domingo, 15 de outubro de 2017

O professor

me explicou: um senhor, no Palhão, na fazenda Nhanva, altas beiras do Jequitaí,
para o ensino de todas as matérias estava encomendando um professor. Com urgência, era homem
de sua situação, garantia boa paga. Assim queria que Mestre Lucas fosse, que deixasse alguém
dando escola no lugar dele, no Curralim, por uns tempos; isso, claro, não podia. Eu queria ir?
– “O senhor acha que eu posso?” – perguntei; para principiar qualquer tarefa, quase que eu sozinho nunca tive coragem. – “Ei, pode!” – o Mestre Lucas declarou. Já que estava acondicionando numa bruaca os livros todos – geografia, arimética, cartilha e gramática – e borracha, lápis, régua, tinteiro, tudo o que pudesse ter serventia. Aceitei. Um entusiasmo nosso me botava brioso. (...)

Mas ele veio para mim, então, saudou, com um modo sensato de simpatia. Adiado eu disse: – “Sou o moço professor...” A alegria dele, me ouvindo, foi estupefacta. Me ferrou do braço, com porção de falas e agrados, subiu a escada comigo, me levou para um quarto, lá dentro, ligeiro, parecia até que querendo me esconder de todos. Uma doidice, de quê? Ah, mas, ah – esse quem era – o homem? Zé Bebelo. A fixe de fato, tudo nele, para mim, tirava mais para fora uma real novidade.

Disse ao senhor? – eu estava pensando que ia dar escola para os filhos dum fazendeiro. Engano. O comum, com Zé Bebelo, virava diferente adiante, aprazava engano. Estudante sendo ele mesmo. Me avisou. Quis antever os cadernos, livros, pegar com as mãos. Assim ler e escrever,e as quatro contas, ele já soubesse, consumia jornais. Remexeu, tarabuz, e tudo foi arrumando na mesa grande do quarto, senhor-jesus-cristo que assoviava, o cantarolado. Mas – e aí comigo falou sério – naquilo se tinha de sungar segredo: eu visse. – “Vamos constar é que estou assentando os planos! Você fica sendo meu secretário.” Nesse mesmo ido dia, a gente começou. Aquele homem me exercitou tonto, eh, ô, me fino fiz. Ânsia assim e anfa, e poder de entender demais, nunca achei quem outro. O que ele queria era botar na cabeça, duma vez, o que os livros dão e não. Ele era a inteligência! Vorava. Corrido, passava de lição em lição, e perguntava, reperguntava, parecia ter até raiva de eu saber e não ele, despeitos de ainda carecer de aprender, contra-fim. Queimava por noite duas, três velas. Ele mesmo falava: – “Relógio não vou olhar. Aí estudo, estudo, até que estico um cochilão. Cochilão me vem: então espairo o livro, e me deito, que me durmo.” Pela suavontade dele, simples. De dia, estávamos debulhando páginas, e de repente se levantava ele, chegava na janela, apitava num apito, ministrava aquela brama de ordens: dez, vinte executações duma vez. O pessoal corria, cumpriam; aquilo semelhava um circo, bom teatro. Mas, com menos de mês, Zé Bebelo se tinha senhoreado de reter tudo, sabia muito mais do que eu mesmo soubesse. Aí, a alegria dele ficou demasiadamente. Sobrevinha com o livro, me fazia de queima-cara um punhado de perguntas. Ao tanto eu demorava, treteava no explicar, errando a esmo, caloteava. Ai- ai-ai d’ele atalhar as minhas palavras, mostrar no livro que eu estava falso, corrigir o dito, me dar quinau. Se espocava às gargalhadas, espalmava mão, expendia outras normas, próprias de sua idéia lá dele – e sendo feliz de nessas dificuldades me ver, eu )a ignorante, esmorecido e escabreado.

João Guimarães Rosa. Grande sertão veredas.

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