas caem no passeio... Ergo os olhos
e vejo as estrelas que não têm sentido
nenhum... E de tudo isto fico apenas
eu, uma pobre criança abandonada,
que nenhum Amor quis para seu filho
adoptivo, nem nenhuma Amizade para
seu companheiro de brinquedos.
Tenho frio de mais. Estou tão
cansado no meu abandono. Vai buscar,
O Vento, a minha Mãe. Leva-me na
Noite para a casa que não conheci...
Torna a dar-me ó Silêncio imenso, a
minha ama e o meu berço e a minha
canção com que dormia...
s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo
Soares.

sábado, 5 de janeiro de 2019

Sem pedras o arco não existe

Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
- Mas qual é a pedra que sustenta a ponte?- pergunta
Kublai Khan.
- A ponte não é sustentada por esta ou aquela
pedra - responde Marco -, mas pela curva do arco
que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo.
Depois acrescenta:
- Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
- Sem pedras o arco não existe.

As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

As cidades invisíveis. Vida on e offline?

Os antigos construiram Valdrada à beira de um lago com casas repletas de varandas sobrepostas e com ruas suspensas sobre a água desembocando em parapeitos balaustrados. Deste modo, o viajante ao chegar depara-se com duas cidades: uma perpendicular sobre o lago e a outra refletida de cabeça para baixo. Nada existe e nada acontece na primeira Valdrada sem que se repita na segunda, porque a cidade foi construida de tal modo que cada um de seus pontos fosse refletido por seu espelho, e a Valdrada na água contém não somente todas as acanaladuras e relevos das fachadas que se elevam sobre o lago mas também o interior das salas com os tetos e os pavimentos, a perspectiva dos corredores, os espelhos dos armários.

Os habitantes de Valdrada sabem que todos os seus atos são simultaneamente aquele ato e a sua imagem especular, que possui a especial dignidade das imagens, e essa consciência impede-os de abandonar-se ao acaso e ao esquecimento mesmo que por um único instante. Quando os amantes com os corpos nus rolam pele contra pele à procura da posição mais prazerosa ou quando os assassinos enfiam a faca nas veias escuras do pescoço e quanto mais a lâmina desliza entre os tendões mais o sangue escorre, o que importa não é tanto o acasalamento ou o degolamento mas o acasalamento e o degolamento de suas imagens límpidas e frias no espelho.

As vezes o espelho aumenta o valor das coisas, às vezes anula. Nem tudo o que parece valer acima do espelho resiste a si próprio refletido no espelho. As duas cidades gêmeas não são iguais, porque nada do que acontece em Valdrada é simétrico para cada face ou gesto, há uma face ou gesto correspondente invertido ponto por ponto no espelho. As duas Valdradas vivem uma para a outra, olhando-se nos olhos continuamente, mas sem se amar.

Ítalo Calvino. As cidades invisíveis.

As cidades invisíveis

Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem. Quando se veem, imaginam mil coisas a respeito umas das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as caricias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam.

Passa uma moça balançando uma sombrinha apoiada no ombro, e um pouco das ancas, também. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra toda a sua idade, com os olhos inquietos debaixo do véu e os lábios tremulantes. Passa um gigante tatuado; um homem jovem com os cabelos brancos uma anã; duas gêmeas vestidas de coral. Corre alguma coisa entre eles, uma troca de olhares como se fossem linhas que ligam uma figura à outra e desenham flechas, estrelas, triângulos, até esgotar num instante todas as combinações possiveis, e outras personagens entram em cena: um cego com um guepardo na coleira, uma cortesa com um leque de penas de avestruz, um efebo, uma mulher-canhão. Assim, entre aqueles que por acaso procuram abrigo da chuva sob o pórtico, ou aglomeram-se sob uma tenda do bazar, ou param para ouvir a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantar os olhos.

Existe uma contínua vibração luxuriosa em Cloé a mais casta das cidades. Se os homens  e as mulheres começassem a viver os seus sonhos efêmeros, todos os fantasmas se tornariam reais e começaria uma história de perseguições, de ficções, de desentendimentos, de choques, de opressões, e o carrossel das fantasias teria fim.

Ítalo Calvino. As cidades invisíveis.