domingo, 29 de março de 2015

Origem do Culto Religioso


Se remontarmos aos tempos em que a vida religiosa florescia com toda a força, acharemos uma convicção fundamental que já não partilhamos, e devido à qual vemos fechadas definitivamente para nós as portas da vida religiosa: tal convicção diz respeito à natureza e à relação com ela. Naqueles tempos nada se sabia sobre as leis da natureza; seja na terra, seja no céu, nada tinha que suceder; uma estação, o sol, a chuva podiam vir ou faltar. Não havia qualquer noção de causalidade natural. Quando se remava, não era o remo que movia o barco; remar era apenas uma cerimônia mágica, pela qual se forçava um demônio a mover o barco. Todas as enfermidades, a própria morte eram resultado de influências mágicas. O adoecer e o morrer não sobrevinham naturalmente; não existia a ideia de "ocorrência natural" — que surgiu apenas com os antigos gregos, ou seja, numa fase bem tardia da humanidade, na concepção da Moira que reina acima dos deuses. Quando alguém atirava com o arco, havia sempre uma mão e uma força irracionais; se as fontes secavam de repente, pensava-se primeiro em demônios subterrâneos e suas maldades; se um homem caía, era certamente o efeito invisível da flecha de um deus. Na Índia (segundo Lubbock) o carpinteiro costuma oferecer sacrifícios a seu martelo, a sua machadinha e às ferramentas; o brâmane trata do mesmo modo o lápis com que escreve, o soldado as armas que usa em campanha, o pedreiro sua trolha, o lavrador seu arado. Na imaginação dos homens religiosos, toda a natureza é uma soma de atos de seres conscientes e querentes, um enorme complexo de arbitrariedades. Em relação a tudo o que nos é exterior não é permitida a conclusão de que algo será deste ou daquele modo, de que deverá acontecer dessa ou daquela maneira; o que existe de aproximadamente seguro, calculável, somos nós: o homem é a regra, a natureza, a ausência de regras — este princípio contém a convicção fundamental que domina as grosseiras culturas primitivas, criadoras de religião. Nós, homens modernos, sentimos precisamente o inverso: quanto mais interiormente rico o homem se sente hoje, quanto mais polifônica a sua subjetividade, tanto mais poderosamente age sobre ele o equilíbrio da natureza; juntamente com Goethe, todos nós reconhecemos na natureza o grande meio de tranquilização da alma moderna, ouvimos a batida do pêndulo desse grande relógio com nostalgia de sossego, de recolhimento e silêncio, como se pudéssemos absorver esse equilíbrio e somente por meio dele chegar à fruição de nós mesmos.

Antigamente era o inverso: se recordamos as rudes condições primitivas dos povos ou vemos de perto os selvagens atuais, achamo-los determinados da maneira mais rigorosa pela lei, pela tradição: o indivíduo está quase que automaticamente ligado a ela e se move com a uniformidade de um pêndulo. Para ele a natureza — a incompreendida, terrível, misteriosa natureza — deve parecer o reino da liberdade, do arbítrio, do poder superior, como que um estágio sobre-humano da existência, Deus mesmo. Mas então cada indivíduo, em tais épocas e condições, sente como sua vida, sua felicidade, a de sua família, a do Estado, o sucesso de todos os empreendimentos, dependem dessas arbitrariedades da natureza: alguns fenômenos naturais devem sobrevir no tempo certo, e outros deixar de ocorrer no tempo certo. Como ter influência sobre essas temíveis incógnitas, como subjugar o reino da liberdade? Eis o que ele se pergunta, eis o que busca ansiosamente: não há como tornar essas potências regulares mediante uma lei ou tradição, assim como você próprio é regular? — As reflexões daqueles que acreditam em magia e milagres levam a impor uma lei à natureza —: e, em poucas palavras, o culto religioso é produto dessas reflexões. O problema que esses homens se colocam é intimamente aparentado ao seguinte: como pode a tribo mais fraca ditar leis para a mais forte, decidir a respeito dela, dirigir suas ações (na relação com a mais fraca)? Recordemos primeiro a espécie mais inócua de coação, aquela que exercitamos ao conquistar a afeição de alguém. Logo, por meio de súplicas e orações, por meio da submissão, do compromisso de tributos e presentes regulares, de exaltações lisonjeiras, é possível também exercer uma coação sobre os poderes da natureza, na medida em que os tornamos afeiçoados a nós: o amor vincula e é vinculado. Em seguida podemos fechar acordos em que nos obrigamos mutuamente a determinada conduta, estabelecemos penhores e trocamos juramentos. Muito mais importante, porém, é uma espécie de coação mais violenta, mediante a magia e a feitiçaria. Assim como o homem, com a ajuda de um feiticeiro, pode prejudicar um inimigo mais forte e mantê-lo amedrontado, assim como o feitiço do amor age à distância, assim também o homem fraco acredita poder guiar até mesmo os espíritos poderosos da natureza. O meio principal de toda magia é termos em nosso poder algo que seja próprio de alguém: cabelos, unhas, um pouco da comida de sua mesa e mesmo sua imagem, seu nome. Com tal aparato se pode então praticar a magia, pois o pressuposto fundamental é de que a todo ser espiritual pertence algum elemento corporal; com o auxílio deste se pode vincular o espírito, prejudicá-lo, destruí-lo; o elemento corporal fornece a alça com que podemos apreender o espiritual. Do mesmo modo que um homem influencia outro homem, também influencia qualquer espírito da natureza; pois este também tem seu elemento corporal, pelo qual pode ser apreendido. A árvore e, comparado a ela, o broto do qual surgiu — essa enigmática coexistência parece provar que nas duas formas se corporiflcou um único espírito, ora pequeno, ora grande. Uma pedra que rola subitamente é o corpo em que age um espírito; se numa charneca solitária se encontra uma rocha, parece impossível imaginar uma força humana que a tenha trazido até ali; então ela deve ter se movido por si própria, ou seja: deve hospedar um espírito. Tudo o que possui um corpo é acessível ao encantamento, também os espíritos da natureza. Se um deus está vinculado à sua imagem, pode-se também exercer sobre ele uma coação direta (ao lhe negar o alimento sacrificial, açoitá-lo, acorrentá-lo e assim por diante). A fim de obter as graças de um deus que as abandonou, as pessoas pobres, na China, amarram com cordas a sua imagem, arrastam-na pelas ruas através de montes de lama e estrume, e dizem: "Ó tu, cão de espírito, nós te fizemos habitar um magnífico templo, te douramos esplendidamente, te alimentamos bem, te oferecemos sacrifícios, e contudo és tão ingrato". Semelhantes medidas de violência contra imagens dos santos e da mãe de Deus, quando eles não quiseram cumprir sua obrigação em casos de peste ou de seca, por exemplo, ocorreram ainda neste século em países católicos. — Todas essas relações mágicas com a natureza deram origem a inúmeras cerimônias; por fim, quando sua confusão se tornou muito grande houve esforços para ordená-las, sistematizá-las, de modo que se acreditou garantir o desenrolar favorável de todo o curso da natureza, isto é, do grande ciclo anual das estações, mediante o correspondente desenrolar de um sistema de procedimentos. O sentido do culto religioso é influenciar e esconjurar a natureza em benefício do homem, ou seja, imprimir-lhe uma regularidade que a princípio ela não tem; enquanto na época atual queremos conhecer as regras da natureza para nos adaptarmos a elas. Em suma, o culto religioso baseia-se nas idéias de feitiço entre um homem e outro; e o feiticeiro é mais antigo que o sacerdote. Mas igualmente se baseia em concepções outras, mais nobres; pressupõe um laço de simpatia entre os homens, a existência de boa vontade, gratidão, atendimento aos suplicantes, acordos entre inimigos, concessão de garantias, direito à proteção da propriedade. Mesmo em baixos níveis de cultura o homem não se acha frente à natureza como um escravo impotente, não é necessariamente o seu servo desprovido de vontade: no nível religioso dos gregos, sobretudo na relação com os deuses olímpicos, deve-se mesmo pensar na convivência de duas castas, uma mais nobre, mais poderosa, e outra menos nobre; mas por sua origem elas de algum modo estão ligadas e são de uma única espécie; não precisam se envergonhar uma da outra. Eis o que há de nobre na religiosidade grega.

— Friedrich Wilhelm Nietzsche, in Humano, Demasiado Humano - aforismo 111.

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