segunda-feira, 16 de junho de 2014

Das Três Metamorfoses

Vou falar das três metamorfoses do espírito: como o espírito se transforma em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança. Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o espírito forte e sólido, imbuído de respeito. A força desse espírito reclama por coisas pesadas e das mais pesadas. “Que coisa é pesada?” – pergunta o espírito transformado em besta de carga. E ajoelha-se como camelo e quer que a carga lhe seja bem colocada. “Qual é a coisa mais pesada, ó heróis?” – pergunta o espírito transformado em besta de carga – “para que eu a carregue e me rejubile com minha força? Não será rebaixarmo-nos para nosso orgulho padecer? Deixar brilhar nossa loucura para zombarmos de nossa sensatez? Ou será separarmo-nos de nossa causa quando ela celebra sua vitória? Escalar altas montanhas para tentar o tentador? Ou será sustentarmo-nos com bolotas e erva do conhecimento e padecer de fome na alma por causa da verdade? Ou será estar enfermo e despedir os consoladores e travar amizade com surdos que nunca ouvem o que queremos? Ou será submergirmo-nos em água lamacenta quando essa for a água da verdade e não afastarmos de nós as frias rãs e os quentes sapos? Ou será amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma que procura nos assustar?” O espírito transformado em besta de carga se sobrecarrega de todas as coisas por mais pesadas que sejam. Como o camelo, apenas carregado, corre em direção ao deserto, assim se apressa o espírito para o deserto. Na extrema solidão do deserto, ocorre a segunda metamorfose. O espírito se torna leão. Pretende conquistar sua liberdade e ser o rei de seu próprio deserto. Procura então seu último senhor. Quer ser seu inimigo e de seu último Deus. Para sair vencedor, quer lutar com o grande dragão. Qual é o grande dragão a que o espírito já não quer chamar senhor nem Deus? “Tu Deves”, assim se chama o grande dragão. Mas o espírito do leão diz: “Eu Quero”. “Tu Deves” esbarra-lhe o caminho, resplandecente de ouro, coberto de escamas. E em cada uma de suas escamas brilha em letras douradas: “Tu Deves!” Valores milenares brilham nessas escamas e o mais poderoso de todos os dragões assim fala: “Em mim brilha o valor de todas as coisas”. “Todos os valores já foram criados e eu sou todos os valores criados. Para o futuro não deve existir ‘Eu Quero’!” – Assim falou o dragão. Meus irmãos, que falta faz o leão no espírito? Não bastará a besta de carga que se resigna e respeita? Criar valores novos é coisa que o leão ainda não pode, mas criar a liberdade para criar novamente, isso pode fazer a força do leão. Para criar a própria liberdade e dizer um sagrado não, mesmo perante o dever, para isso, meus irmãos, é preciso o leão. Conquistar o direito de novos valores é a tarefa mais terrível para um espírito dócil e respeitoso. Para ele, na verdade, isto é uma rapina e coisa própria de um animal de rapina. Como seu bem mais sagrado, ele amava outrora o “Tu Deves”. Mesmo no que há de mais sagrado, deverá agora encontrar apenas ilusão e arbitrariedade, se quiser arrancar à custa de seu amor sua liberdade. É preciso ser leão para essa violência. Dizei-me, porém, irmão. Que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o leão que ataca se transforme em criança? A criança é inocência, esquecimento, um recomeço, um brinquedo, uma roda que gira por si própria, movimento primeiro, uma santa afirmação. Sim, para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso uma santa afirmação. O espírito quer agora sua própria vontade. Tendo perdido o próprio mundo, quer conquistar seu mundo. Três metamorfoses do espírito vos mencionei. Como o espírito se transforma em camelo, o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança. Assim falava Zaratustra. (Friedrich Wilhelm Nietzsche, in “Assim Falava Zaratustra”)

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