quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

O homem "inteligente"

Era tido como um homem inteligente. É assim que, em certos círculos, se denomina a uma espécie peculiar de indivíduos que engordam à custa alheia, que não fazem absolutamente nada, que não querem fazer absolutamente nada, e que, por sua preguiça e ociosidade eternas, têm um pedaço de banha no lugar do coração. A todo instante se pode ouvir deles mesmos que não há nada que possam fazer, devido a certas circunstâncias muito adversas e complexas, que “lhes frustram o gênio”, e que por isso são “dignos de pena”. Essa é a sua frase pomposa tão habitual, o seu mot d’ordre (“Palavra de ordem”, em francês no original. (N. da T.)), a sua senha e o seu lema, a frase que esses senhores saciados e gorduchos ficam o tempo todo prodigalizando por toda parte, de modo que há muito tempo começou a nos enfastiar como um tartufismo (Referência a Tartufo, personagem da comédia de Molière, que virou símbolo de falso moralismo e hipocrisia. (N. da T.)) rematado e uma conversa fiada. Aliás, alguns desses histriões que não conseguem de modo algum encontrar o que fazer — o que, aliás, nunca sequer procuraram -, justamente por isso pretendem fazer com que todo mundo pense que não é um pedaço de banha que têm no lugar do coração, mas, ao contrário, de modo geral, algo muito profundo, embora o quê, precisamente, nem mesmo o maior cirurgião diria,claro que por cortesia.Esses senhores abrem caminho no mundo concentrando todos os seus instintos num sarcasmo grosseiro, numa reprovação míope e numa altivez desmedida. Como não têm mais nada a fazer a não ser ficar reparando e repisando as fraquezas e os erros alheios, e como seus bons sentimentos são tal qual os que são apanágio de uma ostra, então nem lhes é difícil, mediante tais meios de proteção, conviver com as pessoas com bastante cautela. E disso sevangloriam além da conta. Estão, por exemplo, quase convencidos de que praticamente o mundo todo deve lhes render tributo; de que o mundo é para eles* como uma ostra que pegam em caso de necessidade; que todos, com exceçãodeles, são tolos; que todos se parecem com uma laranja ou com uma esponja, que uma vez ou outra podem espremer quando têm necessidade do suco; que são os donos de tudo, e que toda essa ordem louvável das coisas se deve justamente ao fato de serem eles pessoas tão inteligentes e peculiares. Em sua altivez desmedida não admitem quaisquer defeitos em si mesmos. Eles se parecem com aquela espécie de trapaceiros práticos, Tartufos e Falstaffs (Falstaff: personagem de Shakespeare, sinônimo de bufão, vaidoso e inútil. (N. da T.)) congênitos, que de tanto trapacear acabaram convencendo a si mesmos que era assim que devia ser, ou seja, que para viver tinham que trapacear; e insistiam sempre tanto em assegurar a todo mundo que eram pessoas honestas que acabaram por convencer a si próprios, como se realmente fossem pessoas honestas e que sua trapaçaria também era uma coisa honesta. Nunca são capazes de um exame interior consciente, de uma autoavaliação nobre: para certas coisas são rudes demais. Acima de tudo e em primeiro plano está sempre a sua própria e valiosa pessoa, seu Moloch e Baal (Moloch é um deus adorado por certos povos da Antiguidade, que sacrificavam a ele seus recém-nascidos, jogando-os numa fogueira. Baal também é um deus pagão, associado ao demônio na mitologia cristã. A imagem de Baal como símbolo da opressão do homem pelas forças da civilização burguesa seria empregada mais tarde por Dostoiévski em Notas de inverno sobre impressões de verão (1863). (N. da T.)), seu esplêndido eu. Toda a natureza e o mundo inteiro não são para eles senão um espelho esplêndido, criado para queesse ídolo possa incessantemente admirar a si mesmo e não ver nada nemninguém além de si; depois disso, não é de se estranhar que veja tudo no mundo sob um aspecto tão disforme. Para tudo ele tem reservada uma frase feita, e, o que é o cúmulo da destreza de sua parte, uma frase da última moda. Inclusive são eles mesmos que contribuem com a moda, difundindo boca a boca por todos os cruzamentos essa ideia na qual farejam sucesso. São justamente eles que têm faro para farejar essa frase da moda e se apoderar dela antes dos outros, de tal modo que é como se ela tivesse saído deles. Eles sobretudo se abastecem de suas frases para exprimir a sua profunda simpatia pela humanidade, para definir qual a forma de filantropia mais correta e justificável racionalmente e, por fim, para punir incansavelmente o romantismo, ou seja, amiúde tudo o que é belo e verdadeiro, que em cada átomo tem mais valor que toda a espécie de moluscos deles. Mas são muito toscos para reconhecer a verdade numa forma anômala, transitória e inacabada, e rejeitam tudo o que ainda não amadureceu, não é estável e está em fermentação. Um homem bem nutrido passou sua vida toda alegremente, teve tudo de mão beijada, ele mesmo não fez nada e não sabe como é difícil fazer qualquer trabalho, e por isso ai daquele que tocar nos seus sentimentos gordurosos com alguma aspereza: ele nunca o perdoará por isso, sempre haverá de se lembrar e se vingar dele com prazer. Em resumo, meu herói não é nada mais nada menos que um saco gigantesco, enfunado a não mais poder, cheio de máximas, de frases da moda e etiquetas de todos os gêneros e espécies.

Fiódor  Dostoiévski. Um pequeno herói

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