Deus é exactamente como são as mães, que criam e depois vão ficando para trás, à distância, numa distância que parece significar que não são mais precisas, e Ele, como elas, só sabe amar acima de qualquer defeito e qualquer falha, com cada vez maior saudade, mas não sabe o caminho, não sabe por onde os filhos foram, só pode suplicar que não se percam e não se percam da vontade de voltar. Espalha por toda a parte Seus sinais. Avisa contra tudo e cria memórias, para que os filhos se lembrem d’Ele mesmo em lugares onde nunca haviam estado antes e estabeleçam sempre um mapa que os esclareça para fora de qualquer labirinto.
Deus está na escuridão, e tacteia por toda a parte na vontade intensa de um toque, do aconchego do corpo dos filhos, um gentil toque ou um abraço. E os filhos distraem-se e são incautos ou tornam-se impuros e fogem, atarefados com suas paixões e incertezas, e pensam menos no quanto Deus pode sofrer do que no sofrimento que haverão eles de sentir pela mais pequena contrariedade. Os filhos partem sem saberem que o sentido da vida é chegar à origem.
Dispersos na paisagem de Deus, os filhos lembram, por vezes, do amor, como é primordial e lhes foi colocado no peito com generosidade. Contudo, os filhos julgam que o amor é o consumo da vida, o imediato que observam, a evidência de se verem acompanhados quando a verdadeira companhia encontra sempre um modo de chegar a casa. Eles partem para mais longe. Os filhos partem para mais longe buscando o que, afinal, tanto ficara lá atrás.
Deus, como as mães, corre os dias inteiros à janela e escuta. Qualquer bulício Lhe acelera o coração. Se existem passos em redor de Sua casa, se alguma voz O chama, palpita como doido de alegria na esperança de ter um filho em visita. Deus pisa até de leve, quer tudo em sossego, sem sobressalto, porque sabe apenas estar à espera por tão grande esperança de ser correspondido no amor. Como as mães, Ele arruma Sua casa, tem sempre as camas prontas, alguma fruta na mesa, de onde enxota as moscas barafustando, até indignado, porque aquelas frutas podem ser para oferecer à boca de um filho. E a fome de um filho é prioritária, contra leões e tempestades.
A casa de Deus tem a chave do lado de fora, debaixo de um vaso. Toda a gente o sabe. É tique de todas as mães que dormem lá dentro vulneráveis a qualquer ladrão em troca da oportunidade de, ao menos uma vez, um filho voltar, tomar a chave e entrar, mesmo que a meio da noite, no descanso profundo, entre os sonhos, porque, de todo o modo, o maior sonho possível é esse mesmo, que o filho volte e ocupe sua cama, ocupe seu lugar. Esteja nem que por um instante ali. Para que o veja, o ouça e sinta. E Deus preocupa-se com ver como engordou ou emagreceu, como está a cor em torno das pupilas dos olhos, como entorta a boca ao falar, se os cabelos lhe ficam brancos e caem mais cedo, que ferida traz no ombro, que ferida tem no coração, quem lha fez. E Deus escuta suas queixas e avalia suas mazelas e nunca culpa o filho, mesmo que toda a gente lúcida o fizesse, porque quer que os filhos sejam impunes, justos para que sejam sempre impunes. Sonhou-lhes a justiça e não quer ver mais nada. Ensinou assim.
Exactamente como as mães, Deus cozinha seus pratos favoritos e acredita que agora ficarão para sempre ou, ao menos, regressarão todos os fins de semana, todos os meses, que não vão ficar separados sem notícias por tanto tempo, porque dói demasiado. Deus confessa que os buscou no escuro. Passando as mãos pelas ruas do mundo, a descer o nariz para buscar seu cheiro, e tantas vezes pode ter feito ruído, por ter entornado algo pelo chão, talvez até por ter partido um canto de vidro. Não era a intenção. Fica ansioso, em certas buscas. Procura sem pressa, mas apressa-se sem noção. Deus, como são as mães, tem a impressão de que vai morrer se não voltar a ver os filhos. Depois, ouve pacientemente o filho a repreendê-lo, porque não devia andar à sua procura, porque não é mais criança, porque se sente demasiado comprometido, vigiado, cansado, ocupado, aflito com assuntos que Deus, como as mães, não haveria de entender ou aceitar. E Deus aceita Sua culpa e procura ser amado acima de toda a Sua precipitação. Está sempre à míngua de ser amado, porque nenhum amor dos filhos Lhe será o bastante. Terá um eterno medo do abandono.
Se os filhos repararem na casa de Deus, verão como conserva as fotografias expostas por todos os móveis, mesmo as mais velhinhas e descoloradas, a irem embora da luz, sem prata, evaporando. Ele convive com essas imagens e lembra cada instante como se não permitisse que nenhum instante terminasse. As lembranças dos filhos são sempre nascentes e não haverão jamais de terminar. Por causa disso, se Lhe perguntarem, verificam que Deus sabe tudo, lembra aquilo de que ninguém mais lembra. Guarda como um tesouro o passado. Sente tanto orgulho e tanta saudade que nunca deixará de lembrar e de contar a quem se abeirar como foi, como foram, como deverão estar felizes Seus filhos algures.
Ainda que tenha criado Céu e Terra, ainda que deitasse aos bichos uma infinidade de sentimentos para avanços e recuos, juízo de toda a ordem, inteligência e génio no ofício da sobrevivência e da multiplicação, Deus só entendeu o medo quando criou Seus filhos. Nunca imaginaria. Com o nascimento do primeiro filho comparou a felicidade ao medo. Tão grandes coisas, iguais de tamanho, agora irrevogáveis em Sua bravura de seguir em frente. Irremediáveis. Deus passou a dormir suave. Mais parecido a dormir do que verdadeiramente. E decidiu que o tempo se suspende à distância dos filhos. Vale de muito pouco ou quase nada. Deixa água à Sua cabeceira porque teme morrer de sede. Teme morrer sem acabar Sua tarefa e teme que Sua tarefa termine e O deixem morrer.
Quando Se levanta, ainda muito cedo, arriscando que as últimas raposas lhe subam às varandas e saltem janelas adentro, Deus deixa as portadas para trás e recebe o primeiro sol, outra vez acreditando que ainda vai acontecer de cada um de Seus filhos e cada uma de Suas filhas dizerem Seu nome inequívoca e alegremente. De pensar nisso, Deus chora e, distraído, chega a cantar. Quem passa perto, bem escuta. Se Ele se dá conta, como as mães, canta ainda mais alto, desimportado de desafinar.
A casa de Deus precisa de obras porque espera que os filhos venham para ajudar. Tem manchas de humidade nas quais Ele já nem repara. E andam por ali aranhas e até um escaravelho verde pequenino que deve ter vindo numas folhas de alface para a salada, e fustigam os ventos sempre a entortar uma telha ou a fazer tombar as árvores mais infantis. Deus repõe o que pode sem reparar que tudo vai ficando mais velho. Não repara porque a medida de Seus olhos são as memórias. Para Ele, tudo aquilo é feito da muita alegria que lembra, é feito do muito esforço de outrora, e a família ainda reverbera pelos cómodos, ainda é capaz de comer uma fatia de bolo e julgar que em seu redor reparte pelos filhos aquele pouco de açúcar e que toda a gente regozija tão feliz, como se não fossem necessárias outras felicidades, porque, na verdade, nenhuma é maior. Como se não fosse necessário que os filhos cresçam, porque até os filhos, se pudessem, escolheriam estar para sempre naquele instante, em redor de suas mães perfeitas, porque é o amor que aperfeiçoa. É aquilo que se sente que aperfeiçoa, eliminando qualquer capacidade de prestar atenção ao erro ou ao defeito.
Se Deus pudesse, escreveria a cada filho uma carta de amor para o convencer a vir em visita. Mas o paradeiro do filho só se descortina pela prece. Sem isso, Deus guarda as cartas que escreve sem ter para onde as enviar. Espera. No que à visão de Seus filhos se refere, Deus espera na escuridão. Seu candeeiro é Seu nome à boca do filho.
Cantando por uma manhã, a passarada chilreando para comparar afinações, Deus assume Suas dores. Mas quer apenas entregar alegrias. Quando encontrado, Deus apenas promete a alegria. Tudo o mais é falso. Desdém de quem não quis voltar a casa. De quem se perdeu e envergonhou.
Deus na escuridão. (Cap. 10). Valter Hugo Mae
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