domingo, 1 de outubro de 2017

Cuidado

Eu vou falar do nosso cabelo
Eu vou falar de tudo o que fazem tentando o sucesso
Eu vou falar porque isso acaba com a gente

Primeiro aparecem uns pentes frágeis
Impossíveis às nossas madeixas
Depois apontam para um padrão que nunca poderemos ter
Ficamos condenados à indiferença e à exclusão

De repente
Sonhamos com toalhas amarradas na cabeça oca
Num passe de mágica
Aceitamos o codinome pixaim e o sobrenome "Bombril"

Começamos a moldar o caráter
A amolecer diante das decisões
Infelizmente esquecemos que só podemos ser o que somos

Passamos a vida inteira tentando atingir uma clareza
Que nunca poderemos ter.
Nem precisamos

A negritude é um quarto escuro com bicho-papão e mula-sem-cabeça
É um quarto mítico onde ninguém quer entrar

Eu vou falar do que fazem com nosso cabelo
Eu vou falar de tudo o que fazem tentando o sucesso
Eu vou falar, porque isso acaba com a gente

Primeiro dizem que somos todos iguais
Que somos todos filhos de Deus
Rapidamente é diagnosticada a paranoia
Começamos a achar que o problema está na nossa cabeça preta

Nunca no olhar do outro
Nunca no deboche do outro
Nunca no sorriso de lado

Alguns conseguem ir mais longe
Mas isso tem um preço...

Precisam ficar sozinhos
Precisam ficar clarinhos
Precisam usar apliques

Eu vou falar do que fazem com o nosso cabelo
Eu vou falar de tudo o que fazem tentando o sucesso
Eu vou falar por que isso acaba com a gente

Deu branco!
Alguém me empresta uma identidade aprovada no teste da boa aparência?

Cristiane Sobral

(SOBRAL, 2011, pp.74-75) - Não vou mais lavar os pratos. Ed. Dulcina. 2ª ed. Brasília. 2011.

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