segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Os três e ele.

O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Alberto Caeiro

O rapaz entrou no ônibus  falando e carregando uma mochila com as cores de seu time de futebol. Estava de bermudas e de chinelo. Mostrava-se eufórico. Junto dele, sua mulher estava com um bebê de meses ao colo. Ambos aparentavam ter menos de dezoito anos.

Sentam-se no banco do ônibus e ele continua a falar. Está contando como foram acordados pela sogra, que, aos gritos, alertava de que perderiam o ônibus. Ele conversa e sorri muito. A moça apenas sorri. O bebê só olha, como se estivesse tentando conhecer mais do mundo ao seu redor.

Mas o rapaz faz mais do que falar. Ele gesticula, mexe com o bebê, a todo momento busca a atenção da moça. Ela participa da conversa monossilabicamente. Para fazer a criança sorrir o rapaz simula dirigir o ônibus, passa uma marcha imaginável, faz grunhidos imitando a aceleração do veículo.

E foi essa simulação que despertou a atenção do homem taciturno sentado no banco paralelo a eles. Inicialmente o homem olhou com espanto e desgosto aquele falatório adolescente que o tirava de seu sossego."Que falta de noção desse sujeito, que molecada sem educação é essa dos dias de hoje"... Aos poucos, o homem abandona seu ensimesmamento e percebe que havia vida pujante no comportamento  do rapaz.

O rapaz continua seu monólogo. Agora ele fala da existência de outras galáxias, das descobertas de sistemas interplanetários e de como seria interessante se os três pudessem fazer uma viagem espacial, conhecer raças alienígenas, descobrir seus segredos tecnológicos e voltar para libertar a Terra de um ataque extraterrestre.

O homem sorriu ao ouvir a narração tão vívida do rapaz. Sorriu ao perceber que ainda havia gente levando a vida de forma leve, com risadas fáceis, com um universo particular que se mostrava suficiente, completo, como a empolgação demonstrada pelo moço, o olhar apaixonado e realizado da moça e o mexer inocente dos braços da criança.

Entretanto, o sorriso leve do homem ocultava um quê de tristeza. Tristeza por achar que esse mundo experimentado pelo casal e filho iria se desmoronar, mais cedo ou mais tarde. Era algo inevitável. Talvez quando as contas aumentassem, quando o rapaz perdesse o desejo de falar sobre seu imenso e rico mundo interior, ou quando a moça não quisesse mais ouvir suas histórias...Ou quando a primeira traição ocorresse. Tristeza por lembrar dos tempos em ele próprio viveu sob essa sensação de completude, de viver o infinito no presente, a sensação de estar em casa nesse mundão de deus. Tristeza por fracassar em todas suas últimas tentativas de se aproximar de uma experiência próxima a essa, e de não conseguir acreditar que poderia reencontrar esse Paraíso, ou seu simulacro.

De repente, o rapaz se levanta e dá o sinal para descer do ônibus, tirando o homem de suas elucubrações. O rapaz, a moça e a criança descem e seguem seu caminho de completo alheamento aos sentimentos do homem, que não consegue parar de pensar nos três e desiste de tentar voltar à leitura do livro que estava em sua mão.

Márcio Ramos

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