quarta-feira, 14 de março de 2018

Passagem das horas

Passo adiante, nada se me figura; sou estrangeiro.
As mulheres que chegam às portas depressa
Viram apenas que eu passei.
Estou sempre do lado de lá da esquina dos que me querem ver,
Inatingível a metas e encrustamentos.

Ó tarde, que reminiscências!
Ontem ainda, criança que se debruçava no poço,
Eu via com alegria meu rosto para lá da água longínqua.
Hoje, homem, vejo meu rosto na água funda do mundo,
Mas se rio é só porque fui outrora
A criança que viu com alegria seu rosto no fundo do poço.

Sinto-os a todos substância da minha pele.
Toco no meu braço e eles estão ali.
Os mortos - eles nunca me deixam!
Nem as pessoas mortas, nem os lugares do passado, nem os dias.
E às vezes entre o ruído das máquinas da fábrica
Toca-me levemente uma saudade no braço
E eu viro-me...  e eis no quintal da minha casa antiga
A criança que fui ignorando ao sol quem eu haveria de ser.

Álvaro de Campos

Nenhum comentário:

Postar um comentário